A língua como espécie parasitária: relações entre linguística, ecologia e evolução em Salikoko S. Mufwene

09/01/2023 12:39

Por Emmanuele Amaral Santos

Bolsista PET Letras UFSC
Letras – Português

 

Segundo o linguista congolês Salikoko S. Mufwene, é essencial que linguística como campo de estudo científico não apenas pense nas possíveis mudanças resultantes do processo de evolução, mas investigue que agentes participam ativamente dessas mudanças e como fatores estruturais da língua se comportam nesses processos. A partir dessas indagações e de um amplo estudo em conceitos da linguística evolucionária, da filogenética e ecologia, no capítulo seis de The Ecology of Language Evolution (2003), intitulado Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice,  Mufwene  discute tais questões paralelamente à formação, à evolução e ao desaparecimento de línguas crioulas de base lexical europeia, utilizados no capítulo como exemplos.

Imagem 1:  Mufwene

Descrição de imagem 1: Um homem negro de cabelos brancos rentes a cabeça olha para a lateral esquerda da fotografia sem encarar a camêra, posicionando seu branço direito em algum ojetivo que não fica explícito na imagem. Ele usa óculos de grau redondo, veste terno e gravata azuis acompanhados de uma camisa formal azul clara. Ao fundo, é possível identificar uma estante marrom repleta de livros com capas de diversas cores e duas caixas laranjas empilhadas na lateral esquerda da fotografia.

Para introduzir os conceitos de ecologia e evolução partindo das noções teóricas trabalhadas no ramo de genética de populações, Mufwene descreve a evolução como “[…] mudanças a longo prazo que ocorrem em uma variedade linguística após um período de tempo.” (MUFWENE, 2003, p.145), além de destacar a diferença entre a evolução estrutural, que engloba as características morfossintáticas, fonético-fonológicas e lexicais, e a evolução pragmática, a qual faz referência às regulações sociais e contextuais do uso da língua. Essas diferenciações, no entanto, não assumem um caráter excludente, ou seja, elas coexistem no processo de evolução das línguas.

Mufwene ainda pontua que para entender como esses caminhos evolutivos são cunhados, é importante caracterizar o conceito de ecologia. A partir de Johanna Nichols (1994), essas ecologias podem ser caracterizadas como ecologia progressiva, quando o processo de mudança (evolução) é compreendido como responsável pelo aumento na complexidade da língua, ou como ecologia darwiniana, se partirmos do princípio que mudança (evolução) ocorre por seleção natural gerando diferentes especiações da língua (variações linguísticas).

Para o autor e para diversos autores da linguística moderna, como Gould (1993), o processo evolutivo não possui um propósito definido, ou seja: “Sistemas linguísticos podem evoluir tanto para uma maior complexidade estrutural quanto para estruturas mais simples, assim como podem ser novamente reestruturados sem que o sistema seja enquadrado como mais simples ou complexo que o anterior” (MUFWENE, 2003, p.147).

Deste modo, o capítulo propõe que o uso da noção de ecologia darwiniana seria mais assertivo em relação à linguística, já que salienta a existência de variedades e permite investigar os mecanismos que as originam.

Imagem 2: Primeira edição do livro The Ecology of Language Evolution publicado pela Cambridge University Press em 2001

A capa de um livro bege apresenta uma espécie de obra de arte centralizada. Esse quadro retangular possui um fundo marrom-amarelado e diversas figuras geométricas, como um círculo branco dentro de um círculo verde na margem superior esquerda e duas fileiras de triângulos em diferentes tamanhos que ocupam toda a lateral direita do quadro. Além disso, a capa também possui uma lateral esverdeada que percorre as margens esquerda e superior de todo o livro. No canto superior direito é possível ler “Cambridge Approaches to Language Contact” em fonte branca e dentro de uma caixa de texto preta. Logo abaixo, aparece o título do livro “The Ecology of Language Evolution” e, em baixo deste, o nome do autor “Salikoko S. Mufwene”. No canto inferior esquerdo, é possível notar uma caixa de texto retangular com o escrito “Cambridge”.

No decorrer do capítulo, Mufwene envolve os conceitos de evolução e ecologia a partir da ideia de que “A evolução de uma língua ocorre a partir de cada falante, por meio de seus atos de fala individuais e seus idioletos […]” (MUFWENE, 2003, p.147); deste modo, o falante como indivíduo assume o protagonismo do processo de evolução sem excluir os aspectos de controle coletivo da comunidade de fala, que regula essas transformações tanto estrutural quanto pragmaticamente durante o processo de evolução. Esse sistema de negociações entre o indivíduo e o grupo demonstra a natureza competitiva e seletiva das interações dentro do sistema de uma língua viva.

Ao abarcar esse protagonismo do indivíduo (idioleto) no processo de evolução (mudança), o autor reflete que as analogias da língua como um só “organismo”, que é coexistente entre uma mesma comunidade de fala,  iniciadas no século XIX, estariam equivocadas, visto que ela não são capazes de explicar as variações dentro de uma mesma língua. Além disso, a analogia de língua como organismo não responde a outras questões ligadas à variação, como é o caso dos idioletos de um mesmo coletivo não serem idênticos, das diferentes velocidades de variação entre grupos sociais distintos pertencentes à uma mesma comunidade de fala e das especificidades do caso das línguas em regiões de contato linguístico.

Deste modo, Mufwene advoga que a analogia de língua como uma espécie seria mais adequada. O autor advoga que essa analogia permite compreender o processo de evolução como um sistema de mudanças dentro de uma estrutura que aceita um certo grau de variação dentro de cada espécie. Ademais, essa perspectiva também permite investigar o que chama-se de transmissão vertical e transmissão horizontal da língua, propiciando um mapeamento dessas variações de acordo com estudos quantitativos e qualitativos. Sobre o processo de transmissão de características provenientes de idioletos que acabam gerando novas variantes de espécies (línguas), Mufwene salienta sobre a maior importância dos fatores quantitativos, ou seja, do número de falantes.

Essa importância e outros fatores, como a relação direta entre a sobrevivência/favorecimentos sócio-histórico-econômicos entre uma língua e seus falantes, sustentam a perspectiva de Mufwene de que a língua está mais para uma espécie parasitária, com uma relação simbiótica entre a língua e o falante do que um tipo de espécie animal. Além disso, os parasitas como espécie são muito mais propícios à especiação (variações) e à evolução (mudança) em um período de tempo menor.

