A influência da “book rede”

07/02/2023 11:05

Por Izabel Bayerl Bonatto

Letras-Português

Bolsista PET – Letras

 

Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, promovida pelo Instituto Pró-Livro (IPL) desde 2007, na sua 5ª edição realizada em 2019, houve um aumento de 3% da recomendação em sites especializados, blogs ou redes sociais como fator de influência na escolha de um livro para compra em comparação com 2015. Além disso, 25% das pessoas entrevistadas responderam que começaram a se interessar por literatura por causa de um influenciador digital, como youtuber, pela internet. A pesquisa tem como objetivo “[…] conhecer o perfil do leitor e do não leitor brasileiro, identificando seu comportamento leitor quanto a intensidade, forma, limitações, motivação, representações e condições de leitura e de acesso ao livro – impresso e digital” (CARVALHO et al., 2020).

As redes sociais ganharam uma utilidade a mais e nelas foi criada a famosa “book rede”, a qual viralizou durante a pandemia do COVID-19, e diversas pessoas fãs de literatura, denominadas então “bookstans”, passaram a criar perfis nessas redes – no TikTok (conhecido como Booktok) e no Instagram (denominado Bookstagram) – com o intuito de compartilhar suas leituras, dar sugestões de livros e falar a respeito dos temas e gêneros preferidos sobre literatura. Muitos desses perfis acabaram ganhando milhares de seguidores e, consequentemente, tendo mais influência de leitura sobre as pessoas que os acompanham.

A grande maioria dos livros considerados “best sellers” de 2021 e 2022, ou seja, os mais vendidos desses anos, tiveram um gigantesco volume de conteúdos produzidos em massa por esses perfis das ‘book redes’ e atingiram milhões de pessoas. Dentro dessa lista dos então considerados “queridinhos das book redes” estão: Os Sete Maridos de Evelyn Hugo (2017), de Taylor Jenkins Reid; Torto Arado (2018), de Itamar Vieira Júnior; Mentirosos (2014), de E. Lockhart; Mulheres que correm com os lobos (1989), de Clarissa Pinkola Estés; Enquanto Não Te Encontro (2021), de Pedro Rhuas; 1984 (1949), de George Orwell; Os Dois Morrem no Final (2017), de Adam Silveira; Vermelho, Branco e Sangue Azul (2019), de Casey McQuiston; A Garota do Lago (2019), de Charlie Donlea, Conectadas (2019), de Clara Alves. Há, claro, diversos outros.

O perfil da Letícia no Instagram (@biblioleticia), que tem como intuito falar sobre livros da comunidade LGBTQIA+, e o da Luana no TikTok (@luaninhareads), que aborda de livros temas mais abrangentes, são ótimos exemplos de brasileiras que fazem parte da “bookrede” e que fazem publicações mais descontraídas sobre literatura.

 

Descrição das Imagens: são duas imagens com fundo branco de duas capturas de tela de perfis de redes sociais. A primeira captura de tela é do perfil do Instagram do arroba biblioleticia, com a foto do perfil de uma arte de uma garota branca com cabelo curto castanho com as pontas azuis sorrindo no canto superior esquerdo, ao lado direito tem a indicação de duzentas e trinta e uma publicações, oitenta e quatro mil e trezentos seguidores e setecentos e vinte e nove seguindo. Em seu nome está indicado Leticia com dois traços na vertical seguido de Bookstagram e ela barra dela, abaixo indicando que é criador(a) de conteúdo digital); em sua biografia do aplicativo está o emoji de pastas e ao lado está escrito Bibi dois pontos Bibliotecário e Bissexual; abaixo está o emoji da bandeira LGBTQIA+ e escrito Representatividade LGBTQIA; mais abaixo está o emoji de brilho e sua idade vinte e seis anos, seguido do emoji de um livro aberto e o texto Lendo, dois pontos, priorado da laranjeira. A segunda captura de tela é do perfil do tiktok do arroba luaninhareads; seu nome está indicado como Luana e ela barra dela, e sua foto do perfil é de uma garota branca com cabelo loiro com a cabeça deitada sobre de uma pilha de livros; abaixo da foto está a indicação de duzentos e noventa e seis seguindo; ao lado direito cento e setenta e sete mil e setecentos seguidores e à direita cinto milhões e meio de curtidas. Abaixo dessas informações está aparecendo a opção de seguir o perfil; do lado, o símbolo do Instagram e uma seta apontando para baixo. Em sua biografia está escrito “sim é romance”. 

 

Vale ressaltar também, por fim, que comunidade “bookstan” ainda possui grande relevância se tratando da elevação as vendas do mercado literário em vários países, como aborda o jornalista Samuel Ruiz Anklam (UFRGS) em seu texto “Booktok impulsiona mercado literário e demonstra o impacto das redes sociais no consumo” de 2022, além de favorecer a visibilidade de diversos autores, tanto nacionais quanto internacionais.

BIBLIOGRAFIA

ANKLAM, Samuel Ruiz. Booktok impulsiona mercado literário e demonstra o impacto das redes sociais no consumo. 2022. Jornal da Universidade (UFGRS). Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/efeito-booktok-no-consumo-dos-leitores/. Acesso em: 04 fev. 2023.

CAMACHO, Gabu. Você sabe o que é um bookstan? 2020. Beco Literário. Disponível em: https://becoliterario.com/voce-sabe-o-que-e-um-bookstan/#:~:text=S%C3%A3o%20os%20bookstans%2C%20que%20al%C3%A9m,qualquer%20banda%2C%20cantor%20ou%20cantora.&text=Aquele%20f%C3%A3%20que%20acompanha%2C%20sabe,poderia%20ser%20somente%20%E2%80%9Cleitores%E2%80%9D. Acesso em: 04 fev. 2023.

NOVAES, Jamille. Carreira e Negócios: conheça a lista com os 10 livros mais vendidos em 2021. 2021. FDR. Disponível em: https://fdr.com.br/2021/12/27/carreira-e-negocios-conheca-a-lista-com-os-10-livros-mais-vendidos-em-2021/. Acesso em: 04 fev. 2023.

CARVALHO, Alexandre; et al. Pesquisas e Projetos IPL. Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. ed. 5, 2020. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/. Acesso em: 04 fev. 2023.

THEONILA, Victoria. Livros “best sellers” em 2022. 2022. Revista L’Officiel. Disponível em: https://www.revistalofficiel.com.br/cultura/livros-best-sellers-em-2022. Acesso em: 04 fev. 2023.

Experiências do ensino de literatura no ensino público

31/01/2023 13:06

Por Laiara Serafim

Letras-Português

Bolsista Pet – Letras

Recentemente, a professora de ensino público, Thaís Gonçalves Martins, concluiu o mestrado, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com um projeto intitulado Baú da Leitura, que visou o desenvolvimento da leitura e da escrita dos alunos do ensino fundamental, a partir de uma visão crítica gerada na interação com os colegas de sala e com a  professora.

