Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina
  • Edital | Tutoria de PET-Letras

    Publicado em 11/07/2025 às 15:17

    A pedido da Pró-Reitora de Graduação e Educação Básica,  divulga-se a publicação da abertura do processo de seleção de professor tutor para atuar no Programa de Educação Tutorial – PET Letras.

    As inscrições serão realizadas de 17 a 31 de julho de 2025.

    As demais informações podem ser conferidas acessando o link abaixo:

    https://prograd.ufsc.br/2025/07/11/selecao-para-tutor-do-pet-letras-5/


  • Mudança de Nome do Campus da UFSC: um passo em direção à memória e à justiça

    Publicado em 10/07/2025 às 12:36

    Por Franciane Ataide Rodrigues

    Letras Libras

    Bolsista PET-Letras

    No dia 17 de junho de 2025, o Conselho Universitário (CUn) da UFSC aprovou com 56 votos favoráveis, a retirada do nome de João Davi Ferreira Lima do campus sede, no bairro Trindade, em Florianópolis. A decisão, construída de forma coletiva, é um passo importante para o compromisso da universidade e de sua comunidade estudantil com a preservação da memória, a defesa dos direitos humanos e a valorização da autonomia acadêmica.

    Foto: Gustavo Diehl / Agecom UFSC

    Descrição de imagem: a imagem apresenta vários jovens reunidos com cartazes mostrando os rosto de servidores perseguidos na época da didática militar e caixão de papelão. Eles estão com expressão de gritos e revolta.

    João Ferreira Lima foi advogado, professor e o primeiro reitor da UFSC, entre 1961 e 1972. Foi durante sua gestão que o campus começou a tomar forma na antiga Fazenda Assis Brasil, no bairro Trindade. Em reconhecimento à sua contribuição nesse processo, seu nome foi dado ao campus como forma de homenagem. Porém, com o passar dos anos, essa homenagem passou a ser questionada, após virem à tona documentos que apontam seu apoio ativo ao regime militar no Brasil, um período marcado por violações aos direitos humanos e à liberdade acadêmica. Em 2023, o Conselho Universitário da UFSC criou uma comissão para dar continuidade às recomendações da Comissão Memória e Verdade (CMV) da universidade.

    Todo o trabalho resultou em um relatório, com mais de 60 páginas de documentos que apresentam detalhes dos acontecimentos deste período. Entre os registros, estão evidências de perseguições a estudantes, professores e servidores, muitas delas feitas com o aval ou até mesmo a participação da administração central da UFSC, durante a gestão do então reitor João David Ferreira Lima.

    Fotos: Gustavo Diehl / Agecom UFSC

    Descrição de imagem: a imagem é um registro do dia da votação sobre a mudança do nome do campus, é um auditório lotado, os assentos da plateia todos ocupados e no palco uma bancada com pessoas sentadas. No canto esquerdo do palco, uma pessoa no no microfone  tendo momento de fala. Nos dois cantos superiores do palco, telões com intérpretes de Libras.

    A votação foi aberta à comunidade universitária e aconteceu em quatro sessões, resultando em 56 votos favoráveis e apenas 8 contrários. A decisão foi comemorada por estudantes, professores e movimentos sociais ligados à universidade, que consideram a mudança como um ato de reparação histórica e de justiça em memória das pessoas perseguidas e prejudicadas pelas ações de Ferreira Lima durante o período em que esteve à frente da UFSC.

    A retificação do nome do campus é um marco na história da UFSC, pois ao encarar de frente episódios difíceis e controversos da sua história, a universidade afirma seu compromisso com a autonomia, com a postura crítica e com os valores democráticos. É um decisão que mostra a importância de refletir sobre o passado e fortalecer a relação entre ensino, cidadania e direitos humanos.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC). Decisão coletiva e histórica: UFSC exerce sua autonomia e altera o nome do campus na Trindade. Notícias UFSC, Florianópolis, 30 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.ufsc.br/2025/06/decisao-coletiva-e-historica-ufsc-exerce-sua-autonomia-e-altera-o-nome-do-campus-na-trindade/. Acesso em: 30 jun. 2025.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC). Decisão sobre troca do nome do campus da UFSC é adiada após pedido de vistas. Reitoria UFSC, Florianópolis, 13 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.ufsc.br/2025/06/decisao-sobre-troca-do-nome-do-campus-da-ufsc-e-adiada-apos-pedido-de-vistas/. Acesso em: 30 jun. 2025.

     

     


  • Nós aprendemos a escrever da mesma forma que aprendemos a falar?

    Publicado em 07/07/2025 às 12:25

    Por Anna Letícia de Abreu – Bolsista PET-LETRAS

    Gabrieli Marques Cabral – Voluntária PET-LETRAS

    Isabela Milioli – Autora convidada

    Maysa Monteiro – Bolsista PET-LETRAS

    Letras-Português

    Nos textos anteriores da nossa série especial de divulgação científica #ComunicaLinguagem, refletimos sobre “De onde vem a linguagem?” e “Como as crianças adquirem os sons da fala?”. Agora, para encerrarmos nossa série, vamos falar da diferença entre aquisição e aprendizagem. Às vezes, esses conceitos podem parecer sinônimos, ou no mínimo parecidos, mas a verdade é que existe uma grande diferença entre eles, porque a forma pela qual aprendemos a falar é diferente da forma pela qual aprendemos a escrever.

    Não precisamos ensinar uma criança a falar, pois o processo de aquisição da fala e de seus sons, como já vimos anteriormente, é natural e acontece de forma espontânea, seguindo uma sequência previsível. Já a escrita funciona de outro jeito. Ela exige um ensino formal e sistemático, ou seja, precisa ser ensinada.

    Para que uma criança aprenda a escrever, mais do que apenas conhecer as letras, ela precisa entender que as palavras são formadas por partes menores: as sílabas e os fonemas. Essa habilidade se chama consciência fonológica e é uma peça chave no processo de alfabetização e, por isso, precisa ser trabalhada desde a educação infantil. Quando a criança percebe que a palavra “bola” começa com o mesmo som da palavra “bolo” ou “boca”, ou que “pato” rima com “gato” e “rato”, ela está desenvolvendo a percepção dos sons da língua. Essa habilidade vai permitir que ela relacione os sons e as letras e escreva o que fala. A consciência fonológica é importante pois sem ela a escrita vira um quebra cabeça sem lógica.