Tal relação simbiótica também permite refletir sobre o impacto de políticas linguísticas de caráter repressivo paralelmente à políticas de tortura e genocídio. A partir do apanhado histórico presente no artigo Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência lingüística, é possível notar que desde o período colonial foram estabelecidas políticas monolíngues que estimulavam o uso da língua portuguesa como única  forma de comunicação oficial e posteriormente, detentora do status de língua nacional:

O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império” (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536). A política lingüística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento lingüístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história lingüística do Brasil poderia ser contada pela seqüência de políticas lingüísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram […] .  (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Através da analogia apresentada por Mufwene da língua como parasita e do falante como hospedeiro, podemos analisar que, além da substituição de línguas autóctones pela língua portuguesa, práticas como o isolamento dessa comunidade linguística em regiões que dificultem a sua sobrevivência e o extermínio de fauna e flora essenciais para a continuidade de rituais de cura/tradições também sustentam processo de glotocídio. Em outros períodos históricos do Brasil, como durante a chamada Era Vargas, práticas glotocidas semelhantes também fizeram parte das políticas linguísticas monolíngues de cunho nacionalista; como explicita Oliveira:

A Polícia Militar, em Santa Catarina como em outros estados, prendeu e torturou e obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que falando alemão. (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Nesse contexto, o ato de falar português estava diretamente ligado a ser reconhecido e validado como cidadão brasileiro. Adaptando essa noção à analogia apresentada por Mufwene, é como se os catarinenses falantes de alemão ou italiano estivessem contaminados por um parasita diferente, o que colocava em risco e/ou competição a sobrevivência da língua portuguesa nesta região, além de possibilitar questionamentos sobre parâmetros de cidadania impostos.   

Deste modo, é perceptível as diversas aplicações que as ideias apresentadas por  Salikoko S. Mufwene, as quais incluem debates sobre política linguística, estudos de variação e mudança, além de reflexões sobre a amplitude de discussões linguísticas sob o viés de outras ciências, como a ecologia e a genética de populações.

 

REFERÊNCIAS

MUFWENE, Salikoko S.  Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice. In: MUFWENE, Salikoko S.The Ecology of Language Evolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.  p. 145-156. (Cambridge Approaches to Language Contact).

OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, n. 7, p.19-26, 2009.

 

Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras

27/12/2022 16:25

Por Vítor Pluceno Behnck
Ex-bolsista PET Letras UFSC
Graduado em Letras – Inglês (UFSC)
Mestrando em Inglês – Estudos Linguísticos (PPGI/UFSC)

 

Este último 23 de dezembro de 2022 (sexta-feira), último dia da minha graduação de Licenciatura em Letras – Inglês, conclui também minha trajetória enquanto bolsista do Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina. Quando o professor Atilio Butturi Junior me pediu para escrever um texto “de despedida”, fiquei pensando em todas as pessoas que passaram por mim durante esses três anos de PET-Letras. Foram vários colegas bolsistas, dois tutores, e muitos colaboradores voluntários e inscritos nas ações de ensino, pesquisa e extensão de que participei. Nesse texto, quero relatar e compartilhar minhas vivências no programa, a fim de criar uma memória que não se finda em si só, mas que se mantém como um convite àqueles que querem participar e colaborar com o programa.

Iniciei minhas atividades no Programa em agosto de 2019, como professor voluntário de Língua Inglesa. O que pouca gente sabe é que não pude estar presente na minha primeira aula como professor por conta de um momento muito delicado da minha trajetória pessoal, que foi o falecimento do meu pai. Atuar como professor voluntário foi muito importante para mim naquele momento, pois criou um desafio a minha rotina que colaborou no meu processo de compreender aquele momento da minha vida. Posteriormente, já como bolsista, lecionei mais uma vez o curso de Língua Inglesa 1, mas na modalidade remota com minha colega Luciana dos Santos. Ainda neste ano, lecionei mais um curso, mas dessa vez voltado à formação dos professores voluntários de Línguas Adicionais do programa. Parafraseando Freire, aprendi ensinando e ensinei aprendendo.

Durante o período de Ensino Remoto Emergencial (ERE) ocasionado pela pandemia de Coronavírus, uma das iniciativas do PET-Letras foi a publicação dos textos ComunicaPET, visando estimular a produção textual dos bolsistas e o compartilhamento de suas vivências durante o isolamento social. O projeto seguiu seu próprio rumo até os dias atuais, e nesse meio tempo tive a oportunidade de compartilhar algumas escrevivências: na primeira matéria publicada, intitulada “How to study English during the quarantine? Dicas para estudar Inglês em casa”, busquei colaborar com aqueles que queriam continuar os estudos em Inglês, apesar da crise sanitária, econômica, educacional e social. Nesse mesmo contexto, escrevi “Sobre salvar vidas e alimentar almas”, compartilhando artistas — Susano Correia e Gabriela Buffon — cuja arte me ajudou a passar por aquele momento. Ainda isolado em casa, compartilhei minha experiências com podcasts no texto “Podcast: o que é, para que serve e como ouvir?”.

A partir desse texto, resolvi tornar meus ComunicaPETs narrativas mais pessoais e que, de alguma forma, contassem minha história. Escrevi sobre minha relação com a Língua Alemã, no texto “Língua e memória: ‘eine Hommage an meinen Vater’”, divulguei um trabalho de graduação no texto “Você conhece o Guia Prático para Professores de Primeira Viagem?”, e teci comentários sobre como percebo, numa perspectiva ideológica, o ensino de Língua Inglesa no texto “Inglês como língua de transformação: um manifesto”. No décimo mês do segundo ano de pandemia, me questionei: “Quem seremos nós quando a pandemia acabar?”, e já em 2022 relatei minha experiência cinematográfica com o filme “‘The Lost Daughter’ (2021): a review on a son’s vision”.

Mais tarde nesse mesmo ano pude compartilhar “O que eu aprendi com bell hooks”, prestando uma homenagem à autora que faleceu no ano anterior e que tanto colaborou para minha formação profissional e acadêmica. Nesse mesmo ano, participei de um intercâmbio cultural e acadêmico na Universidade de Colônia, na Alemanha, que culminou no relato de experiência “Cologne Summer Schools: my experience as an international student”. Por fim, chegamos ao presente texto, que celebra todos os que vieram antes: “Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras”.