No projeto, os alunos do 9° ano realizaram a leitura do livro A bolsa amarela de Lygia Bojunga. Por possuir um único exemplar na biblioteca da escola, a professora teve que imprimir diversas cópias do livro com recursos próprios, para que, assim, todos tivessem acesso à obra. A escolha da obra, segundo a professora, se deu com o intuito de gerar um reconhecimento entre os alunos e a obra, devido ao tema central do livro, que trata sobre os desejos da infância e adolescência de uma garotinha, a Raquel. Mas, sobretudo, porque o livro apresenta questões como o empoderamento feminino e as relações de poder existentes, o que tende a gerar juízos de valor e pensamentos reflexivos e críticos. Segundo a professora, “A leitura do livro A bolsa amarela foi feita de forma gradativa e dinâmica, tendo como instrumento de registro o diário de leitura” (MARTINS, 2022, p. 229). O projeto seguiu diversas etapas, iniciando com uma conversa dinâmica entre a professora e os alunos sobre desejos e vontades; em seguida, foi feita uma breve introdução à obra e realizadas várias formas de leitura – coletiva, individual, pela professora, etc.

Todas essas etapas foram divididas por semanas e em diferentes aulas, mas é importante ressaltar que a leitura foi realizada de diversas formas e em diferentes ambientes, desde a sala de aula até o pátio da escola, proporcionando aos alunos diferentes contatos e experiências com o processo de leitura. Durante cada etapa de leitura era realizada uma pausa para que os alunos pudessem anotar os seus pensamentos, dúvidas e comentários em seus “diários de leituras”, um fichário individual realizado por cada aluno, o que possibilitou o início da formação de um pensamento crítico e principalmente reflexivo. A ideia de formação de pensamento crítico a partir da leitura também é legitimada pelo professor Luiz Percival Britto, em seu ensaio Ao revés e do avesso, que defende, sobretudo, incentivar o desenvolvimento de leitores críticos, capazes de questionar o texto e absorver as ideias do autor de forma consciente.

Após o término da leitura na íntegra, os alunos realizaram uma socialização, na qual debateram sobre o livro, tiraram as dúvidas com a professora e tiveram conhecimento sobre os posicionamentos dos colegas. Por fim, cada aluno produziu uma resenha do livro A bolsa amarela, que foi exposta em um mural na escola.

Segundo a pesquisadora, as discussões e trocas de informações entre os colegas de sala foram essenciais para a compreensão do texto e para a concretização dos posicionamentos defendidos. Por sua vez, a produção do gênero diário de leituras gerou nos estudantes maior reflexão sobre o texto literário e maior interação com os personagens da história, sendo essa uma etapa fundamental para a formação de leitores literários. Para Martins, os projetos de leitura precisam ser organizados e sistematizados pois “[…] de nada adianta promover uma aula de leitura por semana para os estudantes sem propósitos e objetivos.” (MARTINS, 2022, p. 236).

Como aluna advinda de escola pública, entendo a importância dos projetos de leituras na escola, sobretudo entendo a importância do profissional de Letras e pedagogos para que esses projetos aconteçam, uma vez que é necessário tirar do financiamento pessoal para que as aulas de literatura aconteçam no ensino público. Para Britto (2015), a criação de projetos de leitura deve sempre manter um caráter ativo na defesa da leitura como direito e privilegiar os trabalhos nas escolas e bibliotecas públicas. Na atual conjuntura, faz-se cada vez mais  necessário formar cidadãos críticos. E para isso, é necessário formar jovens leitores.

Dada a importância da pesquisa, resolvi conversar com a professora Thaís, que me respondeu algumas questões (por meio de perguntas enviadas on-line):

Laiara: A sua tese é baseada em um projeto realizado em 2019, intitulado “baú da leitura”. Você tem dado continuidade ao projeto? Quais os resultados a longo prazo estão sendo gerados?

Thaís Martins: Não leciono mais na escola que realizei o projeto “baú da leitura”. Em 2020 pedi remoção e atuo em outras escolas, então, não tenho informações sobre a continuidade do projeto, o que sei é que a diretora tinha interesse em continuar, pois foi um projeto que movimentou a escola e proporcionou aos alunos o contato com o mundo da literatura.

Laiara: No texto, você diz ter escolhido o livro “Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, para o projeto, por ter como objetivo “encontrar uma adesão mais fácil dos estudantes”(MARTINS, 2022, p.226). Sabendo que o Brasil é um país com baixa adesão à leitura desde o ensino fundamental, quais as principais dificuldades encontradas ao trabalhar sobre um livro na sala de aula?

Thaís Martins: As dificuldades são inúmeras, pois o desinteresse pela leitura é uma questão que ultrapassa a sala de aula, e, se tratando das escolas públicas, as questões socioeconômicas influenciam muito, pois a maioria dos estudantes possui realidades cruéis, muitos vão para escola com o objetivo de fazer a única refeição do dia, como esse aluno vai se interessar pela leitura? Como vai ter vontade de ler algo? Outra dificuldade que encontramos é a concorrência com o mundo digital, no caso daqueles  estudantes que possuem condições financeiras um pouco melhores, pois não é fácil competir com jogos, videogames, redes sociais e as inúmeras atrações do mundo tecnológico.

Laiara: É sempre recorrente e, recentemente, reapareceu – principalmente na internet – o debate sobre a leitura de obras clássicas (como Machado de Assis, Clarice Lispector, Aluísio Azevedo) por estudantes no ensino fundamental e ensino médio. Qual o seu posicionamento sobre o tema? Quais mecanismos podem ser utilizados para romper as barreiras que existem entre o jovem leitor e os textos clássicos?

Thaís Martins: Parafraseando Antônio Candido, acredito que a literatura é um direito e um fator de extrema importância para a formação humana, dessa forma, a escola é o lugar que deve propiciar aos estudantes o contato com o mundo dos livros. Podemos utilizar muitos mecanismos para trabalhar com textos clássicos em sala de aula, por exemplo, o professor pode iniciar pelos contos de Machado de Assis, pois são textos mais acessíveis ao público jovem, com temas interessantes e polêmicos, uma leitura feita pelo professor com pausas para explicação sobre as palavras rebuscadas, situando o contexto histórico, com entonação e dramatização, ou seja, promover de forma mais lúdica e prazerosa a leitura de alguns textos clássicos pode ser um bom mecanismo.

Outro ponto que podemos observar nas escolas é a obrigação relacionada à leitura dos clássicos, o papel da escola é aproximar esses textos dos estudantes e não distanciar, portanto, obrigá-los a ler não é o caminho ideal. Acredito que uma boa estratégia é o trabalho com os seminários de literatura, nos quais a turma é dividida em grupos de trabalho, cada grupo precisa estudar uma determinada obra literária para apresentar aos colegas. Nessa proposta, alguns estudantes leem o livro na íntegra, outros leem os resumos, o importante é que de uma forma ou de outra acabam tendo contato com textos clássicos e não passarão pela Escola Básica sem conhecê-los.

Laiara: Em um trecho do texto é dito que “[…] os alunos recebiam o capítulo para leitura apenas no momento da aula. Para isso, a professora tirou cópias com recursos próprios, pois na escola havia apenas um exemplar do livro A bolsa amarela.” (MARTINS, 2022, p. 229). Dentre as diversas dificuldades que existem na formação de um leitor, você acredita que dentre elas está o baixo investimento na educação, especialmente em escolas públicas, com baixo repertório de livros nas bibliotecas ou, por vezes, escolas que não possuem nem mesmo uma biblioteca?