    Quando as crianças começam a desenvolver a escrita, tentam representar de forma gráfica sons que já conhecem. Por isso, muitas vezes escrevem “caza” com Z ou “xave” com X. Nesse caso, ela está usando a lógica da fala para representar a escrita. Entretanto, a escrita do Português, como muitas outras línguas, segue diversas convenções – e nem todas obedecem à lógica dos sons. Isso nos leva a um aspecto bem específico da língua escrita: a  ortografia, um conjunto de regras e padrões que nos dizem, por exemplo, que “chave” se escreve com CH e não com X. Essas regras não são naturais nem intuitivas: precisam ser ensinadas, discutidas e compreendidas. Enquanto a linguagem oral é adquirida por qualquer criança em contato com um ambiente linguístico, a linguagem escrita precisa ser ensinada.

    O papel da escola e do professor é importantíssimo no processo de ensino, mas ainda existem muitas dúvidas sobre como ensinar ortografia. Alguns professores se preocupam tanto com a escrita “certa” que corrigem apenas os erros ortográficos, deixando de lado outros aspectos fundamentais para produção textual, como a capacidade de argumentação, progressão temática e coesão. Outros professores, por outro lado, acreditam que não precisam ensinar a ortografia de forma explícita, e que apenas o contato com textos e as práticas de leitura e escrita serão o suficiente para que os alunos aprendam a escrever corretamente. Porém, ambos os caminhos, embora bem intencionados, não são suficientes.

    É interessante que o professor encontre um equilíbrio para conseguir abordar a ortografia de forma contextualizada e reflexiva em situações reais de leitura e escrita, para que assim os alunos consigam não apenas decorar regras, mas também refletir sobre como a língua funciona e aprender com os próprios erros. Quando o aluno entende por que se escreve de um jeito e não de outro, o aprendizado se torna mais sólido e a escrita mais significativa.

    Diante disso, é importante também desconstruirmos uma ideia, muito comum e equivocada, de que errar na ortografia é sinal de desleixo ou até falta de inteligência. Esse tipo de julgamento faz parte de um preconceito linguístico enraizado na nossa sociedade e desvaloriza quem escreve “errado” sem levar em consideração o processo de aprendizagem por trás da escrita. A verdade é que errar faz parte do caminho, escrever corretamente não é algo intuitivo ou que acontece de forma natural, é algo que se aprende passo a passo com mediação, escuta, paciência e reflexão. Valorizar este percurso é também valorizar o papel do professor e o direito de todos ao acesso pleno à linguagem escrita.

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    SCHERER, Ana Paula. Consciência fonológica na alfabetização infantil. In: LAMPRECHT, Regina (org.). Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores, fonoaudiólogos e professores e língua inglesa. Porto Alegre: Edipucrs, 2009. p.130-143.

    SEARA, Izabel; NUNES, Vanessa; LAZZAROTTO-VOLCÃO, Cristiane. Para conhecer Fonética e Fonologia do Português. São Paulo: Contexto, 2015.

    SILVA, Alexandre (org.). Ortografia na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

     


  • Breves reflexões sobre políticas linguísticas e seus impactos no ensino de línguas adicionais

    Publicado em 26/06/2025 às 14:24

    Por Paula Scalvin da Costa

    Letras Inglês

     Bolsista PET Letras

     

    As políticas linguísticas fazem parte de um campo que, embora muitas vezes seja um tanto invisível para uma maioria das pessoas, está profundamente entrelaçado com as experiências sociais, educacionais e políticas das comunidades. Elas não se limitam a decretos governamentais ou documentos oficiais: abrangem decisões sobre quais línguas são ensinadas nas escolas, quais são valorizadas socialmente, quais têm presença nos meios de comunicação e quais são marginalizadas. Compreender o que são políticas linguísticas é o primeiro passo para entender por que elas afetam tão diretamente as crenças dos alunos sobre o que é “aprender uma língua”.

    A princípio, pode parecer que a política linguística se refere apenas à presença ou à ausência de determinada língua no currículo escolar, mas ela vai além. Trata-se de um conjunto de decisões – explícitas ou implícitas – sobre como as línguas são utilizadas, promovidas ou silenciadas em uma sociedade. Essas decisões afetam diretamente a forma como os cidadãos compreendem o valor e a função das línguas no seu cotidiano. Isso envolve, por exemplo, o que consideramos uma fala “adequada” em determinados contextos, ou qual língua associamos ao sucesso profissional. De forma geral, a política linguística envolve tanto o planejamento da estrutura das línguas quanto a sua distribuição funcional: quem fala o quê, onde, e para qual propósito.

    No início do campo de estudos sobre políticas linguísticas, nas décadas de 1960 e 1970, o foco estava voltado para o planejamento de línguas em contextos pós-coloniais. O objetivo era muitas vezes o de fortalecer uma identidade nacional por meio da adoção de uma única língua, considerada símbolo de unidade. Isso levava à valorização de uma língua hegemônica e à marginalização de línguas locais, indígenas ou de comunidades migrantes. A ideia era resolver “problemas linguísticos” a partir de uma perspectiva técnica e centralizadora; porém, com o tempo, essas práticas passaram a ser criticadas justamente por ignorarem a complexidade e a diversidade linguística dos territórios.

    É nesse contexto que surgem abordagens críticas, como a histórico-estrutural, que questionam as decisões que parecem neutras, mas que na verdade reproduzem desigualdades sociais. Essas abordagens, representadas por estudiosos como Tollefson, chamam a atenção para o fato de que as políticas linguísticas não acontecem no vazio: elas estão ligadas a disputas por poder, território, identidade e reconhecimento. Ao mesmo tempo, outros autores passam a falar sobre as políticas implícitas – aquelas que não estão nos documentos legais, mas que se manifestam nas normas sociais e culturais. Um bom exemplo disso é quando uma sociedade, sem declarar oficialmente uma língua, passa a tratar outras línguas como inadequadas, menos prestigiadas ou até mesmo indesejáveis.

    Um caso emblemático que ilustra como essas decisões são carregadas de ideologia é o recente decreto assinado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em março de 2025, tornando o inglês a língua oficial do país. Essa decisão, embora pareça nova, apenas oficializou algo que já estava presente há muito tempo na prática social americana. Antes disso, a Constituição dos EUA não estipulava nenhuma língua oficial, e cada estado tinha autonomia para decidir quais línguas reconhecer. Mesmo assim, o inglês sempre foi hegemônico e, na vida pública, existia uma forte pressão social para o seu uso. O decreto, então, pode ser lido como uma forma de reforçar o nacionalismo e promover uma ideia de “identidade americana” excludente, apagando a diversidade linguística de comunidades como as que falam espanhol, chinês, árabe ou línguas indígenas.

    Nesse sentido, a medida de Trump nos permite observar como políticas linguísticas podem ser usadas para afirmar poder, definir fronteiras culturais e reforçar a dominação de um grupo sobre outros. Ao tornar oficial algo que já era dominante, o decreto fortaleceu a exclusão das demais línguas do espaço público, ao mesmo tempo em que comunicava ao mundo – e aos próprios cidadãos – quais formas de expressão seriam valorizadas e quais seriam marginalizadas. Essa imposição da unidade linguística, sob o pretexto de proteção cultural, ignora as contribuições das múltiplas comunidades linguísticas que compõem o país e que, historicamente, têm suas línguas apagadas por políticas de assimilação.