Ademais, uma atribuição permanente que tive do primeiro ao último dia como bolsista do PET-Letras foi o gerenciamento do projeto PET-Mídias, que gerencia a produção e o compartilhamento dos materiais de comunicação do grupo. Dessa maneira, estive um pouco presente em grande parte das atividades do grupo, até mesmo aquelas com que eu não tinha relação direta. Nesse sentido, é interessante ressaltar para aqueles que visam entender o funcionamento do Programa, que não se trata só de ações como os cursos de idiomas, mas demais ações de ensino, pesquisa e extensão que colaboram para difusão do conhecimento na área de Linguística, Letras e Artes dentro e fora da universidade.

Na minha despedida, quero enfatizar como ser um bolsista PET pode ser um diferencial na vida de um estudante curioso, que se interessa em explorar o conhecimento e as suas possibilidades. A horizontalidade do grupo permite que o Programa tenha um perfil dinâmico, que se altera a cada novo integrante que adere ao Programa e que deseja implementar seus projetos e colaborar com aqueles que já existem. Não obstante, não posso ignorar o claro desrespeito das autoridades durante esses três anos no que diz respeito ao atraso das bolsas dos estudantes e da verba de custeio do Programa, além da falta de reajuste das bolsas há mais de uma década, o que faz com que tenham perdido 76% do seu poder de compra nesse meio tempo (SBPC, 2022).

Por fim, ressalto a importância da união dos grupos PET — especialmente em eventos como Encontro Nacional do Programa de Educação Tutorial (ENAPET) — num constante movimento de reafirmação da relevância do Programa em termos de desenvolvimento científico, cultural e tecnológico das Universidades. Para além desses benefícios, o Programa resiste também como uma ferramenta de permanência estudantil, onde estudantes podem produzir ciência e cultura que colabora com o desenvolvimento social ao passo que recebem uma remuneração que colabora no custeio dos seus estudos.

Por fim, agradeço ao Programa, aos tutores Carlos Henrique Rodrigues e Atílio Butturi Junior e aos demais colegas petianos por três anos de muito trabalho, dedicação e comprometimento com as ações de ensino, pesquisa e extensão realizadas. As habilidades que pude desenvolver no Programa contribuíram para formação de um profissional muito mais empático, sensível ao seu redor e preocupado em levar para fora dos muros o que há de melhor na Universidade. Vida longa ao Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da UFSC!

Fotodescrição: conjunto de sete imagens impressas postas sobre uma mesa de madeira. De baixo pra cima na primeira fileira, há uma foto em que só é possível ver um campo verde e algumas pernas. Abaixo, há vários integrantes do PET-Letras junto ao ex-tutor Carlos. Abaixo, há uma foto do primeiro encontro de formação de professores voluntários do PET-Letras em agosto de 2019. Abaixo, há uma foto com um fundo branco de cartolina com palavras escritas com o ex-bolsista Vítor na frente. Na coluna da direita, de baixo para cima, há a foto do ex-bolsista Vítor com o livro “O Educador” em frente ao seu rosto, cuja capa é a silhueta de Paulo Freire, abaixo há uma foto dos ex-bolsistas Luciana e Vítor conversando com uma aluna no Varandão do CCE, e abaixo há a última foto da coluna, onde estão o ex-tutor Carlos e o ex-bolsista Vítor no varandão do CCE.

“Wandinha”: o sucesso do grotesco

19/12/2022 06:21

Por Daniely de la Vega

Letras Português

Bolsista PET-Letras

Lançada em 23 de novembro, Wandinha é uma série estadunidense dirigida e produzida por Tim Burton. O novo sucesso da Netflix tem como protagonista a jovem Wandinha, interpretada por Jenna Ortega. Quem ainda não assistiu à série deste ano possivelmente lembra-se da personagem sob a pele de Christina Ricci, que deu vida a Wandinha nos filmes A Família Addams (1991) e A Família Addams 2 (1993). A história envolvente, os figurinos excêntricos e as críticas sociais não são as únicas razões para a nova série ser um sucesso instantâneo.

Segundo Marques (2021, p. 1), “[…] o grotesco atrai telespectadores desde o século XV até os dias atuais. O gênero – ou estética, como alguns autores preferem –, engloba o excêntrico, a comédia, o terror, o burlesco, o anormal e diversos elementos considerados ‘estranhos’ dentro da sociedade”. Além de encontrarmos o fascínio pelo grotesco na literatura, também o encontramos na cinematografia. O êxito da franquia A Família Addams, inspirada nos quadrinhos de Charles Addams, origina-se, principalmente, de suas personagens com personalidades excêntricas e hábitos macabros. De acordo com Carneiro (2019 apud MARQUES, 2021), a série A Família Addams (1964) foi a primeira produção lançada depois de um período de censura nos Estados Unidos que apresentou uma família fora dos padrões tradicionais da época, o que gerou um grande sucesso em uma sociedade que buscava sair do conservadorismo. Conforme Marques (2021, p. 2), “[…] tudo isso se liga diretamente ao grotesco, onde os indivíduos são atraídos por sua natureza estranha e comicamente macabra, mostrando um universo fora do eixo e da normalidade”.

Ainda segundo Marques (2021), Wandinha Addams foi retratada pelo cartunista Charles Addams como uma menina imaginativa que gosta de brincar em cavernas subterrâneas e tem um fascínio pela morte e por objetos considerados grotescos. A personagem causa uma sensação de estranheza nos telespectadores, visto que ela é uma criança com traços macabros, como seu gosto pela brincadeira de torturar seu irmão mais novo, Feioso – que é encorajada por seus pais e pelo próprio menino, o que gera comicidade.