Thaís Martins: Com certeza, a situação da maioria das escolas públicas é precária, faltam bibliotecas, faltam profissionais especializados para trabalhar, faltam investimentos em acervos, em projetos, falta vontade dos responsáveis em investir na educação. Infelizmente, essa é uma triste realidade no Brasil, um país onde investimentos em educação são considerados despesas, um país onde os professores não são valorizados. Precisamos avançar em políticas públicas que tenham por objetivo uma educação de qualidade, enquanto isso, muitos professores seguem fazendo milagres em suas escolas, tirando dinheiro do próprio salário para tentar proporcionar uma formação digna aos seus estudantes.

Assim, reforço mais uma vez a importância de uma boa formação para os profissionais de Letras, mas, sobretudo, a importância do investimento governamental em escolas públicas, para que outros professores não precisem fornecer de recursos pessoais para proporcionar aos estudantes uma formação literária digna.

 

REFERÊNCIAS

BRITTO, Luiz Percival Leme. Ao revés do avesso: leitura e formação. São Paulo: Pulo do Gato, 2015. 144 p.

MARTINS, Thaís Gonçalves. Baú da leitura: uma proposta de formação crítica para os estudantes do ensino fundamental. In: LIMA, Sheila Oliveira; PASCOLATI, Sonia (org.). Práticas de leitura literária na escola. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. p. 223-239.

Literatura para uns, pornografia para outros: uma breve reflexão

30/01/2023 10:17

Por Pedro Pedrollo

Letras-Espanhol

Bolsista PET-Letras

 

Quando, de alguma maneira, nos deparamos com temas complexos, como pornografia e erotismo, podemos pensar, de modo mais simplificador, que a pornografia seria algo mais explícito, ou mesmo escancarado, em que tudo pode ser “mostrado ou dito”, enquanto o erotismo seria algo mais velado, dotado de certa sutileza. Esse tipo de compreensão, ainda que possa ser considerado comum e mesmo aceitável, revela algumas perspectivas socio-historicamente construídas sobre como o moralismo, e sobre outros princípios em que a sociedade tende a se basear, podem nos levar a uma valoração específica para os produtos sociais — arte, literatura, filmes, teatro etc. —, ou mesmo para os termos que os definem e qualificam, no caso dos que abordam o sexo, como pornográficos e/ou eróticos; termos os quais, entretanto, se confundem, aproximam-se e se distanciam.

Nesse sentido, parece que seria mais fácil para uma sociedade — forjada em bases religiosas, por exemplo, tendo o sexo como um tabu — aceitar e endossar a abordagem do sexo, e de questões relacionadas a ele, por meio de entrelinhas. Dito de outro modo, haveria certa concessão, ou mesmo aceitação, ao sexo abordado de modo mais implícito do que ao sexo tratado de modo explícito. Essa perspectiva seria responsável por atribuir juízos de valor aos produtos sociais que, de alguma maneira, abordam o sexo. Assim, isso faria com que as obras, por exemplo, que possuam “cenas de sexo” escancaradamente manifestas, recebessem menos valor e, por sua vez, prestígio do que aquelas em que tais cenas seriam apenas sugeridas: estivessem em suas entrelinhas.

Todavia, algo que é muito interessante de se considerar, ao pensar nos conceitos de erotismo e pornografia, são os renomados escritores que se inseriram no tema sexual, inclusive se ocupando de uma abordagem mais desvelada e de uma visão mais escancarada do sexo, e que receberam, ainda que alguns tardiamente, reconhecimento por suas obras: Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Pietro Aretino, por exemplo. A partir deles, é possível refletir sobre o tema e observar como o abordam de modo explícito, sendo tal abordagem, até mesmo, considerada extremamente obscena ou mesmo degradante. Um autor muito citado e conhecido, no âmbito de tal temática, é o Marquês de Sade, que, inclusive, citou reconhecidos filósofos em sua obra — tais como Rousseau, Montesquieu e Diderot —, ao tratar de contextos sexuais, que podem ser definidos como extremos.

Compreender como a abordagem do sexo tende a ser aceita ou rejeitada socialmente e os porquês de sua ocorrência, envolve uma diversidade de questões culturais, históricas, éticas, ideológicas, morais etc. Cientes disso, cabe-nos considerar que o erotismo “não mostraria tudo” e assim se aproximaria do belo, do que pode ser dito, do que é aceito e desejável; já a pornografia, por outro lado, ao basear-se na “abordagem explícita do sexo” (ou mesmo dos órgãos sexuais) se tornaria inaceitável, pois faria com que o sexo fosse algo feio, errado e sujo. Ainda que, tais conceitos, sejam variáveis, a depender de onde, de quando e de como, por exemplo, são empregados, os produtos sociais têm sido, historicamente, classificados e valorados por meio de opostos: bom e mau, belo e feio, limpo e sujo, moral e imoral, erótico e pornográfico, e assim por diante. Nessa perspectiva, tende-se a considerar algo erótico como “bom, belo e limpo”, e pornográfico como “mau, feio e sujo”, por exemplo. Entretanto, vale dizer que aquilo que ontem era considerado absurdamente pornográfico, imoral e ofensivo, pode tornar-se aceito amanhã, sendo visto como erótico e aceitável, e vice-versa.

Descrição da imagem: uma mulher branca e loira segurando um livro enquanto usa roupas intimas pretas

e transparentes e um hobby vermelho, enquanto faz uma cara de surpresa.

Sem aprofundar em um tratamento teórico ou mais acadêmico do tema, vale incentivar algumas reflexões sobre o modo como lidamos com o sexo e com sua abordagem nos produtos sociais, qualificando as obras como eróticas (aceitáveis e permitidas) ou pornográficas (inaceitáveis e proibidas). Além disso, há que se considerar o que há por detrás de nossos julgamentos e o que eles provocam. Um olhar sobre a estrutura social permite que se observe o sexo sendo posto como tabu, em várias sociedades e momentos históricos. Diversas convenções sociais passaram a servir de base para se julgar e qualificar as pessoas e os produtos sociais, a partir do modo como atendiam a tais convenções que estabelecem como, quando e onde se poderia abordar o sexo e seus temas afins. Afastar-se de tais convenções, ou seja, quebrar as regras, poderia colocar a pessoa e suas obras numa situação de marginalização, considerando-a promiscua, obscena, perversa e de menor valor social, visto que ela corromperia a “pureza” almejada para o humano em certas sociedades, culturas, religiões e/ou cosmovisões.

Podemos considerar que quando decidimos dizer o que é e o que não é erótico e/ou pornográfico, estamos reproduzindo nossas crenças, tradições e cosmovisões, ou seja, o imaginário social, que nos constitui e nos move em direção à reprodução de certos padrões e convenções, sejam eles vistos como mais moralistas ou não. Portanto, se, em nosso crivo, acreditamos que devemos aceitar o sexo sendo abordado apenas no que é erótico e rejeitar aquilo que seria visto como pornográfico, nos afastaremos de certas obras. E isso pode nos impedir de ampliar nosso contato com aqueles produtos sociais que não estão forjados dentro do que seria “aceitável e permitido” a nós mesmos. Cientes disso, podemos assumir uma postura mais crítica diante das convenções sociais, e de seu impacto sobre os produtos sociais, e entender que os limites sobre o erótico e o pornográfico são por demais tênues e que talvez seja mais produtivo circular por eles do que tentar aplicar um juízo de valor que nos posicione em prol do erótico e em detrimento do que seria pornográfico, por exemplo.