    Podemos perceber que, embora esse tipo de medida tenha um impacto político e social evidente, ele também produz efeitos concretos na forma como as pessoas enxergam o aprendizado de línguas. Ao privilegiar uma única língua no espaço público, cria-se a ideia de que apenas essa língua é suficiente, ou mesmo que ela é “melhor” do que as outras. Isso gera crenças entre os estudantes, como a de que é preciso falar perfeitamente o inglês para ser bem-sucedido, ou de que ter sotaque é um sinal de ignorância. Essas crenças, disseminadas e reforçadas por meio de decisões políticas e pressões sociais, influenciam diretamente a maneira como os alunos se engajam com o aprendizado de línguas adicionais.

    As consequências desse tipo de política não são exclusivas do contexto americano. No Brasil, temos um exemplo recente e igualmente revelador da relação entre política linguística e formação de crenças: a retirada do espanhol como disciplina obrigatória no Ensino Médio. A obrigatoriedade do espanhol foi estabelecida em 2005, mas revogada em 2017, sob justificativas variadas, que incluíam tanto argumentos internos quanto pressões externas. A medida foi defendida por setores políticos que alegavam a necessidade de priorizar o ensino de português e matemática, ao mesmo tempo em que embaixadas de países europeus, como França e Alemanha, atuaram contra a permanência do espanhol, sob a justificativa de defender o plurilinguismo e evitar que outras línguas fossem excluídas do currículo.

    Esse episódio revela, de forma clara, como as políticas linguísticas não se restringem a decisões técnicas ou educacionais. Elas envolvem interesses econômicos, alianças internacionais, disputas geopolíticas e diferentes visões sobre o papel da escola na formação cidadã. Enquanto isso, países vizinhos do Brasil, especialmente da América Latina, manifestaram preocupação com a retirada do espanhol, pois viam nele uma ferramenta importante de integração regional. A decisão brasileira, portanto, ao mesmo tempo em que se justificava como uma abertura ao plurilinguismo, parecia desconsiderar os vínculos históricos, culturais e econômicos com seus vizinhos de fala espanhola.

    Quando analisamos esses dois casos – o decreto de Trump e a retirada do espanhol no Brasil – percebemos que as políticas linguísticas não ocorrem isoladamente. Elas fazem parte de um ecossistema maior, de forças nacionais e internacionais, que orientam a forma como as línguas são ensinadas e aprendidas. E, mais do que isso, elas nos mostram que o valor de uma língua não é um dado natural, mas uma construção histórica, carregada de interesses e disputas. Por isso, é essencial trazer esse debate para dentro das escolas.

    Ao discutir com os alunos como essas políticas influenciam suas vidas, ajudamos a construir um olhar mais crítico sobre a linguagem. Mostramos que a língua não é apenas um instrumento neutro de comunicação, mas uma prática social que carrega ideologias, normas, afetos e exclusões. Os alunos precisam entender, por exemplo, que falar com sotaque não é um erro, mas uma marca de identidade. Ou que o inglês que aprendem na escola não precisa ser uma cópia exata do inglês americano padrão, mas pode ser uma forma de expressão própria, válida e eficaz. Esses entendimentos ajudam a desconstruir crenças limitadoras, promovem a autoestima linguística e abrem caminhos para uma aprendizagem mais significativa.

    Nesse sentido, o papel do professor é central. É ele quem pode criar espaços de reflexão, de escuta, de crítica e de construção coletiva de sentido. O professor, ao abordar essas temáticas, não está apenas ensinando uma língua, mas formando cidadãos conscientes de seu lugar no mundo, capazes de questionar as estruturas que os cercam. A sala de aula, então, deixa de ser um local de mera repetição de normas e conteúdos, para se tornar um espaço político – no melhor sentido do termo – onde se pensa o mundo, as relações sociais e as possibilidades de transformação.

    Levar para a sala de aula notícias, como o decreto americano ou as mudanças no currículo brasileiro, pode ser uma forma prática e potente de iniciar esses debates. Mas é importante que essas discussões sejam feitas com sensibilidade, respeitando o contexto e as vivências dos alunos. Cada turma terá suas necessidades, seus interesses e suas formas de se relacionar com a linguagem. Cabe ao professor mediar essas conversas de maneira ética e responsável, ajudando os estudantes a se reconhecerem como sujeitos históricos, capazes de agir e de se posicionar no mundo por meio da linguagem.

    Por fim, pensar sobre políticas linguísticas é também pensar sobre o tipo de sociedade que queremos construir. Uma sociedade plural, justa e democrática precisa valorizar a diversidade linguística como parte fundamental da sua identidade. Isso implica, por exemplo, reconhecer e proteger línguas indígenas, apoiar o ensino de línguas de imigração e garantir o acesso equitativo ao aprendizado de línguas estrangeiras. Mais do que isso, implica formar pessoas capazes de entender que cada língua carrega uma visão de mundo, e que aprender uma nova língua é, também, aprender a escutar o outro. A política linguística começa onde há decisão sobre a linguagem. E a escola é, sem dúvida, um de seus territórios mais importantes.

    Bibliografia consultada

    SILVA, Elias Ribeiro da. A pesquisa em política linguística: histórico, desenvolvimento e pressupostos epistemológicos. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 52, n. 2, p. 289-320, jul./dez. 2013.


  • Como as crianças adquirem os sons da fala?

    Publicado em 30/05/2025 às 12:04

    Por Anna Letícia de Abreu – Bolsista PET-LETRAS

    Gabrieli Marques Cabral – Voluntária PET-LETRAS

    Isabela Milioli – Autora convidada

    Maysa Monteiro – Bolsista PET-LETRAS

     

    No texto anterior da nossa série especial de divulgação científica, refletimos sobre a pergunta “De onde vem a linguagem?”. Agora, pensaremos sobre como as crianças adquirem os sons da fala.  Iremos nos ater aqui à elucidação do processo de aquisição de sons e fonemas pelas crianças (LAMPRECHT, 2004, pág 33), sem englobar características específicas, pois cada indivíduo é afetado por uma condição.  Dado o contexto, podemos pensar que a aquisição dos sons nas línguas ocorre em várias etapas, iniciando nos primeiros meses de vida até aproximadamente os cinco anos de idade, seguindo uma ordem de aquisição: vogais → plosivas e nasais → fricativas → líquidas (esses grupos serão explicados na tabela 1).