O nome Wandinha é a tradução brasileira para o nome Wednesday (“Quarta-feira”). Segundo Carneiro (2019 apud MARQUES, 2021), o nome Wednesday foi inspirado na canção infantil Monday’s Child, que diz:

Criança de segunda-feira é justa do rosto, criança de terça-feira é cheia de graça, criança de quarta-feira é cheia de aflição, criança de quinta-feira tem muito a percorrer, a criança de sexta-feira ama e doa, criança de sábado trabalha duro para ganhar a vida, mas a criança que nasce no Sabá é justa e sábia em todos os sentidos. (CARNEIRO, 2019, p. 29 apud MARQUES, 2021, p. 13, grifo nosso)

Na série da Netflix, em contraste com as adaptações anteriores, Wandinha é uma adolescente que tem um grande apreço pela escrita, mas tem todos os seus livros rejeitados pelas editoras por serem extremamente “mórbidos”. Depois de cometer uma tentativa de homicídio contra a equipe de natação de sua antiga escola, ela é enviada por seus pais para a Escola Nunca Mais, conhecida por ser um lugar para “excluídos”. E, em outras palavras, seres ou pessoas que possuem dons sobrenaturais. Wandinha terá de aprender a dominar seus poderes psíquicos para conseguir desvendar o mistério da onda de assassinatos que assola a cidade, que tudo indica ser obra de um monstro, além de um segredo que envolve sua família há décadas.

Jenna Ortega soube dar vida a uma personagem sarcástica, intimidadora e sádica sem esquecer a humanidade. O talento da atriz somado à direção de Tim Burton foram fundamentais para o sucesso da série. O diretor até mesmo pediu a Ortega que não piscasse durante as cenas para gerar um efeito mórbido. A franja de cabelo usada por Wandinha, uma característica que não existia na personagem nas produções anteriores da franquia, possivelmente tem o papel de cobrir suas sobrancelhas, que são a base de nossas expressões faciais, para torná-la mais inexpressiva.

Fonte: Google Imagens

Descrição: A imagem mostra a personagem Wandinha interpretada por Jenna Ortega. Ela tem o cabelo preto e longo preso em duas tranças laterais e o rosto inexpressivo. A imagem mostra somente a parte superior de sua blusa, que é preta com pequenos desenhos indistinguíveis em dourado e possui uma gola branca. Há somente um fundo liso em roxo atrás da personagem.

De acordo com Sodré e Paiva (2014 apud MARQUES, 2021), o grotesco é um gênero operado pela catástrofe. Em Wandinha, assistimos à série se iniciar pela personagem libertando piranhas na piscina em que a equipe de natação de sua escola está treinando depois de praticar bullying contra Feioso. Conforme Marques (2021), em toda a franquia A Família Addams, acompanhamos o terror se transformar no cômico e o belo no bizarro. A principal razão para a série fazer tanto sucesso é que os telespectadores anseiam por algo que fuja dos padrões tradicionais. E Wandinha satisfaz tal desejo devido à sua estética grotesca.

 

 

REFERÊNCIA

MARQUES, Laura Giordani. O sucesso do grotesco: uma análise da série A Família Addams. 2021. 33 f. TCC (Graduação) – Curso de Publicidade e Propaganda, Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2021. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/20506. Acesso em: 15 dez. 2022.

Você sabe como ocorre o aprendizado da língua de sinais pela criança surda?

11/12/2022 16:02

Débora Klug e Hanna Boassi

Letras-Português

Bolsistas do PET-Letras

 

Em abril de 2002, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) foi oficialmente reconhecida como a língua oficial dos surdos pela Lei Federal nº 10.236 e a partir disso mudanças significativas em relação à comunidade surda aconteceram. Desta forma, a Libras passou a ser um direito das pessoas surdas — a importância da Libras como um direito significa que a pessoa consegue estar inserida dentro da sociedade, compreender o mundo e interagir com ele, como afirmam Elizabete Alves e Silvana Frassetto (2015).

Assim como outras línguas, a língua de sinais não é universal. Cada país possui a sua própria língua de sinais, que tem influências culturais do local a que pertencem. Então, diferente do que muitos pensam, todas as línguas de sinais possuem estruturas gramaticais próprias, sendo compostas pelos níveis fonológico, morfológico, sintático e semântico. Sendo assim, a única coisa que a diferencia das demais línguas é que é uma língua de modalidade visual.

Há um linguista norte-americano chamado Noam Chomsky, que alguns chamam de “pai da linguística moderna”,  e ele acredita que toda criança possui um dispositivo interno chamado faculdade da linguagem. Segundo ele, por isso, a linguagem é inata ao ser humano, sendo acionada através de estímulos linguísticos. Esses estímulos estão presentes no ambiente em que a criança está inserida, ou seja, tudo o que ela tem contato com a língua ao seu redor é um estímulo. Mesmo que esses estímulos não sejam completos – uma criança não vai ter contato com todos os elementos existentes da sua língua –, a criança é totalmente capaz de atingir a fluência de uma língua. Estes estímulos são chamados de inputs linguísticos.

Fonte: https://leiturinha.com.br/blog/wp-content/uploads/2021/01/iStock-1209996526-2048×1365.jpg

Descrição de imagem: no fundo, se percebe uma árvore desfocada; em frente a árvore, uma criança negra usando uma faixa branca no cabelo e uma camiseta listrada preta e branca gesticulando o sinal de Libras.

É importante compreender que a língua de sinais é a primeira língua dos surdos, e aqui vamos entender um pouco sobre como funciona a aquisição e o aprendizado dessa língua. A maioria das pesquisas feitas sobre esse assunto foram realizadas com crianças surdas com pais surdos, já que essas estão expostas ao input linguístico adequado para a aquisição da linguagem de forma natural – assim como uma criança ouvinte que adquire uma língua falada, por exemplo. Mas alguns estudos com crianças surdas com pais ouvintes resultaram, na maioria das vezes, num atraso na aquisição da linguagem, justamente pela falta desse input linguístico, já que as famílias normalmente demoram a conhecer a língua de sinais.

Uma publicação no Instagram do perfil SOPA-Lab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feito por Jociane Vieira de Farias (2022), apresenta uma comparação entre o desenvolvimento da língua de sinais e o da língua falada em crianças nos seus primeiros anos de vida. Ela explica que do primeiro ao terceiro mês de vida é comum que a criança emita sons, choros com intenção comunicativa e produção de gestos manuais. Depois disso,  a partir do quarto mês até o sexto mês de vida, se iniciam os balbucios, que podem ser tanto vocálicos como gestuais, imitando sons ou gestos emitidos por outras pessoas.