Há certos olhares para história que dizem que a pornografia seria um fenômeno de mercado, inaugurado no Renascimento e que se caracterizaria pelas imagens e palavras que ferem o pudor. Nesse sentido, o fenômeno da pornografia teria inaugurado uma nova forma de representar o sexo. Pietro Aretino seria um dos autores que teria tido a intenção de tornar o sexo mais realista, contribuindo para que a temática, que, até então, circulava em meios mais restritos, passasse a ser mais acessível a círculos mais amplos. Inclusive há quem defenda que isso teria tido um papel fundamental para a consolidação do mercado da pornografia comercial, que teria a intenção de vender sexo, e de sua aproximação com a arte erótica, que usaria símbolos sexuais para falar de coisas que transcendem o sexo.

De certa maneira, observa-se, atualmente, uma significativa circulação de pornografia, a qual é inclusive “tolerada” em seus círculos mais restritos. É interessante notar que quando essa pornografia vem à tona, em círculos sociais mais amplos e abertos, ela é alvo de intensas críticas e, muitas vezes, considera-se um escândalo, um atentado ao pudor.  Se olharmos para a literatura que aborda o sexo e o modo com ela foi e vem sendo recebida socialmente, veremos casos interessantes, como o de Madame Bovary, de Flaubert, pois, ao tratar da história de uma adúltera, em sua obra, com um conjunto de detalhes e cenas de sexo, ele foi alvo de muitas críticas e julgamentos. Entretanto, há quem diga que, mesmo com o incomodo social gerado, a obra não poderia ser considerada pornográfica, já que era de um grande autor, tinha grandes qualidades estilísticas etc., o que contraria certas ideias, sobre o teor e caráter da pornografia, e nos faz refletir sobre quais seriam os elementos que nos levam a aceitar ou a rejeitar determinadas obras e a classificá-las como eróticos ou pornográficas, como merecedoras ou não de nossa atenção. Outro exemplo interessante é Contos d’Escarnio: textos grotescos, de Hilda Hilst, formado por um conjunto de contos em que o sexo é tema recorrente, que passa por críticas, rejeições e julgamentos.

Será que vemos o sexo e sua abordagem como um risco ou um perigo para a sociedade, a ponto de termos que considerá-lo um tabu e de rejeitar obras que o abordem explicita e livremente? Em “Conhecimento Proibido”, de Roger Shattuck, há uma discussão sobre os possíveis problemas que a sabedoria pode trazer e sobre a necessidade de se proibir alguns conhecimentos, já que, em tese, certas verdades poderiam causar males a sociedade. O autor questiona: “[…] deveremos acolher entre nossos clássicos literários as obras de um autor violou e inverteu todos os princípios de justiça e decência humana desenvolvidos ao longa de 4 mil anos de vida civilizada?” (SHATTUCK, 1999, p. 196)

Esse questionamento pode nos levar a diversos outros: inclusive sobre os limites que deveriam ter ou não os produtos sociais em relação às temáticas abordadas e ao como realizar tal abordagem. Contudo, considero que o mais importante é podermos refletir sobre os porquês de se aceitar determinadas obras e de se rejeitar outras e o como o posicionamento assumido nos conduzirá a certas obras e nos afastará de tantas outras.

Embora saibamos diferenciar realidade e ficção, precisamos também saber ponderar a respeito de como uma interfere na outra, não é mesmo? Por mais que possam ser encontrados exemplos de pessoas que se valeram de ficção para justificar suas ações reais, como os suicídios cometidos após a leitura de O Sofrimento do Jovem Werther de Goethe, temos que nos perguntar se os problemas sociais estariam delimitados e definidos pelas obras literárias, artísticas, teatrais, musicais que circulam socialmente; e se seriam provocados por seus conteúdos e modos de abordar seus temas. Teria sentido censurar as obras e eliminar aquelas que fugiriam dos padrões de determinadas épocas, sociedades e/ou culturas? Uma possibilidade de se refletir sobre tal questionamento pode ser encontrado na obra Um Mais Além Erótico: Sade, de Octavio Paz (1999, p.83) que afirma: “[…] o perigo de certos livros não está neles próprios, mas sim na paixão de seus leitores”.

Classificar uma obra como erotismo ou como pornografia e, consequentemente, assumir julgamentos de valor que rejeitem determinadas obras e as marginalizem, não deve ser visto como algo simples e natural. Portanto, como afirmei, é extremamente relevante refletir sobre o que estaria por detrás de certas classificações e julgamentos de valor e sobre como isso pode afetar as obras, o modo como nos relacionamos com elas e, até mesmo, como isso pode nos atingir. Além disso, uma obra definida como pornografia não deixa de ser um produto social que compartilha características com diversas outras obras, sejam elas eróticas ou não.

 

Leituras recomendadas:

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

HILST, Hilda. Contos d’escarnio textos grotescos. São Paulo: Globo, 1990.

MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999.

SCHATTUCK, Roger. Conhecimento proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Tri, Afu e Baita: como funcionam?

19/01/2023 07:52

Por Angelo Perusso

Bolsista PET-Letras UFSC

Letras – Português

Ao nos depararmos com alguém nascido em Porto Alegre naturalmente associamos a fala dessa pessoa a expressões como “bah, tri legal né, guri”, por serem expressões muito presentes no vocabulário da maioria das pessoas nascidas na capital gaúcha. Neste texto, tendo em vista essas variedades, trataremos mais especificamente de adjetivos intensificadores que também podem atuar como adjetivos positivos, por exemplo, o consagrado “tri”. O “tri” (além de ser o nome do cartão do ônibus de Porto Alegre) é também uma expressão que pode atuar nessas duas funções, pois quando temos uma frase do tipo “esse teu tênis é tri feio”, ele está atuando como atuaria o “muito”, o “mega”, o “super”, entre outros termos usados para atribuir intensidade. Ou seja: o tênis não é somente feio, mas “tri” feio. Quando o “tri” aparece neste uso, ele está mais próximo do seu sentido original, que a Zero Hora, jornal típico de Porto Alegre, explicou em uma matéria de 2018, e que é o seguinte: a expressão se popularizou nos anos 1970, logo após o Brasil ser tricampeão da Copa do Mundo de Futebol. Logo, tudo que era muito bom (ou muito ruim, ou muito qualquer coisa), era três vezes bom, então era “tri.” Porém, o que decorreu disso foi que o porto-alegrense pegou gosto pelo tal do “tri” e eventualmente começou a dispensar o adjetivo que vinha depois, quando se tratava de coisa boa. Logo, se algum porto-alegrense vir o seu tênis novo e disser “bah, que tri”, ele quer dizer que o tênis está aprovado, que é bonito, ou legal, ou qualquer coisa boa.

Ainda na fala do porto-alegrense, há um outro exemplo bastante comum de casos como esse, que é do “afudê” e do “afu”, que são pai e filho. Em um passado distante, o termo mais comum era o “afuzel”, que é avô do “afu”. Essa expressão era usada para expressar que algo era bom, bonito, legal, entre outras coisas boas. Lentamente, o “afuzel” foi substituído pelo “afudê”, que significa a mesma coisa: algo bom. “Bah, que afudê teu tênis”: se seu amigo disse isso, pode sair pra festa tranquilo com o teu tênis novo, ele é bonito. Se tu contar que foi de férias para Floripa e teu amigo te disser “afudê, meu”, significa que ele achou “bem legal”.