    Pesquisas em aquisição fonológica mostram que as crianças seguem uma ordem relativamente previsível na hora de aprender os sons da língua, começando por sons mais simples, como vogais, e avançando para os mais complexos, como o “r” vibrante (representado foneticamente por /ɾ/). Essa progressão não é aleatória, está relacionada a fatores físicos, como a maturação do aparelho fonador, e à capacidade de articular certos movimentos com os lábios e a língua. Apesar de cada criança seguir seu desenvolvimento de forma individual, há uma regularidade no caminho que elas percorrem. A tabela abaixo mostra uma ordem geral de aquisição dos sons no português brasileiro.

    Tabela 1: Ordem geral de aquisição dos segmentos:

    Segmento: Como funciona? Exemplo fonético: Idade*:
    Vogais: São pronunciados com a passagem livre do ar pelo trato vocal. /i/ /e/ /ɛ/ /a/ /ɔ/ /o/ /u/ 1:1 a 1:11
    Plosivas Produzidas a partir de uma obstrução completa da passagem de ar e posterior soltura através da cavidade oral. /p/ /b/ /t/ /d /k/ /g/  1:6 a 1:8
    Nasais Produzidas a partir de uma obstrução completa da passagem de ar, no entanto, há o abaixamento do véu palatino e a soltura do ar através do nariz. /m/ /n/ /ɲ/ 1:6 a 1:8
    Fricativas: Produzidas com passagem de ar sem que os articuladores obstruam completamente a boca, esse fechamento parcial causa fricção.  /f/ /v/ /s/ /z/ /ʃ/ /ʒ/ 1:8 a 2:10
    Líquidas: Produzidas a partir da oclusão da corrente de ar na cavidade oral, causada pela língua. Oclusão parcial, o que permite que o ar saia pelos lados da boca.  /l/, /ʎ/, /ɾ/, /R/ 2:0 e 5:0

    Fonte: Tabela produzida com base no texto (lamprecht, 2004).

    * Idade lê-se 1:8 = 1 ano e 8 meses.

    (Idade de ocorrência: variações podem ocorrer em casos de aquisição atípica.)

     Visitar site: IPA CHAT https://www.ipachart.com/ para conhecer o som dos fonemas.

    Por isso que, quando ouvimos uma criança pequena pronunciando alguma palavra, estamos presenciando o diverso jogo da linguagem acontecendo, uma mistura de tentativas, desenvolvimento do aparelho fonador e a experimentação dos sons. Como vimos na tabela, os sons das plosivas (/p/ /b/ /t/ /d /k/ /g/) costumam ser adquirios por volta de um ano e seis meses, por isso, é comum que crianças ainda em processo de aquisição desses sons usem estratégias para “driblar” as dificuldades e conseguir se comunicar, chamamos essas soluções de estratégias de reparo.

    Uma dessas estratégias é o apagamento, quando a criança omite o som que ainda não consegue produzir. Por exemplo, em vez de dizer “pateta”, a criança produz “ateta”, omitindo o som do /p/. Outra possibilidade é a de substituição, em que a criança substitui um som que ela ainda não domina por outro que ela já adquiriu, como: “bola” por [’pola]; “sabe” por [‘sapi] e “garfo” por [‘kafu].  Aqui percebemos que foi substituído /b/ por /p/ e /g/ por /k/, todas plosivas, mas que possuem tempos diferentes para a aquisição.

    Já na aquisição das nasais (/m/ /n/ /ɲ/), que ocorre na mesma faixa etária das plosivas, o apagamento pode ocorrer em casos como “tinha”, que é pronunciado como [‘tĩ:a]. Já substituição pode ocorrer como em “moeda” por [be’ɛda] e “grêmio” por [‘genu]. Ainda assim, como as plosivas e nasais são adquiridas mais cedo e com mais facilidade, os “erros”- ou melhor, estratégias de reparo – costumam ser menos frequentes.

    Na aquisição das fricativas ( /f/ /v/ /s/ /z/ /ʃ/ /ʒ/), os reparos são mais comuns e a idade para a aquisição podem variar entre um ano e oito meses até os dois anos e dez meses de idade. Ao analisar as estratégias de reparo percebe-se a omissão do segmento, como em “faca” por [‘aka] e “vela” por [‘ɛla]. Já na questão de substituição, casos como “fogão” por [po’gaw] e “cavalo” por [ka’balu].

    Por fim, chegamos às líquidas (/l/, /ʎ/, /ɾ/, /R/), que estão entre os últimos sons a serem adquiridos, por isso é comum que elas passem por diferentes estratégias de reparo ao longo do desenvolvimento. A substituição ocorre como: [‘gej] no lugar de “rei”. Ou então, o apagamento: [‘ua] para “rua” e [‘bau] para “barro”. A aquisição desse segmento varia dos dois até os cinco anos de idade, quando a criança (em média) conclui seu processo de aquisição fonológica.

    Entender um pouco mais sobre como se dá a aquisição da linguagem nos ajuda a perceber como os erros nas falas infantis não são tão aleatórios quanto parecem, ou melhor, talvez nem sejam erros de verdade como o senso comum costuma pensar. Essas estratégias são, na realidade, a forma que a criança encontra de falar uma palavra que possui sons que ela ainda não desenvolveu em sua fala. O mais interessante nesses processos, especialmente nos casos de substituição, é perceber que a troca de um som por outro segue uma lógica interna – uma espécie de raciocínio fonológico ligado à forma como usamos a linguagem. Isso porque a criança irá trocar um fonema por outro que ela já conhece e com características parecidas quanto à forma como é articulado na boca, por exemplo. Da próxima vez que escutarmos uma criança “errando” ao falar, vale a pena observar com outros olhos: talvez, ela esteja, na verdade, testando, reorganizando e criando caminhos para dominar um dos sistemas mais complexos que temos – o da linguagem humana.

     

    REFERÊNCIAS

    LAMPRECHT, Regina et al. (org.). Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para a terapia. Porto Alegre: Artmed, 2004.

     


  • A romantização e a culpabilização pela doença em Susan Sontag

    Publicado em 21/05/2025 às 10:37

    Por Laiara Serafim

    Bolsista Pet-Letras

    Letras-Português

     

    Este texto é parte de um trabalho e de diversos questionamentos que surgiram ao me defrontar com a obra de Susan Sontag. Tomei como base o texto “Doença como metáfora”; também é nele que se amparam as duas principais ideias analisadas: culpabilização e romantização, a fim de explorar algumas ideias e representações que perpassam pelo sujeito doente.