Já do sétimo ao nono mês de vida o bebê começa a produzir as primeiras sílabas orais ou manuais, por exemplo: o uso oral da sílaba “bo”, que comumente é usado para “bola”; e o uso gestual da mão aberta na bochecha, que normalmente significa “mãe”. A partir do décimo mês, a criança começa a produzir palavras com duas sílabas, como “mama” ou “papa” e a entender a entonação que é associada às falas ou à sinalização dos adultos por perto. Com um ano de idade, a criança já compreende o significado de algumas frases comuns ao seu cotidiano, que são acompanhadas de gestos e expressões.

Aos dois anos, as crianças já começam a produzir frases maiores, com combinações substantivo-verbo (por exemplo: cachorro brincar) e substantivo-adjetivo (como: árvore bonita). Nessa idade, a criança geralmente já possui mais de 50 palavras ou sinais em seu vocabulário. Com três anos, começam a diferenciar tempos e modos verbais — ou seja, conseguem diferenciar passado, presente e futuro, assim como indicativo, subjuntivo e imperativo. Quando a criança atinge os quatro anos, há uma melhora nas construções gramaticais (nas frases que ela monta); e também nas conjugações verbais (a criança percebe melhor as regras e usos das conjugações dos verbos na língua); também percebe-se que a criança começa a fazer monólogos, falar sozinha consigo mesma, tanto as crianças surdas em sinais quanto as ouvintes em língua oral. Aos cinco, começam a estabelecer comparações, observar semelhanças e diferenças e têm início do uso social da linguagem. As frases que produzem são equiparadas ao padrão de adultos. Por fim, dos seis anos em diante, se complexificam as noções corporal, espacial e temporal, assim como as estruturas sintáticas (elas são as combinações das palavras nas frases, e a combinação das frases entre si). Tudo isso ocorre de maneira progressiva.

A diferença entre a aquisição da linguagem entre uma criança surda e uma criança ouvinte é que, em determinado momento, logo após os primeiros balbucios, a criança surda normalmente para de oralizar e começa a focar principalmente em estímulos gestuais e visuais.

O período crítico de aquisição da linguagem de uma criança começa por volta dos dois anos de idade e vai até mais ou menos a puberdade, esse período pode ser considerado como o “pico” do processo de aquisição da linguagem; não que seja impossível haver aquisição em outros períodos, afirmam as linguistas da Universidade Federal de Santa Catarina, Ronice Müller de Quadros e Aline Lemos Pizzio 2011). As crianças surdas de pais ouvintes, que acabam sendo expostas mais tarde à língua de sinais, apresentam mais dificuldades na aquisição do que as crianças que foram expostas desde cedo.

Sendo assim, percebemos que o processo de aprendizagem da língua de sinais pela criança surda é equivalente ao aprendizado da língua oral pela criança ouvinte. A diferença entre eles obviamente é marcada pela diferença inerente entre essas línguas, assim como há diferenças no aprendizado de uma criança inglesa, em contato somente com o inglês, e uma criança brasileira, em contato somente com o português. Por fim, para além dessas diferenças incontornáveis, não devemos esquecer que a língua de sinais e a língua oral não possuem diferenças em termos hierárquicos, como se uma fosse mais difícil e complexa de aprender que outra. Aprender a língua de sinais é um direito da criança surda e garantir que ela tenha essa oportunidade de maneira adequada é um dever de uma sociedade que visa a igualdade e a justiça.

REFERÊNCIAS

ALVES, Elizabete Gonçalves; SORIANO, Silvana Frasseto. Libras e o desenvolvimento de pessoas surdas. Aletheia, Canoas, v. 46, p. 211-221, jan./abr. 2015.

PIZZIO, Aline L. ; QUADROS, Ronice Müller de. Aquisição da Língua de Sinais. Florianópolis: CCE/UFSC, 2011. v. 1.

FARIAS, Jociane Vieira de. O processo de aquisição e desenvolvimento da língua falada e da língua de sinais na criança. 9 de maio de 2022. Instagram: @sopa_lab. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CdVsMEcsdgQ. Acesso em: 6 dez. 2022.

Língua de sinais: um direito da criança surda

06/12/2022 06:18

 

Por Débora Klug e Hanna Boassi

Letras-Português

PET-Letras

Nos momentos iniciais de nossas vidas, nós temos nossos primeiros contatos com o mundo, com as pessoas, objetos, sensações à nossa volta, e é a partir desses contatos que nos constituímos sujeitos no mundo. A relação do ‘eu’ com o ‘outro’ é importante, pois permite o reconhecimento do ‘outro’ e, assim, o próprio autoconhecimento, em um movimento de individualização intrapessoal, por meio do contato intersocial. Não somos nós que afirmamos isso, e sim um psicólogo bielo-russo do século XX, chamado Lev Vygotsky (apud CAPORALI; DIZEU, 2005).

A interação com o ‘Outro’ e o mundo é sem dúvidas perpassada pela linguagem e pela língua. Importante destacar a diferença entre as duas. Língua é um conjunto de convenções, estruturas, códigos e regras adotadas por um corpo social. E a linguagem é tudo aquilo que envolve significação, que tem valor semiótico, ou seja, que envolve signos. Sendo assim, a língua é um tipo de linguagem.

Nós vivemos em um mundo em que a língua oral é imperativa e majoritária, o que ocasiona uma super valorização do oralismo, em contraste com uma desvalorização de outras línguas, não orais. No Brasil existe a Libras — Língua Brasileira de Sinais — utilizada pela comunidade surda. Ainda há pessoas que não dão à ela estatuto de língua, sendo considerada apenas uma alternativa à língua oral e só mais um tipo de linguagem. Mas é importante destacar que a Libras é uma língua com estrutura, regras, gramática, sintaxe, morfologia e todas as outras características que são definidoras de toda e qualquer língua, e assim ela deve ser reconhecida. A Libras não é uma alternativa à língua oral, pois ela é a língua natural dos surdos, isso deve ser esclarecido.