Porém, surgiu uma abreviação, que é o “afu”, e que por sua vez funciona muito mais como intensificador, mas também pode ser visto como adjetivo positivo. Por exemplo, se alguém se aproxima de ti e diz “tu tá cheiroso afu, hein meu?”, significa que tu está muito cheiroso, assim como se alguém disser que tu é “feio afu”, significa que tu é muito feio. No caso do “afu”, nos dias atuais, essa é a forma amplamente mais popular de utilizá-lo, como um intensificador do que vem a seguir. Até pouco tempo atrás e, provavelmente, por causa da relação com o “afudê”, era possível se deparar com diálogos do tipo “como foi o jogo?”, “foi afu”. Logo, aqui nessa função, o adjetivo intensificador “afu” também vai assumir uma postura de adjetivo positivo, assim como faz o “tri”. Entretanto, é necessário pontuar que o “tri” é muito mais produtivo na fala.

Agora, subamos para a praia veranear e falemos então de uma expressão que, embora também aconteça na fala porto-alegrense e de outros lugares, aparece com os dois sentidos, que buscamos na fala dos moradores da Ilha de Santa Catarina, especificamente a dos nativos, que é o “baita”. Conversando com uma amiga um dia desses, ela me disse que os nascidos e crescidos em Florianópolis, popularmente chamados de “manezinhos”, se fossem flertar com uma menina, poderiam dizer a frase “tais uma baita hein, feia”. Aqui, vemos o termo “baita” aparecer como um substituto para “bonita” ou “atraente”. É possível ver ainda, ao mostrar o tênis novo ou contar uma história, reações como “que baita”, que seria justamente o “baita” aparecendo na função do “legal”. Outro caso ainda é quando ouvimos que “foi um baita jogo” ou que alguém viu um “baita filme”. Essa pessoa muito dificilmente estará se referindo ao tamanho do jogo ou o tamanho do filme, mas sim a sua qualidade; logo, essas frases poderiam ser substituídas por “foi um ótimo jogo” e “um ótimo filme.” Ou seja, nessa maneira de utilizar a expressão ela está agindo como um adjetivo positivo, mas em sua função original ela age do mesmo jeito que o “tri” agia quando surgiu, que é na função de intensificador.

A grande questão é que o baita na função de intensificador apresenta nuances, pois ele pode indicar intensidade, mas também tamanho. Voltando à fala porto-alegrense, alguém pode dizer que teve que subir uma “baita lomba”, ou seja, um grande morro, mas também pode dizer que alguém é um “baita de um mala sem alça”, ou seja, uma pessoa “muito chata”. Por vezes também é possível confundir se o baita está agindo como um adjetivo que indica que algo é bom ou grande, por exemplo, na frase “ele é um baita homem”. É possível interpretar que o homem em questão é grande, mas também que ele é um homem bom, honrado. Logo, vemos que o “baita” também pode aparecer tanto na função de adjetivo positivo como de intensificador.

Algo semelhante, e que nos ajudará a entender esses processos, é explicado por Basso (202, p.6). Ao fazer uma análise do intensificador “puta”, ele percebe que a maneira que um intensificador se comporta vai variar de acordo com o que ele está se combinando. No caso do “puta”, vemos que quando ele está combinado com um nome, ele pode ser substituído por “ótimo” ou “bom”, como em “João tem um puta emprego”. Por outro lado, se o “puta” estiver combinado com um adjetivo, ele então poderá ser substituído por “muito” ou “bastante”, como em “ele é um puta chato”.

O “baita” se comporta da  mesma maneira, pois poderíamos dizer que “João tem um baita emprego”, colocando o baita como um intensificador nominal e atribuindo assim o caráter de “bom” ou “ótimo”, bem como poderíamos utilizar “Ele é um baita chato”, colocando o “baita” como intensificador adjetival e atribuindo assim o caráter de “muito chato”. Algo parecido (mas não igual) pode ser feito também com o “afu” e com o “tri”, pois se disséssemos que “João tem um emprego tri” ou “um emprego afu”, estaríamos combinando nossos intensificadores com um nome, e eles estariam atribuindo a ideia de “ótimo” ou “bom” a esse nome; porém, nesses casos, precisam aparecer somente após o nome na sentença. Caso utilizássemos “ele é tri chato” ou “ele é chato afu”, teríamos os intensificadores combinados com adjetivos, atribuindo característica de “muito” ou “bastante” ao adjetivo. Novamente, como vimos, o “tri” muda de posição e, ao se combinar com o adjetivo, aparece antes dele na sentença, enquanto o “afu” permanece sempre após o termo que ele se combina.

Por fim, cabe dizer que se tu chegou até aqui e não entendeu nada, então esse texto foi “tri nada a ver”.

A língua como espécie parasitária: relações entre linguística, ecologia e evolução em Salikoko S. Mufwene

09/01/2023 12:39

Por Emmanuele Amaral Santos

Bolsista PET Letras UFSC
Letras – Português

 

Segundo o linguista congolês Salikoko S. Mufwene, é essencial que linguística como campo de estudo científico não apenas pense nas possíveis mudanças resultantes do processo de evolução, mas investigue que agentes participam ativamente dessas mudanças e como fatores estruturais da língua se comportam nesses processos. A partir dessas indagações e de um amplo estudo em conceitos da linguística evolucionária, da filogenética e ecologia, no capítulo seis de The Ecology of Language Evolution (2003), intitulado Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice,  Mufwene  discute tais questões paralelamente à formação, à evolução e ao desaparecimento de línguas crioulas de base lexical europeia, utilizados no capítulo como exemplos.

Imagem 1:  Mufwene

Descrição de imagem 1: Um homem negro de cabelos brancos rentes a cabeça olha para a lateral esquerda da fotografia sem encarar a camêra, posicionando seu branço direito em algum ojetivo que não fica explícito na imagem. Ele usa óculos de grau redondo, veste terno e gravata azuis acompanhados de uma camisa formal azul clara. Ao fundo, é possível identificar uma estante marrom repleta de livros com capas de diversas cores e duas caixas laranjas empilhadas na lateral esquerda da fotografia.

Para introduzir os conceitos de ecologia e evolução partindo das noções teóricas trabalhadas no ramo de genética de populações, Mufwene descreve a evolução como “[…] mudanças a longo prazo que ocorrem em uma variedade linguística após um período de tempo.” (MUFWENE, 2003, p.145), além de destacar a diferença entre a evolução estrutural, que engloba as características morfossintáticas, fonético-fonológicas e lexicais, e a evolução pragmática, a qual faz referência às regulações sociais e contextuais do uso da língua. Essas diferenciações, no entanto, não assumem um caráter excludente, ou seja, elas coexistem no processo de evolução das línguas.

Mufwene ainda pontua que para entender como esses caminhos evolutivos são cunhados, é importante caracterizar o conceito de ecologia. A partir de Johanna Nichols (1994), essas ecologias podem ser caracterizadas como ecologia progressiva, quando o processo de mudança (evolução) é compreendido como responsável pelo aumento na complexidade da língua, ou como ecologia darwiniana, se partirmos do princípio que mudança (evolução) ocorre por seleção natural gerando diferentes especiações da língua (variações linguísticas).