    “A imagem do corpo influenciada pela tuberculose foi um novo modelo para a aparência aristocrática — num momento em que a aristocracia deixava de ser uma questão de poder e passava a ser sobretudo uma questão de imagem. […] De fato, a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem.” (Sontag, 2007, p.22)

    “As teorias psicológicas da doença são meios poderosos de pôr a culpa no doente. Pacientes informados de que, inadvertidamente, causaram sua própria doença são também levados a crer que a mereceram.” (Sontag, 2007, p.21)

    A partir das perspectivas da romantização e da culpabilização, propus-me a refletir sobre representações da doença, especialmente na literatura. Embora grande parte do material encontrado se concentre em doenças como câncer, tuberculose e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), o foco não é apenas nessas enfermidades específicas, mas sim em como o sujeito doente é representado e como isso influencia a percepção social sobre a doença.

    Em seu texto, Susan Sontag nos apresenta a visão fetichizada em torno das descrições da tuberculose: “A tuberculose era — ainda é — vista como capaz de gerar períodos de euforia, de apetite intenso e de exacerbado desejo sexual. Ter tuberculose foi considerado afrodisíaco e fonte de extraordinários poderes de sedução.” (Sontag, 2007, p.11). A palidez e o rubor facial, sintomas da tuberculose, foram associados a uma beleza mórbida, também representadas em pinturas clássicas e figuras vampirescas. Sontag observa que esses traços se tornaram um ideal estético, especialmente porque, ao atingir amplamente a população, a tuberculose transformou a imagem do corpo aristocrático, fazendo da aparência um novo símbolo de status.

     “De fato,a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem. O aspecto tuberculoso tinha de ser considerado atraente uma vez que passou a ser considerado sinal de distinção de uma origem nobre.” (Sontag, 2007, p.22)

    A questão central da romantização não está diretamente ligada à doença em si, mas às características físicas que ela traz. Enquanto doenças como diabetes ou obesidade não são glamourizadas, enfermidades que causam palidez e emagrecimento tendem a ser idealizadas, possivelmente por refletirem padrões estéticos já valorizados socialmente. Sontag observa que a romantização ocorrida durante a epidemia de tuberculose provavelmente foi um fenômeno criado pela literatura: “É razoável supor que essa romantização da tuberculose tenha sido apenas uma transfiguração literária da doença, no que, na época em que causou seus maiores estragos, a tuberculose era provavelmente vista como algo repugnante” (Sontag, 2007, p.22).

    Ao contrário da romantização, ligada ao aspecto externo, a culpabilização parece estar intrinsecamente ligada à moral. Como aponta Sontag, a ideia de doença como punição tem raízes antigas — da lepra bíblica à Covid-19 — e surge, muitas vezes, da falta de explicações médicas, levando a interpretações religiosas ou morais que responsabilizam o indivíduo por sua enfermidade.  A culpa vem do interior do sujeito e surge em acordo com a ideia de moralidade. Estar doente se torna imoral, abominável, especialmente quando o mal a ser combatido não pode ser visto, está dentro do sujeito, o destruindo de dentro para fora. Sontag nos mostra que a culpa recai de forma mais branda sobre certas enfermidades. No caso das ISTs, a associação com o sexo – historicamente envolto em vergonha e punição – torna essa lógica ainda mais evidente. Já em doenças como o câncer, a culpa surge como uma tentativa de dar sentido a um sofrimento sem explicação visível, transformando a dor em falha moral.

    “Mas ninguém pensa em esconder a verdade de um paciente cardíaco: nada existe de vergonhoso num ataque de coração. Mentem para os pacientes de câncer não só porque a enfermidade é (ou se supõe ser) uma sentença de morte, mas porque é considerada algo obsceno – no sentido original da palavra: de mau agouro, abominável, repugnante aos sentidos.” (Sontag, 2007, p.7)

    No mundo contemporâneo, as heranças simbólicas da romantização e da culpabilização ainda se manifestam com força, especialmente nas representações públicas e literárias da doença. O câncer, por exemplo, continua cercado por narrativas de culpa e superação, enquanto enfermidades mentais enfrentam estigmas persistentes. A figura do “paciente-herói”, amplamente promovida pela mídia, reforça a noção de que a cura depende exclusivamente da força de vontade individual, apagando fatores estruturais como o acesso ao tratamento e as desigualdades sociais que moldam profundamente essas trajetórias.

    As noções de romantização e culpabilização da doença têm origens longas e complexas e não se limitam apenas ao corpo ou à moral, ambas são atravessadas por múltiplas dimensões. São questões multifacetadas, que são perpassadas por outros aspectos essenciais para essa análise. Resta o desejo de investigar, futuramente, se a valorização de certos traços físicos em pessoas enfermas dialoga com padrões estéticos já impostos socialmente. Por fim, destaco que a literatura e outras expressões artísticas têm — e tiveram — um papel crucial nessas representações, por isso, é necessário que se ofereçam novos olhares que enfatizem a complexidade das condições humanas sem recorrer a estigmas ou idealizações.

     

    REFERÊNCIA

    SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


  • “Garota do Momento?”: apagamento racial e disputa por protagonismo na teledramaturgia brasileira

    Publicado em 12/05/2025 às 18:57

    Por Hanna Boassi

    Bolsista PET – Letras | CNPq

    Letras-Português

     

    A telenovela brasileira, enquanto produto cultural de massa, desempenha papel fundamental na construção e reprodução de identidades sociais, raciais e de gênero. Ao alcançar milhões de telespectadores diariamente, esses produtos ficcionais contribuem para naturalizar representações e silenciamentos. A novela Garota do Momento (2024-2025), contextualizada no ano de 1958, inicialmente apresentada como uma trama centrada na trajetória de ascensão de uma jovem negra – Beatriz, interpretada pela atriz Duda Santos – no universo artístico, vem sendo alvo de críticas nas redes sociais por desviar-se dessa proposta e recentrar sua narrativa em personagens brancas, promovendo, segundo usuários da rede X, o apagamento da protagonista negra.

    Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @supremacypayne, com um texto que diz: “Onde está a protagonista de garota do momento? Por onde anda ela? Estranhíssimo que Duda Santos em renascer interpretando uma morta aparecia mais do que nessa novela racismo do momento”. Abaixo do texto, há uma imagem da atriz Duda Santos sorrindo, é uma mulher negra com cabelos longos e cacheados, ela está em um ambiente iluminado, com luzes desfocadas ao fundo, usando um vestido azul com detalhes florais claros.

    A discussão gira em torno desse tipo de apagamento, que é sintomático de uma lógica de branqueamento presente na teledramaturgia brasileira, em que personagens negras, mesmo quando colocadas no centro da narrativa, têm seu espaço e a agência constantemente esvaziados. Ao transformar a protagonista negra em coadjuvante da própria história, a novela reproduz um padrão historicamente presente nos meios de comunicação, em que corpos negros são tolerados apenas sob determinadas condições – geralmente periféricas ou estereotipadas.