Porém, somente em 2002 a Libras foi oficializada como um meio legal de comunicação no Brasil; é uma conquista recente e apesar de muitos avanços na luta da comunidade surda, ainda há desinformação, preconceitos e conquistas a serem alcançadas.  Um exemplo disso é a escassez de escolas bilíngues no Brasil. De acordo com uma pesquisa do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), feita em 2020, há apenas 64 escolas bilíngues de surdos no Brasil (GOV.BR, 2021) Isso significa que a maioria das crianças surdas brasileiras não têm oportunidade de ter uma educação em sua língua natural, o que é gravíssimo, se considerarmos o que foi dito inicialmente sobre a importância do contato social para a constituição de sujeitos e a importância da língua nesse processo.

As crianças geralmente entram na escola com aproximadamente quatro anos, essa idade faz parte do que os estudiosos da linguística chamam de período crítico da aquisição da linguagem. O que quer dizer isso? Quer dizer que existe uma janela de tempo em que a criança está mais sensível e mais apta para aprender uma língua. Há controvérsias sobre qual seria essa janela de tempo em termos exatos, mas podemos entender que é dos primeiros anos da criança até o início da puberdade, mais ou menos.

É preocupante saber que existem crianças surdas sem oportunidade de um aprendizado em sua língua natural no período em que estão mais propícias para tal. A falta dessa oportunidade pode afetar  seu contato com o mundo, sua socialização, e por consequência, sua constituição como sujeito. Sabemos que não é apenas na escola que se aprende uma língua, esse processo já começa antes do período escolar; mas sabemos também que muitas vezes há crianças surdas que não possuem contato com outros surdos sinalizantes, e é na escola que esse contato é possível. Ou seja, às vezes sem a escola a criança surda é impossibilitada de aprender sua língua natural e socializar com outras pessoas utilizando a língua de sinais.

Descrição da imagem: No canto inferior esquerdo há uma criança negra sorrindo, e acima dela há duas mãos, também negras, sinalizando. Ao lado há mais duas mãos brancas sinalizando, e no canto superior direito há uma criança branca sorrindo. O fundo da imagem é uma cor verde clara lisa.
Fonte: Imagem da Internet


Nós entrevistamos* alguns surdos que nos contaram um pouco de como foi o  processo de aquisição da Libras para cada um. Entrevistamos três pessoas surdas, e todos eles tem uma família ouvinte. Dois entrevistados tiveram a oportunidade de estudar desde cedo em uma escola bilíngue, e outro entrevistado estudou em uma escola inclusiva. É importante destacar a diferença entre essas escolas. A escola inclusiva pode colocar à disposição do aluno surdo um intérprete, mas existem escolas sem intérpretes. Essas escolas se dizem inclusivas, pois apenas aceitam crianças surdas nas salas de aula, mas não tem métodos que atendam à necessidade dos surdos, e nem ensinam a língua de sinais. Em contraste, a escola bilíngue é uma escola em que todos os professores sabem Libras, ensinam a língua de sinais e o Português para as crianças. É um ensino duplo, que valoriza a diferença entre as línguas. Todos os envolvidos, professores e alunos, mantém contato com as duas línguas. Para os surdos, o processo de ensino-aprendizagem e o contato social é muito mais privilegiado numa escola bilíngue do que numa escola inclusiva, pois há ferramentas, métodos e pessoas preparadas para o ensino e comunicação em Libras, assim como o ensino do Português.

Nosso entrevistado Bruno é um surdo que estudou em uma escola inclusiva. Primeiramente, ele adquiriu o Português, ou seja, é um surdo oralizado, que consegue se comunicar de forma oral, já que passou pelo processo de transplante coclear muito cedo, utilizou aparelho auditivo desde os três anos e fez acompanhamento de fonoaudiologia. Sobre o aprendizado de Libras, ele relata:

Com sete anos eu aprendi Libras, mas foi escondido. Porque a minha mãe não deixava, e a professora também não deixava. A professora forçava, eu tinha que falar, usar a voz, eu não podia aprender Libras, eles achavam que era negativo. E falou muita coisa negativa pra mim sobre a Libras, sobre língua de sinais, e depois eu discuti muito sobre isso, e eu queria aprender Libras. Eu sabia escrever o português eu sabia oralizar bem, era muito capaz. E minha mãe viu e falou ‘ok, mas eu quero ver como vai o seu seu progresso, vou fazer um teste’. Aí eu falei: ‘ah ok’, aí eu continuei aprendendo libras, e eu falei pra ela: ‘Então, eu parei de oralizar? Não, então eu quero continuar aprendendo Libras’. Aí depois eu adquiri rápido a fluência na língua de sinais, tive convívio com outros surdo, isso até hoje.

 
Quando o questionamos mais sobre como foi aprender Libras escondido, o que o motivou a isso, Bruno explica:

Foi assim: eu percebi que eu sentia conforto na língua de sinais, e eu percebi que eu não era igual os outros, eu me sentia diferente. Eu sentia muita influência porque eu tinha que ficar oralizando, usando aparelho, e meus amigos não, eu tinha amigos que não oralizavam , só sinalizavam, e eu tinha que me ajustar para me comunicar com eles. Então foi assim, eu aprendi escondido para me comunicar com meus amigos. E eu tinha um professora que controlava muito, eu não podia mexer as mãos, ela me obrigava a ficar com as mãos abaixadas, era muito ruim. Então foi esse aprendizado escondido, até que a minha mãe me liberou para aprender Libras. E eu tive esse contato com outros surdos para aprender. Antes a professora falava que se eu sinalizasse, ela falava pra minha mãe, ficava contando pra minha mãe que eu ficava sinalizando, e eu ficava incomodado. Aí depois com treze anos que ela foi me liberar para aprender Libras de verdade.

Através de relatos tão importantes como o de Bruno nós podemos perceber como o ensino inclusivo não é tão positivo quanto se propõe a ser, assim como percebemos que o contato com Libras e surdos sinalizantes é importante e muitas vezes desejado pela própria criança, pois ela se sente mais confortável utilizando língua de sinais. Dada essa realidade, não restam dúvidas quanto à importância e necessidade do aprendizado de Libras desde cedo na vida da criança surda, em prol da sua própria qualidade de vida.