Para o autor e para diversos autores da linguística moderna, como Gould (1993), o processo evolutivo não possui um propósito definido, ou seja: “Sistemas linguísticos podem evoluir tanto para uma maior complexidade estrutural quanto para estruturas mais simples, assim como podem ser novamente reestruturados sem que o sistema seja enquadrado como mais simples ou complexo que o anterior” (MUFWENE, 2003, p.147).

Deste modo, o capítulo propõe que o uso da noção de ecologia darwiniana seria mais assertivo em relação à linguística, já que salienta a existência de variedades e permite investigar os mecanismos que as originam.

Imagem 2: Primeira edição do livro The Ecology of Language Evolution publicado pela Cambridge University Press em 2001

A capa de um livro bege apresenta uma espécie de obra de arte centralizada. Esse quadro retangular possui um fundo marrom-amarelado e diversas figuras geométricas, como um círculo branco dentro de um círculo verde na margem superior esquerda e duas fileiras de triângulos em diferentes tamanhos que ocupam toda a lateral direita do quadro. Além disso, a capa também possui uma lateral esverdeada que percorre as margens esquerda e superior de todo o livro. No canto superior direito é possível ler “Cambridge Approaches to Language Contact” em fonte branca e dentro de uma caixa de texto preta. Logo abaixo, aparece o título do livro “The Ecology of Language Evolution” e, em baixo deste, o nome do autor “Salikoko S. Mufwene”. No canto inferior esquerdo, é possível notar uma caixa de texto retangular com o escrito “Cambridge”.

No decorrer do capítulo, Mufwene envolve os conceitos de evolução e ecologia a partir da ideia de que “A evolução de uma língua ocorre a partir de cada falante, por meio de seus atos de fala individuais e seus idioletos […]” (MUFWENE, 2003, p.147); deste modo, o falante como indivíduo assume o protagonismo do processo de evolução sem excluir os aspectos de controle coletivo da comunidade de fala, que regula essas transformações tanto estrutural quanto pragmaticamente durante o processo de evolução. Esse sistema de negociações entre o indivíduo e o grupo demonstra a natureza competitiva e seletiva das interações dentro do sistema de uma língua viva.

Ao abarcar esse protagonismo do indivíduo (idioleto) no processo de evolução (mudança), o autor reflete que as analogias da língua como um só “organismo”, que é coexistente entre uma mesma comunidade de fala,  iniciadas no século XIX, estariam equivocadas, visto que ela não são capazes de explicar as variações dentro de uma mesma língua. Além disso, a analogia de língua como organismo não responde a outras questões ligadas à variação, como é o caso dos idioletos de um mesmo coletivo não serem idênticos, das diferentes velocidades de variação entre grupos sociais distintos pertencentes à uma mesma comunidade de fala e das especificidades do caso das línguas em regiões de contato linguístico.

Deste modo, Mufwene advoga que a analogia de língua como uma espécie seria mais adequada. O autor advoga que essa analogia permite compreender o processo de evolução como um sistema de mudanças dentro de uma estrutura que aceita um certo grau de variação dentro de cada espécie. Ademais, essa perspectiva também permite investigar o que chama-se de transmissão vertical e transmissão horizontal da língua, propiciando um mapeamento dessas variações de acordo com estudos quantitativos e qualitativos. Sobre o processo de transmissão de características provenientes de idioletos que acabam gerando novas variantes de espécies (línguas), Mufwene salienta sobre a maior importância dos fatores quantitativos, ou seja, do número de falantes.

Essa importância e outros fatores, como a relação direta entre a sobrevivência/favorecimentos sócio-histórico-econômicos entre uma língua e seus falantes, sustentam a perspectiva de Mufwene de que a língua está mais para uma espécie parasitária, com uma relação simbiótica entre a língua e o falante do que um tipo de espécie animal. Além disso, os parasitas como espécie são muito mais propícios à especiação (variações) e à evolução (mudança) em um período de tempo menor.

Tal relação simbiótica também permite refletir sobre o impacto de políticas linguísticas de caráter repressivo paralelmente à políticas de tortura e genocídio. A partir do apanhado histórico presente no artigo Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência lingüística, é possível notar que desde o período colonial foram estabelecidas políticas monolíngues que estimulavam o uso da língua portuguesa como única  forma de comunicação oficial e posteriormente, detentora do status de língua nacional:

O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império” (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536). A política lingüística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento lingüístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história lingüística do Brasil poderia ser contada pela seqüência de políticas lingüísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram […] .  (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Através da analogia apresentada por Mufwene da língua como parasita e do falante como hospedeiro, podemos analisar que, além da substituição de línguas autóctones pela língua portuguesa, práticas como o isolamento dessa comunidade linguística em regiões que dificultem a sua sobrevivência e o extermínio de fauna e flora essenciais para a continuidade de rituais de cura/tradições também sustentam processo de glotocídio. Em outros períodos históricos do Brasil, como durante a chamada Era Vargas, práticas glotocidas semelhantes também fizeram parte das políticas linguísticas monolíngues de cunho nacionalista; como explicita Oliveira:

A Polícia Militar, em Santa Catarina como em outros estados, prendeu e torturou e obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que falando alemão. (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Nesse contexto, o ato de falar português estava diretamente ligado a ser reconhecido e validado como cidadão brasileiro. Adaptando essa noção à analogia apresentada por Mufwene, é como se os catarinenses falantes de alemão ou italiano estivessem contaminados por um parasita diferente, o que colocava em risco e/ou competição a sobrevivência da língua portuguesa nesta região, além de possibilitar questionamentos sobre parâmetros de cidadania impostos.   

Deste modo, é perceptível as diversas aplicações que as ideias apresentadas por  Salikoko S. Mufwene, as quais incluem debates sobre política linguística, estudos de variação e mudança, além de reflexões sobre a amplitude de discussões linguísticas sob o viés de outras ciências, como a ecologia e a genética de populações.

 

REFERÊNCIAS

MUFWENE, Salikoko S.  Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice. In: MUFWENE, Salikoko S.The Ecology of Language Evolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.  p. 145-156. (Cambridge Approaches to Language Contact).

OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, n. 7, p.19-26, 2009.

 

Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras

27/12/2022 16:25

Por Vítor Pluceno Behnck
Ex-bolsista PET Letras UFSC
Graduado em Letras – Inglês (UFSC)
Mestrando em Inglês – Estudos Linguísticos (PPGI/UFSC)

 

Este último 23 de dezembro de 2022 (sexta-feira), último dia da minha graduação de Licenciatura em Letras – Inglês, conclui também minha trajetória enquanto bolsista do Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina. Quando o professor Atilio Butturi Junior me pediu para escrever um texto “de despedida”, fiquei pensando em todas as pessoas que passaram por mim durante esses três anos de PET-Letras. Foram vários colegas bolsistas, dois tutores, e muitos colaboradores voluntários e inscritos nas ações de ensino, pesquisa e extensão de que participei. Nesse texto, quero relatar e compartilhar minhas vivências no programa, a fim de criar uma memória que não se finda em si só, mas que se mantém como um convite àqueles que querem participar e colaborar com o programa.