    Essa dinâmica tece como a televisão continua a operar como instrumento de manutenção de hierarquias raciais. A representação simbólica da negritude, quando condicionada a papéis secundários ou reduzida a figuras decorativas, reafirma uma lógica excludente que inviabiliza a multiplicidade de vivências negras e suas narrativas. Isso evidencia o que apontam Munanga e Gomes (2006 apud Lourenço, 2021, p. 2), ao afirmarem que a mulher negra vivencia “a discriminação em ser mulher em uma sociedade machista e ser negra em uma sociedade racista”.

    Além disso, a recepção crítica nas redes sociais revela a crescente vigilância do público quanto às práticas midiáticas de silenciamento e apagamento. O engajamento em torno do debate sobre a representatividade racial na novela coloca em xeque os limites da ficção, exigindo maior responsabilidade dos produtores culturais diante da pluralidade da sociedade brasileira.

    Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @RosaAnalu, com o texto: “Garota do Momento tinha o foco na ascensão artística da Beatriz pra inspirar outras garotas negras e tava indo super bem, mas agora a novela virou Bia, Jacira e Clarice #GarotaDoMomento”. Abaixo, há uma imagem humorística de uma figura com aparência de zumbi sentada diante de um notebook, simbolizando alguém exausto, esperando por algo há muito tempo.

    O nome da novela, que remete à ideia de uma figura em evidência, torna-se irônico quando a personagem que deveria ocupar esse lugar é gradativamente apagada da trama principal; por conta disso, internautas criaram o termo “racismo do momento” para se referir a novela nas redes sociais. Isso porque, além do apagamento de Beatriz, notou-se que os outros personagens negros também não são beneficiados na trama.

    Mesmo após a aprovação da Lei nº 12.288/2010, em 2010, os atores negros ainda não conseguem acessar as mesmas oportunidades e os papéis de destaque continuam sendo predominantemente atribuídos a atores brancos. Na prática, ao elaborar uma novela, parece haver um pré-requisito não declarado que privilegia os artistas brancos, marginalizando a presença e a representatividade dos negros em papéis centrais (Santos; Veiga, 2024, p. 171).

    Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @pwquiw, onde o texto diz: “Nossa, só personagem negro se lascando nessa novela né, deveria mudar o nome pra racismo do momento #garotadomomento”. Abaixo, há uma imagem do ator Pedro Novaes, um homem branco de camisa polo azul com uma expressão séria.

    Essa configuração mostra uma estrutura narrativa que resiste a oferecer protagonismo real a personagens negros, mesmo quando o enredo parece inicialmente caminhar nessa direção. A trajetória de Beatriz é marcada por uma sucessão de episódios de violência simbólica e física que, além de pouco problematizados pela narrativa, contribuem para a sua constante deslegitimação como protagonista. Um dos exemplos mais evidentes é o fato de a personagem sofrer agressões verbais e físicas por parte da antagonista Bia, interpretada por Maísa Silva, sem nunca reagir.

    Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @nunooleon, com o texto: “A protagonista preta já foi atacada diversas vezes fisicamente, mas o roteiro nunca permitiu que ela revidasse. RACISMO DO MOMENTO”. Abaixo, há duas imagens de duas cenas diferentes da novela, onde a personagem Beatriz é atacada pela personagem Bia, uma personagem branca.

     

    Além disso, algo que chamou atenção dos telespectadores: nos últimos capítulos, Beatriz sofreu uma acusação injusta de roubo de um colar milionário, ainda não resolvida na história, que simboliza não apenas a criminalização do corpo negro, mas também a forma como a trama opta por manter Beatriz em suspenso, presa a um enredo que não caminha, já que essa narrativa foi pausada para dar ênfase ao casamento de Beto (Pedro Novaes) e Bia, que foi forçado após a menina fingir ter perdido a virgindade com o rapaz. Esse desvio de foco não é apenas uma decisão de roteiro, mas uma escolha que reafirma a centralidade da branquitude, colocando a moralidade e a “honra” de Bia no centro do drama, enquanto o sofrimento de Beatriz é deixado de lado, sem o devido desenvolvimento ou resolução. “[…] as novelas tendem a retratar o negro, que já sofre discriminação na sociedade, de um modo inadequado, o que reproduz estigmas sociais e enaltece a hegemonia de pessoas brancas” (Munanga; Gomes, 2006 apud Lourenço, 2021, p. 9).

    A substituição da jornada de ascensão de Beatriz por uma narrativa que gira em torno da pureza e do casamento de uma jovem branca não ocorre de forma neutra. Ela reafirma valores tradicionais racializados, nos quais a figura da mulher branca é idealizada e protegida, enquanto a mulher negra é exposta à violência e à suspeição, tendo sua voz sistematicamente silenciada.

    A discussão sobre como Garota do Momento negligencia a trajetória de sua protagonista negra e busca rescentrar sua narrativa em personagens brancas, evidencia a percepção de não apenas escolhas estéticas e narrativas por parte da direção da novela, mas estruturas de poder profundamente enraizadas no imaginário televisivo brasileiro. A reação do público nas redes sociais, mostra que os espectadores não apenas consomem a ficção, mas também a interrogam criticamente, exigindo transformações que estejam à altura da diversidade e da complexidade da sociedade brasileira. A crítica à novela, condensada na expressão “racismo do momento”, revela uma recusa coletiva aos apagamentos históricos e uma demanda por representações mais justas e plurais.

    REFERÊNCIAS

    LOURENÇO, Suéllen Stéfani Felício. A Representação de Mulheres Negras em Novelas da Rede Globo. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 18, 2021, Juiz de Fora. Viçosa: UFV, 2021. p. 1-15.

    SANTOS, Welliton Fernando dos; VEIGA, Léia Aparecida. Telenovelas e a questão racial: o papel do estatuto da igualdade racial na representatividade. Discursos Fotográficos, Londrina, v. 21, n. 26, p. 160-174, jun. de 2024.

     

     

     


  • “Véspera”, de Carla Madeira

    Publicado em 05/05/2025 às 16:26

    Por Angelo Perusso

    Bolsista do PET Letras UFSC

    Letras-Português

    MADEIRA, Carla. Véspera 10.ed. Rio de janeiro: Record, 2023.

     

    O que pode florescer da tragédia? De certa forma, sinto que essa é a pergunta que é colocada já no começo do livro Véspera, terceiro romance da escritora Carla Madeira, que alcançou renome nacional nos últimos anos. A autora, formada em jornalismo, tem uma prosa que, embora seja bastante poética e reflexiva, flui em um ritmo fácil e que instiga a ler mais e mais. A escrita de Carla Madeira é daquelas feitas para ser devorada em um domingo chuvoso, e com Véspera não é diferente. Lembro que decidi começar a ler pela manhã em um dia de praia e de certa forma me arrependi, pois o mar azul, o sol e a areia ao meu redor acabaram deixando de ser o foco do meu interesse, que se direcionou para a história de Abel e Caim.

