Um amigo me sugeriu um conto…
Moara Zambonim,
Bolsista PET-Letras
Letras Português
Um amigo me sugeriu um conto do argentino Julio Cortázar (1914-1984), parte de Todos os fogos o fogo, publicado em 1966. O autor é considerado um dos grandes escritores modernos e esse conto uma das oito obras-primas contidas na obra. Li “A auto-estrada do sul” e, como meu amigo, fiquei deslumbrada.
Fonte: Imagem da internet, do site iStock.*
O que se narra é o que aconteceu aos que “[…] fizeram a estupidez de querer voltar a Paris pela auto-estrada do sul, num domingo à tarde, quando, apenas saídos de Fontainebleau, tiveram de ir em marcha lenta, parar, seis filas de cada lado (já se sabe que aos domingos a auto-estrada fica inteiramente reservada aos que voltam para a capital), ligar o motor, avançar três metros, parar, conversar com as duas freiras do 2HP da direita, com a moça do Dauphine à esquerda, olhar pelo espelho retrovisor o homem pálido que dirige um Caravelle, invejar ironicamente a felicidade avícola do casal do Peugeot 203 (atrás do Dauphine da moça) que brinca com a filhinha […]” (CORTÁZAR, 1972, p. 3).
Nessa primeira página do relato, o leitor se vê em ambiente em que personagens, nomeadas como condutoras ou passageiras de veículos, vivenciam uma situação bastante corriqueira, bastante desgastante também. Enfrentam congestionamento que produz doze filas de automóveis, imobilidade angustiante, necessidade de esticar as pernas uma vez ou outra, quando a parada dá oportunidade de se percorrer as filas da direita ou da esquerda, de ver aumentada a lista de tipos de veículos e de observar, discretamente, as atitudes dos demais viajantes, até que começassem a interagir entre si. Não se conhece a causa do engarrafamento, surgem especulações e más notícias trazidas por algum estranho ou outro. Quase todos ouviam o rádio até que as transmissões foram suspensas pelas rádios locais. O isolamento do grupo — “a sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr” (CORTÁZAR, 1972, p. 4) — e as privações que surgiram em horas e horas de congestionamento levaram à ajuda mútua, à necessidade de alguém comandar o grupo em busca de divisão de tarefas, como obter água e alimentos, em outras células com problemas semelhantes que se constituíram. O convívio nessa circunstância produziu cuidados especiais com crianças, idosos ou freiras, ajuda de médico quando uma mulher adoeceu ou quando o homem da Caravelle cometeu o suicídio (fechado hermeticamente no porta-malas de seu carro) — o veículo do engenheiro do Peugeot 404 foi transformado em vagão-leito.
Voltaram todos a seus carros, alguns arrancaram com ímpeto. O 404 buscava manter-se paralelo a Dauphine, mas a grande aceleração impedia que as filas se mantivessem paralelas. Os motoristas do grupo adiantavam-se uns dos outros impelidos pelo ritmo da marcha, até que o grupo se dissolveu irrevogavelmente, dando fim à rotina e aos rituais mínimos que haviam vivenciado. “[…] e se corria a oitenta quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente” (CORTÁZAR, 1972, p. 27 -28).
Em seu trajeto, o leitor conhece o desconforto provocado pela vibração do sol sobre as pistas e as carrocerias, o que “dilatava a vertigem até à náusea” (CORTÁZAR, 1972, p. 5); ao amanhecer, essa necessidade de se agasalhar que nascia com o cinzento da madrugada (p. 15); a atitude dos viajantes que, pelas noites já tão frias, não pensavam em ficar fora dos automóveis. Conhece ainda: “pela primeira vez sentia-se frio em pleno dia, e ninguém pensava em tirar os casacos” (p. 19). “Conhece também a neve que isolava, pouco a pouco, os automóveis” (p. 21). Isso me fez refletir não somente sobre a questão do tempo nesse conto de Cortázar, como, também, sobre o significado que podemos atribuir a essa narrativa. Nela não há caracterização precisa do tempo — “O entardecer não chegava nunca” (p. 5); “Em dado momento” (p. 7); “Por volta das duas horas da madrugada” (p. 16), e, depois de um período, as chuvas e ventos que exasperaram os ânimos e aumentaram as dificuldades, por exemplo —, mas são apresentadas com minúcias as sensações das personagens em distintas situações. Esse é o interesse do autor. Seu modo de construir a narrativa traz uma névoa sobre o tempo dos fatos narrados. Névoa que é produtiva, porque o relato de um engarrafamento, perpassando distintas estações do ano, tira dos fatos narrados a natureza de meros fatos quotidianos, permitindo que alcancem outras dimensões.
Como refere o crítico e historiador literário Mário da Silva Brito (na orelha do livro de Cortázar):
“O quotidiano — como que nos adverte esse mestre da história curta — de um momento para outro é capaz de transformar-se em espanto, atingir o insólito, fazer-se fantasmagórico, alçar-se a atitudes imprevistas, tingir-se de insuspeitadas gamas, revelar-nos desconhecidos recantos do nosso ser”.
Depois da leitura desse conto, continuo lendo, com grande prazer, as narrativas de Julio Cortázar, e recomendo a vocês todos que também o façam!
* Descrição: o desenho mostra diversos carrinhos coloridos (amarelo, azul, verde, rosa, em tons pasteis), assim como alguns semáforos e setas indicando direção.
Referência:
CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1972.