Iniciei minhas atividades no Programa em agosto de 2019, como professor voluntário de Língua Inglesa. O que pouca gente sabe é que não pude estar presente na minha primeira aula como professor por conta de um momento muito delicado da minha trajetória pessoal, que foi o falecimento do meu pai. Atuar como professor voluntário foi muito importante para mim naquele momento, pois criou um desafio a minha rotina que colaborou no meu processo de compreender aquele momento da minha vida. Posteriormente, já como bolsista, lecionei mais uma vez o curso de Língua Inglesa 1, mas na modalidade remota com minha colega Luciana dos Santos. Ainda neste ano, lecionei mais um curso, mas dessa vez voltado à formação dos professores voluntários de Línguas Adicionais do programa. Parafraseando Freire, aprendi ensinando e ensinei aprendendo.

Durante o período de Ensino Remoto Emergencial (ERE) ocasionado pela pandemia de Coronavírus, uma das iniciativas do PET-Letras foi a publicação dos textos ComunicaPET, visando estimular a produção textual dos bolsistas e o compartilhamento de suas vivências durante o isolamento social. O projeto seguiu seu próprio rumo até os dias atuais, e nesse meio tempo tive a oportunidade de compartilhar algumas escrevivências: na primeira matéria publicada, intitulada “How to study English during the quarantine? Dicas para estudar Inglês em casa”, busquei colaborar com aqueles que queriam continuar os estudos em Inglês, apesar da crise sanitária, econômica, educacional e social. Nesse mesmo contexto, escrevi “Sobre salvar vidas e alimentar almas”, compartilhando artistas — Susano Correia e Gabriela Buffon — cuja arte me ajudou a passar por aquele momento. Ainda isolado em casa, compartilhei minha experiências com podcasts no texto “Podcast: o que é, para que serve e como ouvir?”.

A partir desse texto, resolvi tornar meus ComunicaPETs narrativas mais pessoais e que, de alguma forma, contassem minha história. Escrevi sobre minha relação com a Língua Alemã, no texto “Língua e memória: ‘eine Hommage an meinen Vater’”, divulguei um trabalho de graduação no texto “Você conhece o Guia Prático para Professores de Primeira Viagem?”, e teci comentários sobre como percebo, numa perspectiva ideológica, o ensino de Língua Inglesa no texto “Inglês como língua de transformação: um manifesto”. No décimo mês do segundo ano de pandemia, me questionei: “Quem seremos nós quando a pandemia acabar?”, e já em 2022 relatei minha experiência cinematográfica com o filme “‘The Lost Daughter’ (2021): a review on a son’s vision”.

Mais tarde nesse mesmo ano pude compartilhar “O que eu aprendi com bell hooks”, prestando uma homenagem à autora que faleceu no ano anterior e que tanto colaborou para minha formação profissional e acadêmica. Nesse mesmo ano, participei de um intercâmbio cultural e acadêmico na Universidade de Colônia, na Alemanha, que culminou no relato de experiência “Cologne Summer Schools: my experience as an international student”. Por fim, chegamos ao presente texto, que celebra todos os que vieram antes: “Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras”.

Ademais, uma atribuição permanente que tive do primeiro ao último dia como bolsista do PET-Letras foi o gerenciamento do projeto PET-Mídias, que gerencia a produção e o compartilhamento dos materiais de comunicação do grupo. Dessa maneira, estive um pouco presente em grande parte das atividades do grupo, até mesmo aquelas com que eu não tinha relação direta. Nesse sentido, é interessante ressaltar para aqueles que visam entender o funcionamento do Programa, que não se trata só de ações como os cursos de idiomas, mas demais ações de ensino, pesquisa e extensão que colaboram para difusão do conhecimento na área de Linguística, Letras e Artes dentro e fora da universidade.

Na minha despedida, quero enfatizar como ser um bolsista PET pode ser um diferencial na vida de um estudante curioso, que se interessa em explorar o conhecimento e as suas possibilidades. A horizontalidade do grupo permite que o Programa tenha um perfil dinâmico, que se altera a cada novo integrante que adere ao Programa e que deseja implementar seus projetos e colaborar com aqueles que já existem. Não obstante, não posso ignorar o claro desrespeito das autoridades durante esses três anos no que diz respeito ao atraso das bolsas dos estudantes e da verba de custeio do Programa, além da falta de reajuste das bolsas há mais de uma década, o que faz com que tenham perdido 76% do seu poder de compra nesse meio tempo (SBPC, 2022).

Por fim, ressalto a importância da união dos grupos PET — especialmente em eventos como Encontro Nacional do Programa de Educação Tutorial (ENAPET) — num constante movimento de reafirmação da relevância do Programa em termos de desenvolvimento científico, cultural e tecnológico das Universidades. Para além desses benefícios, o Programa resiste também como uma ferramenta de permanência estudantil, onde estudantes podem produzir ciência e cultura que colabora com o desenvolvimento social ao passo que recebem uma remuneração que colabora no custeio dos seus estudos.

Por fim, agradeço ao Programa, aos tutores Carlos Henrique Rodrigues e Atílio Butturi Junior e aos demais colegas petianos por três anos de muito trabalho, dedicação e comprometimento com as ações de ensino, pesquisa e extensão realizadas. As habilidades que pude desenvolver no Programa contribuíram para formação de um profissional muito mais empático, sensível ao seu redor e preocupado em levar para fora dos muros o que há de melhor na Universidade. Vida longa ao Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da UFSC!

Fotodescrição: conjunto de sete imagens impressas postas sobre uma mesa de madeira. De baixo pra cima na primeira fileira, há uma foto em que só é possível ver um campo verde e algumas pernas. Abaixo, há vários integrantes do PET-Letras junto ao ex-tutor Carlos. Abaixo, há uma foto do primeiro encontro de formação de professores voluntários do PET-Letras em agosto de 2019. Abaixo, há uma foto com um fundo branco de cartolina com palavras escritas com o ex-bolsista Vítor na frente. Na coluna da direita, de baixo para cima, há a foto do ex-bolsista Vítor com o livro “O Educador” em frente ao seu rosto, cuja capa é a silhueta de Paulo Freire, abaixo há uma foto dos ex-bolsistas Luciana e Vítor conversando com uma aluna no Varandão do CCE, e abaixo há a última foto da coluna, onde estão o ex-tutor Carlos e o ex-bolsista Vítor no varandão do CCE.

“Wandinha”: o sucesso do grotesco

19/12/2022 06:21

Por Daniely de la Vega

Letras Português

Bolsista PET-Letras

Lançada em 23 de novembro, Wandinha é uma série estadunidense dirigida e produzida por Tim Burton. O novo sucesso da Netflix tem como protagonista a jovem Wandinha, interpretada por Jenna Ortega. Quem ainda não assistiu à série deste ano possivelmente lembra-se da personagem sob a pele de Christina Ricci, que deu vida a Wandinha nos filmes A Família Addams (1991) e A Família Addams 2 (1993). A história envolvente, os figurinos excêntricos e as críticas sociais não são as únicas razões para a nova série ser um sucesso instantâneo.