    O título já sugere o que a obra está colocando, tudo que acontece Hoje é produto do Ontem, cada decisão que tomamos acarreta acontecimentos que acarretam novas decisões e assim por diante, nos tornando reféns do que fomos na véspera, não importa o quanto tentemos caminhar livres dessas amarras. Pois bem, o livro inicia com uma cena profundamente marcante: uma mulher para o carro em meio a uma avenida de mão dupla, desce, abre a porta traseira, pega uma criança pequena e deixa na rua, volta para o volante e acelera. É automático se questionar: quem é essa mulher? O que a levou a isso? Quem é essa criança? Por que? A partir daqui, tudo é spoiler.

    O que o livro vai nos mostrar a seguir é que o porquê de tudo começa no antes. O foco narrativo logo deixa a mulher e se volta para um casal em crise, com uma relação muito complicada e atravessada por crenças religiosas, alcoolismo e desamor. Deste combinado complicado surgem duas crianças gêmeas. Após o nascimento dos meninos, o pai, ressentido da esposa, vai ao cartório escondido e batiza os dois gêmeos: Caim e Abel. A mulher, muito temente ao Deus cristão e apegada aos ensinamentos da Bíblia, não pode perdoar o marido por nomear os filhos com o nome do primeiro assassinato da humanidade. A mãe então decide que não irá permitir que o mesmo destino ocorresse com os seus filhos, Caim não mataria Abel nessa história. O primeiro passo para que isso não acontecesse, para ela, foi igualar os dois em tudo. Já eram iguais fisicamente, então seriam iguais também nas roupas, nos horários, no tratamento, nas regras e também no nome: Abel e Caim se tornaram Abel e Abelzinho, e então nem os pais souberam quem era quem.

    Tudo isso acontece logo no começo do livro, que constrói uma trama complexa entre passado e presente e se aprofunda dedicadamente nas dores dos personagens e em como elas se manifestam em suas relações. Todo mundo que já sangrou nessa vida há de sangrar junto dos personagens deste livro.


  • Os perigos de fumar na cama: a naturalidade do horror

    Publicado em 28/04/2025 às 13:41

    Por Rafaela Monticelli

    Bolsista PET-Letras

    Letras-Português

    Os perigos de fumar na cama, livro de estreia da escritora argentina Mariana Enríquez, foi publicado no Brasil em 2023, quatorze anos após a publicação original, na Argentina, em 2009. Trata-se de uma coletânea com 12 contos recheados do elemento essencial que a autora reconfigurou na literatura da América Latina: o horror.

    Mariana aborda o terror com naturalidade, como algo comum e cotidiano na vida das personagens. Ela transforma o medo, o assustar, em algo humano-sentimento, que relembra profundamente seus desejos, obsessões, seu orgulho e seus ciúmes. Além disso, a autora tece com maestria críticas subentendidas nos seus contos, sem deixar de lado a ironia. Dado o contexto da publicação original, Enríquez retrata situações “brincando” com o sobrenatural. Escolhi comentar o meu preferido.

    Em “O mirante”,  acompanhamos trajetórias diferentes ao longo do conto: a inicial,  expositiva e contextualizante; a primeira protagonista e o terror da mulher louca. O conto viaja entre os dois pontos de vista: de Elina e da “forma misteriosa”. Já como cenário temos um hotel em Pinamar, da Província de Buenos Aires, conhecido por ser um lugar meio assombrado; a própria filha do dono não visita mais o local, principalmente por conta da história macabra da mulher louca. Mas o que é essa mulher louca?

    Sem nome nem forma definida, a mulher louca não é nem mesmo um fantasma – ao menos ainda. Para entender quem e o que ela é, primeiro precisamos apresentar Elina, a personagem principal da história.

    Elina era uma mulher-feita, preparada para passar seu aniversário no tenebroso hotel em Pinamar na intenção de também esquecer seu ex-namorado, Pablo. Era cheia de olheiras, cara cansada e sempre com insônia, o cheiro dos vários cigarros que fumava impregnado em suas roupas, depressiva, um tanto antipática e de olhar desafiador. Logo na primeira noite no hotel, a mulher teve um pesadelo com uma de suas piores lembranças da praia: o assédio que sofreu de um homem completamente bêbado e sem noção.

    Ainda presa aos sentimentos da noite anterior, e com os pensamentos voando sempre à Pablo na esperança de receber uma ligação, passou por crises depressivas sozinha em seu quarto. Aquilo a machucava, a atormentava, mas a fazia se sentir viva. Ao mesmo tempo, a narrativa mostra  que tinha esperança que a morte a alcançasse.

    No dia seguinte – e isso é muito importante – Elina conhece uma garota no café da manhã, um pouco estranha, forçada e obcecada por fantasmas: perguntou sobre o quarto de Saint-Exupéry, onde todas as fotos saiam borradas como se o fantasma dele ainda vagava por ali; perguntou a Elina sobre o mirante do hotel, que ficava fechado para a visitação. Curiosa, a mulher seguiu a garota até o mirante.

    “— A filha do dono, quando pequena, acreditava que tinham escondido a louca aqui.” – Dizia a garota. O foco da narrativa então muda, não estamos mais na mente de Elina e sim da garota. Mas quem é ela? De onde veio? São informações que nem são citadas no conto. Bom, ao menos não estou abordando-as aqui.

    Vejamos, então, os pensamentos da garota:

    “Era melhor trazê-la ao mirante de novo, no dia seguinte. E deixá-la trancada. E talvez mostrar a ela sua verdadeira forma antes de abandoná-la sozinha lá em cima. […] Mostrar sua verdadeira forma. E de seu verdadeiro cheiro. E, claro, de seu verdadeiro toque. […] Elina poderia voltar a subi-la, e se jogar de novo. E então o hotel teria Elina passeando em círculos com suas mãos frias e seus braços ensanguentados. E ela seria livre, porque finalmente a encontrara.” (Enríquez, 2023, p. 75-76).

    Encontrara quem?

     A mulher louca que tanto assombrava o hotel – que então finalmente assombraria. Essa forma, seja fantasma, criatura, ser sobrenatural, se alimentava dos pesadelos de Elina, a atormentava em seus sonhos e passou anos esperando por alguém como ela. Tudo que ela desejava era ser livre e, quando Elina chegou no local, não perdeu a oportunidade de deixá-la mais louca ainda, enfim concretizando aquele ser do passado da filha do dono.

    O horror deste conto é um incômodo que “cutuca na ferida”. Atormentada por problemas diários e mentais, como a depressão e a dependência emocional, Elina jamais foi livre e no conto notamos que não será. Ela se torna o fantasma do passado de alguém, da mesma forma que a criatura em forma de garota fez com o trauma de Elina. O conto sugere esse ciclo.