Como dissemos anteriormente, entrevistamos dois surdos que estudaram na escola bilíngue, e deixamos aqui seus relatos sobre a experiência.
Andreza, outra das entrevistadas, nos conta:

Desde criança minha família me levou para a escola de surdos, a escola bilíngue, isso é muito importante, porque eu aprendi Português e Libras juntos, então eu consegui evoluir nas duas línguas, consegui me comunicar, foi mais fácil pra mim aprender os dois, e eu agradeço muito a eles, porque o Português para mim foi um desafio, mas a Libras pra mim era mais fácil, conseguir ver os sinais, pra mim era muito mais fácil.

Também conversamos com o Gustavo, que nos contou como foi a sua experiência na escola bilíngue:

Então, quando eu nasci e minha mãe descobriu que eu era surdo ela já começou a buscar informação na área, e aí ela descobriu uma escola para surdos, e naquele momento ela já me levou para a escola para surdos, toda a minha família fez essa integração, começou um curso de Libras, esse aprendizado para se comunicar comigo, e na escola eu já fui aprendendo também língua de sinais. A minha família nunca me impôs o Português, nunca foi imposto nada. Eu tive sorte porque a minha família entendeu que a minha primeira língua é a Língua Brasileira de Sinais e a segunda é o Português […] Então, eu sou muito grato à minha escola por ter ofertado curso de Libras à minha família, toda a minha família foi lá, foi muito rápido esse processo. Em casa às vezes era um pouco limitado, e na escola tinha eventos, dia dos pais, dia das mães, várias datas comemorativas, e minha família sempre ia, participava, achava interessante, tinham esse contato com a língua de sinais, então foi muito maravilhoso todo esse momento da minha escola e essa relação, foi muito legal.

Através do relato da Andreza e do Gustavo podemos perceber como a escola bilíngue é positiva para a formação individual da criança, quando dá oportunidade de a criança ter o contato com a Libras desde cedo – e aprendê-la junto com o Português. Além disso, a escola cumpre um importante papel no incentivo à socialização e à normalização do uso de Libras pela família da criança surda. Por vezes, a criança nasce em uma família que não sabe Libras, e se a escola pode ofertar um curso para a família, isso claramente tem impacto positivo no desenvolvimento da criança para além de aspectos escolares e de ensino formal somente, mas também em aspectos da socialização e contato interpessoal.

Em síntese, podemos concluir que é extremamente relevante e necessário na formação da criança surda, como um indivíduo na sociedade, ter o contato desde cedo com a Libras, conviver com pessoas que também sinalizam e ter um ensino de acordo com as suas demandas.

*Entrevistas realizadas nos dias 03 e 09 de novembro, na sala do PET-Letras (Centro de Comunicação e Expressão, UFSC).

REFERÊNCIAS

 

CAPORALI, Sueli Aparecida; DIZEU, Liliane Correia Toscano de Brito. A Língua de Sinais constituindo o surdo como sujeito. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 583-597, maio/ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/LScdWL65Vmp8xsdkJ9rNyNk/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 4 dez. 2022.

GOV.BR. A educação bilíngue se torna modalidade de ensino independente. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2021/08/educacao-bilingue-de-surdos-se-torna-modalidade-de-ensino-independente#:~:text=Atualmente%2C%20h%C3%A1%2064%20escolas%20bil%C3%ADngues,Educacionais%20An%C3%ADsio%20Teixeira%20(Inep).  Acesso em: 30 nov. 2022.

“Beijo de Línguas”: a imersão cultural do intérprete no Slam

29/11/2022 08:27

Por Vitória Cristina Amancio

Letras – Libras

Estagiária de Acessibilidade

 

A Libras, Língua Brasileira de Sinais, tem crescido e alcançado cada vez mais pessoas. Num mesmo movimento, a luta do povo surdo tem crescido igualmente, por busca de direitos e espaços na sociedade. Igualmente, tem crescido o movimento da Slam Poetry, popularmente conhecido como Slam,  um gênero de poesia nascido nas periferias norte-americanas e trazido ao Brasil no ano de 2008, por Roberta Estrela D’alva.

Descrição da imagem: na imagem, um slammer (poeta) com o microfone se apresentando no evento Slam Estrela D’alva para diversas pessoas

 

Na comunidade surda, porém, o Slam chega um pouco depois, com o Slam do Corpo, idealizado para que pessoas surdas e ouvintes expressem suas poesias, o orgulho de sua língua, e a longa luta por seus direitos e suas identidades – surdas ou não.

Descrição da imagem: na imagem, uma poeta surda, de cabelos cacheados, pele branca e roupas pretas, apresenta sua poesia em língua de sinais no evento Slam Estrela D’alva.

Mas afinal, o que é o Slam? São batalhas e competições de poesias faladas, nas quais se materializam dores, angústias, sofrimentos e as resistência e lutas de certas comunidades. Cresceu e cresce em grupos que sofrem com desigualdades e faltas de direitos. A Slam Poetry pode ser encantadora, emocionante, mas acima de tudo, é sempre um protesto.

As batalhas podem ser tanto sinalizadas – nas línguas gestuais visuais, neste caso, a Libras – quanto realizadas nas orais auditivas, como o português.

Porém, como essas línguas perpassam uma para a outra? O tradutor-intérprete é crucial neste movimento, para que várias culturas se encontrem, se relacionem, e acima de tudo, conheçam as lutas pelos direitos de vários grupos. Sendo este movimento conjunto apelidado de “Beijo de Línguas”, por um artista surdo, Leo Castilho, quando a performance da poesia envolve as duas línguas.

Descrição da imagem: na imagem, um poeta de roupas pretas com a logo do PET-Letras apresenta sua poesia, acompanhado por um intérprete de língua de sinais, que veste preto e sinaliza.

Sendo assim, não deveria o intérprete (Português-Libras) conhecer todas essas lutas? Conhecer todas estas vivências? Transitar entre essas culturas?

Para interpretar estas vozes, não bastam apenas conhecimentos literários e poéticos, mas também conhecimentos extralinguísticos, que ultrapassam sinais e palavras e alcançam vivências. É essa a tarefa de nós, intérpretes e participantes ativos dos slams.

Do arrebatamento das despedidas

16/11/2022 09:41

Por Sofia Quarezemin

Letras – Português

Bolsista PET-Letras UFSC

 

Poucos dias, duas despedidas; semana difícil para os emepebeseiros.

Milton Nascimento findou sua carreira neste domingo, 13 de novembro, numa despedida icônica e sensível, agraciada por tantas vozes e tantas célebres lágrimas. A turnê A última sessão de música andou pelo Brasil, pela Europa e pelos Estados Unidos marcando 60 anos de carreira e 80 de vida. Para a tristeza dos manezinhos, não passou pela ilha. Uma obra tão vasta e relevante realmente merecia uma despedida dos palcos tão bonita, “só dos palcos mesmo, da música, jamais”, diz o artista no vídeo de divulgação da turnê.

Diante da tristeza de ver se encerrar algo tão grandioso, fica a vontade do não-fim, a esperança do mais uma vez, mais uma canção, mas a última sessão de música precisava chegar pela urgente ação do tempo, e chegou em tom de emoção. Não se pode deixar de notar o feito raríssimo que é uma turnê de encerramento. A inteligência e sensibilidade em saber o momento de parar, ou a própria certeza do trabalho concluso, fazem dessa turnê um espetáculo à parte porque se trata do artista consagrando sua própria trajetória. Não um tributo ou uma homenagem de fãs ao músico, mas o contrário: A última sessão de música é, segundo o próprio Bituca, um presente de agradecimento aos fãs, uma ponta de areia, um ponto final cuja generosidade não se mede.

Para mexer com todos os corações, não fosse suficiente o teor saudosista da despedida, a abertura do show foi dedicada à Gal Costa. A cantora baiana findou em 9 de novembro (por curiosidade, dividindo data de falecimento com Cecília Meireles). Esse encerramento, que não a permitiu encontrar seu momento de parar, é tão curioso que a fez ganhar um show todinho em seu nome. Uma homenagem de um amigo sincero que amava tanto a força estranha de sua voz e que emocionou a todos cantando aquelas duas horas e meia que eram de encontro e também de despedida.

Imagem: Gal e Milton

FonteBlog do Cardosinho (2022)

Descrição de imagem: Trata-se de um retrato onde estão abraçados Gal Costa e Milton Nascimento. Ela usa uma camisa azul, cabelos volumosos e batom vermelho. Ele usa uma camiseta preta, cabelos trançados e uma boina bege. Ambos se olham e sorriem. Ao fundo, céu azul, uma estrada e montanhas.

Não me adapto à ideia do eterno, mas definitivamente há vozes que não conseguem acabar, porque quem morre de noite nunca mais acorda e quem morre de manhã nunca mais dorme. Quem morre de coração não sabe, mas o peito arde e se abre. Quem morre de dor sabe que só pode aprender uma lição que não vai servir de nada quando se encerrar a travessia. Há vozes que não conseguem acabar. Da notícia repentina da morte de Gal, fica a imensa vontade de gritar seu nome Gal. O nome Gal mais alto, feito de forças estranhas entre flores e estrelas. Uma voz Gal, um corpo tropical, um grito qualquer, uma cólera fa-tal. Essa constante agonia elétrica e bastante brasileira carrega o nome Gal. O imaginário festivo, São João e Carnaval, carregam a voz Gal.

Cologne Summer Schools: my experience as an international student

31/10/2022 09:19

Por Vítor Pluceno Behnck
Letras – Inglês
Bolsista PET-Letras UFSC

Since I was a child, I was always interested in foreign countries and cultures. I remember having a Larousse Encyclopedia (when the internet was not an accessible resource yet) where I would spend hours and hours staring at the countries’ flags and asking myself why the Nepalese flag had such a triangular design. The thing is: I always wanted to figure out the world and what is out there. The fact that when you cross an imaginary line there may be people speaking other languages and living in ways differently than I do always brightened my eyes.

I discovered that this was more possible than I thought in 2012 when my brother was selected by the Sciences Without Borders program (in Portuguese Ciências Sem Fronteiras – CsF) to study for two years in France with a full scholarship. I was a teenager at that time, and those two years completely changed my ambitions and my perception of how interesting it is to be an internationalized citizen. With the help of the government through public policies for Education, Science, and Innovation, people from the same background that I had were able to become better professionals and academics due to an international mobility experience.

That was the moment the idea of doing academic mobility started to chase me — or I started to chase it. In High School, I was selected as a semifinalist for the Youth Ambassadors Program from the Embassy of the United States in Brazil — almost there! After that, I started my undergraduate course in English at the Federal University of Santa Catarina in 2019. One year later, in March 2020, the pandemic paralyzed academic activities and my dreams of traveling abroad as a scholarship holder. 

Two years later, in 2022, it seemed that things were finally coming back to normal. We had vaccines, students were back at the universities, and I was in the final year of my undergraduate course. At that time, I was already dealing with the possibility of not having an international experience during my undergraduate course. The lots of answers telling me “thank you for your application, but no” were already part of my routine. After years of preparation and effort, I finally received a yes: on July 2nd, 2022, I received an e-mail from Cologne Summer Schools (CSS) offering me a full scholarship for a two-and-a-half-week summer school in Cologne, Germany. That was one of the most amazing days of my life.

One month and a few days later, I was in Germany. There, we had a lot of lectures on Inequality of Opportunity, which was the main topic of summer school. We visited the Haus der Geschichte Bonn (the House of the History of the Federal Republic of Germany), and local breweries in Cologne, and had the nicest time ever in an organ concert in the Cologne Cathedral. One of the most important things that I learned from summer school is that, in the entire world, we all have similar problems — most of them result from inequalities and the privileges of some social groups over others. To fight against inequality and create the conditions for people to aspire is necessary if we want to evolve as a society — otherwise, we will need to deal with the same issues that we face nowadays cyclically.

As a member of the University of Cologne KölnAlumni WELTWEIT, which is the official network for University of Cologne alumni, I invite you to get to know Cologne Summer Schools (clicking here) and apply to this wonderful program. Being part of CSS certainly change my life and my understanding of who I am, what the world is, and how many good opportunities there are in life. After that, I felt more prepared to tackle the issue of inequality in my country with an internationalized vision, fighting for social justice in a broader conception of it.

*Photo description: there is a group of students from different nationalities in front of the entrance of the House of the History of the Federal Republic of Germany in Bonn, Germany. Half of them are standing up, and half of them are crouching. The floor is dark and the wall behind them is made of big blocks of concrete, where it is possible to partially see the writings: “Haus der Geschichte der Bundesrepublik Deutschland”.