    Quem será a próxima mulher-louca?

    REFERÊNCIA

    ENRÍQUEZ, Mariana. Os perigos de fumar na cama. Tradução de Elisa Menezes. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca. 2023.


  • De onde vem a linguagem?

    Publicado em 15/04/2025 às 13:52

     

     Por Anna Letícia de Abreu – Bolsista PET-LETRAS

    Gabrieli Marques – Voluntária PET-LETRAS

    Isabela Milioli – Autora convidada

    Maysa Monteiro – Bolsista PET-LETRAS

     

    Você já parou para pensar de onde vem a linguagem? Por que nós, seres humanos, desde muito cedo possuímos a capacidade de nos comunicar e entender o código linguístico mesmo antes de termos feito uma aula de gramática? Mais do que decorar regras, o que nos faz ter a predisposição de adquirir esse sistema? Por exemplo, como uma criança, até os quatro anos de idade, já é capaz de dominar esse jogo linguístico? A aquisição da linguagem é um processo tão automático que quase não percebemos o quanto ele é complexo. Muitos estudiosos se dedicaram a investigar sobre o assunto, trazendo debates, teorias e descobertas que nos ajudam a responder essa pergunta: de onde vem a linguagem?

    Para refletir sobre algumas questões que giram em torno da aquisição e da linguagem, nós, graduandas de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas, sendo acompanhadas pela Profª Dra. Cristiane Volcão, da disciplina de Aquisição da Linguagem, criamos como método de divulgação científica uma série especial do #ComunicaPET, que chamaremos por #ComunicaLinguagem. Serão três edições sobre temas de interesse da disciplina, contando com posts de Instagram, texto publicado no site e ainda podcast! Acessível para aqueles que tem curiosidades sobre aquisição e suas várias possibilidades!

    De início, é importante diferenciar linguagem e língua. A linguagem é a capacidade que o ser humano tem de se comunicar e usar símbolos para representar o mundo, e a língua é o sistema específico que usamos para fazer isso – como o Português, o Inglês, a Libras e outras muitas opções. Tendo esses dois conceitos em mente, veremos algumas teorias que tentam explicar nosso questionamento, debatendo de onde vem a linguagem.

    Na Teoria Behaviorista ou Comportamentalista, por muito tempo acreditou-se que a linguagem era aprendida como qualquer outro comportamento e que as crianças aprendiam por imitação, repetição e recompensa. Frederic Skinner, um de seus teóricos, afirmava que a criança aprende a falar vendo os adultos e os imitando, recebendo respostas positivas quando acerta e negativas quando erra. Parece fazer sentido prestarmos atenção naquilo que as crianças realmente dizem, pois elas têm uma capacidade de produzir sentenças que nunca ouviram antes, como “eu fazi” ou “eu não sabo”. Nesses casos, ainda cometendo “erros”, a criança está entendendo e aplicando as regras de sua língua, mesmo sem nunca ter escutado essas frases antes. Se a aquisição fosse apenas por meio de imitação, de onde viriam essas “invenções”?

    Já na Teoria Gerativista, acredita-se que a linguagem não é apenas aprendida, ela é inata, ou seja, pertence ao indivíduo desde o seu nascimento. Essa teoria revolucionou as discussões sobre o assunto e foi defendida por Noam Chomsky. Para esse linguista, já nascemos com uma espécie de “kit básico”, que nos prepara para adquirir qualquer língua, ele chama isso de Gramática Universal. Isso explicaria porque bebês do mundo todo passam por estágios muito semelhantes em relação ao desenvolvimento linguístico mesmo falando idiomas completamente diferentes. Para ele, o ambiente da criança é importante, mas apenas ativa um conhecimento que já está ali no cérebro. Ou seja, não aprendemos o código linguístico apenas porque imitamos falas ou sinalizações de outras pessoas, e sim porque já estamos programados para isso.

    Ao longo das últimas décadas, além dessas teorias que citamos, muitas outras foram trazidas para o debate: o Cognitivismo, teoria defendida por Piaget, que diz que a linguagem está vinculada ao desenvolvimento cognitivo geral dos seres humanos e que o conhecimento se constrói através de estágios de desenvolvimentos; o Interacionismo, defendido  por Vygotsky, que destaca o papel das interações sociais para o desenvolvimento da linguagem.

    Então, afinal, de onde vem a linguagem? Os debates sobre o assunto seguem abertos, até porque nenhuma das teorias dá conta de explicar tudo, entretanto, o gerativismo, com sua proposta de que nascemos biologicamente preparados para adquirir a linguagem, é hoje uma das teorias mais influentes e amplamente aceita. Isso não significa que as outras estejam descartadas, pois elas também oferecem explicações e complementações valiosas.

    Por fim, o que nos impressiona é saber que a linguagem, algo que usamos sem pensar, passa por processos mentais e universais, e entender mais sobre isso é entender mais sobre nós mesmos. Agora quando você ouvir uma criança pronunciando “eu não sabo”, vai entender que isso é um sinal de que a mente daquela criança está criando, testando e ajustando hipóteses sobre o funcionamento de sua língua, e isso é incrível.

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

     

    CEZARIO, Maria Maura; MARTELOTTA, Mário Eduardo. Aquisição da linguagem. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo e cols. (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 207-216.

    DEL RÉ, Alessandra. A pesquisa em aquisição da linguagem: teoria e prática. In: DEL RÉ, Alessandra e cols. (org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolinguística. São Paulo: Contexto, 2013. p. 13-44.

    FARIA, Evangelina; CAVALCANTE, Marianne. Aquisição da linguagem: um olhar sobre o campo e teorias. In: FEITOSA, Antônio LF; DEPOLLI, Gabriel T; VOGELEY, Ana. Mapas conceituais em fonoaudiologia: Linguagem. Ribeirão Preto: BookToy, 2023. p. 19-34.

    FINGER, Ingrid. A aquisição da linguagem na perspectiva behaviorista. In: FINGER, Ingrid e QUADROS, Ronice Muller de. Teorias de aquisição da linguagem. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008. p 17- 44.

    GROLLA, Elaine; SILVA, Maria Cristina Figueiredo. Pra conhecer: aquisição da linguagem. São Paulo: Contexto, 2014.

    HOCHSPRUNG, Vitor. Divulgação Científica: Notas sobre Popularização da Linguística na Internet e na Sala de Aula. Ensino de línguas: propostas e relatos de experiência. São Paulo: Blucher, 2023. Disponível em https://openaccess.blucher.com.br/article-details/05-23953.  Acesso em: 13 mar. de 2025.

    KAIL. Michèle. Aquisição da linguagem. São Paulo: Parábola, 2013. p. 11-35 Aquisição: dos sons às palavras.

    SCARPA, Ester Mirian. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2011.