Segundo Marques (2021, p. 1), “[…] o grotesco atrai telespectadores desde o século XV até os dias atuais. O gênero – ou estética, como alguns autores preferem –, engloba o excêntrico, a comédia, o terror, o burlesco, o anormal e diversos elementos considerados ‘estranhos’ dentro da sociedade”. Além de encontrarmos o fascínio pelo grotesco na literatura, também o encontramos na cinematografia. O êxito da franquia A Família Addams, inspirada nos quadrinhos de Charles Addams, origina-se, principalmente, de suas personagens com personalidades excêntricas e hábitos macabros. De acordo com Carneiro (2019 apud MARQUES, 2021), a série A Família Addams (1964) foi a primeira produção lançada depois de um período de censura nos Estados Unidos que apresentou uma família fora dos padrões tradicionais da época, o que gerou um grande sucesso em uma sociedade que buscava sair do conservadorismo. Conforme Marques (2021, p. 2), “[…] tudo isso se liga diretamente ao grotesco, onde os indivíduos são atraídos por sua natureza estranha e comicamente macabra, mostrando um universo fora do eixo e da normalidade”.

Ainda segundo Marques (2021), Wandinha Addams foi retratada pelo cartunista Charles Addams como uma menina imaginativa que gosta de brincar em cavernas subterrâneas e tem um fascínio pela morte e por objetos considerados grotescos. A personagem causa uma sensação de estranheza nos telespectadores, visto que ela é uma criança com traços macabros, como seu gosto pela brincadeira de torturar seu irmão mais novo, Feioso – que é encorajada por seus pais e pelo próprio menino, o que gera comicidade.

O nome Wandinha é a tradução brasileira para o nome Wednesday (“Quarta-feira”). Segundo Carneiro (2019 apud MARQUES, 2021), o nome Wednesday foi inspirado na canção infantil Monday’s Child, que diz:

Criança de segunda-feira é justa do rosto, criança de terça-feira é cheia de graça, criança de quarta-feira é cheia de aflição, criança de quinta-feira tem muito a percorrer, a criança de sexta-feira ama e doa, criança de sábado trabalha duro para ganhar a vida, mas a criança que nasce no Sabá é justa e sábia em todos os sentidos. (CARNEIRO, 2019, p. 29 apud MARQUES, 2021, p. 13, grifo nosso)

Na série da Netflix, em contraste com as adaptações anteriores, Wandinha é uma adolescente que tem um grande apreço pela escrita, mas tem todos os seus livros rejeitados pelas editoras por serem extremamente “mórbidos”. Depois de cometer uma tentativa de homicídio contra a equipe de natação de sua antiga escola, ela é enviada por seus pais para a Escola Nunca Mais, conhecida por ser um lugar para “excluídos”. E, em outras palavras, seres ou pessoas que possuem dons sobrenaturais. Wandinha terá de aprender a dominar seus poderes psíquicos para conseguir desvendar o mistério da onda de assassinatos que assola a cidade, que tudo indica ser obra de um monstro, além de um segredo que envolve sua família há décadas.

Jenna Ortega soube dar vida a uma personagem sarcástica, intimidadora e sádica sem esquecer a humanidade. O talento da atriz somado à direção de Tim Burton foram fundamentais para o sucesso da série. O diretor até mesmo pediu a Ortega que não piscasse durante as cenas para gerar um efeito mórbido. A franja de cabelo usada por Wandinha, uma característica que não existia na personagem nas produções anteriores da franquia, possivelmente tem o papel de cobrir suas sobrancelhas, que são a base de nossas expressões faciais, para torná-la mais inexpressiva.

Fonte: Google Imagens

Descrição: A imagem mostra a personagem Wandinha interpretada por Jenna Ortega. Ela tem o cabelo preto e longo preso em duas tranças laterais e o rosto inexpressivo. A imagem mostra somente a parte superior de sua blusa, que é preta com pequenos desenhos indistinguíveis em dourado e possui uma gola branca. Há somente um fundo liso em roxo atrás da personagem.

De acordo com Sodré e Paiva (2014 apud MARQUES, 2021), o grotesco é um gênero operado pela catástrofe. Em Wandinha, assistimos à série se iniciar pela personagem libertando piranhas na piscina em que a equipe de natação de sua escola está treinando depois de praticar bullying contra Feioso. Conforme Marques (2021), em toda a franquia A Família Addams, acompanhamos o terror se transformar no cômico e o belo no bizarro. A principal razão para a série fazer tanto sucesso é que os telespectadores anseiam por algo que fuja dos padrões tradicionais. E Wandinha satisfaz tal desejo devido à sua estética grotesca.

 

 

REFERÊNCIA

MARQUES, Laura Giordani. O sucesso do grotesco: uma análise da série A Família Addams. 2021. 33 f. TCC (Graduação) – Curso de Publicidade e Propaganda, Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2021. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/20506. Acesso em: 15 dez. 2022.

Você sabe como ocorre o aprendizado da língua de sinais pela criança surda?

11/12/2022 16:02

Débora Klug e Hanna Boassi

Letras-Português

Bolsistas do PET-Letras

 

Em abril de 2002, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) foi oficialmente reconhecida como a língua oficial dos surdos pela Lei Federal nº 10.236 e a partir disso mudanças significativas em relação à comunidade surda aconteceram. Desta forma, a Libras passou a ser um direito das pessoas surdas — a importância da Libras como um direito significa que a pessoa consegue estar inserida dentro da sociedade, compreender o mundo e interagir com ele, como afirmam Elizabete Alves e Silvana Frassetto (2015).

Assim como outras línguas, a língua de sinais não é universal. Cada país possui a sua própria língua de sinais, que tem influências culturais do local a que pertencem. Então, diferente do que muitos pensam, todas as línguas de sinais possuem estruturas gramaticais próprias, sendo compostas pelos níveis fonológico, morfológico, sintático e semântico. Sendo assim, a única coisa que a diferencia das demais línguas é que é uma língua de modalidade visual.

Há um linguista norte-americano chamado Noam Chomsky, que alguns chamam de “pai da linguística moderna”,  e ele acredita que toda criança possui um dispositivo interno chamado faculdade da linguagem. Segundo ele, por isso, a linguagem é inata ao ser humano, sendo acionada através de estímulos linguísticos. Esses estímulos estão presentes no ambiente em que a criança está inserida, ou seja, tudo o que ela tem contato com a língua ao seu redor é um estímulo. Mesmo que esses estímulos não sejam completos – uma criança não vai ter contato com todos os elementos existentes da sua língua –, a criança é totalmente capaz de atingir a fluência de uma língua. Estes estímulos são chamados de inputs linguísticos.

Fonte: https://leiturinha.com.br/blog/wp-content/uploads/2021/01/iStock-1209996526-2048×1365.jpg

Descrição de imagem: no fundo, se percebe uma árvore desfocada; em frente a árvore, uma criança negra usando uma faixa branca no cabelo e uma camiseta listrada preta e branca gesticulando o sinal de Libras.

É importante compreender que a língua de sinais é a primeira língua dos surdos, e aqui vamos entender um pouco sobre como funciona a aquisição e o aprendizado dessa língua. A maioria das pesquisas feitas sobre esse assunto foram realizadas com crianças surdas com pais surdos, já que essas estão expostas ao input linguístico adequado para a aquisição da linguagem de forma natural – assim como uma criança ouvinte que adquire uma língua falada, por exemplo. Mas alguns estudos com crianças surdas com pais ouvintes resultaram, na maioria das vezes, num atraso na aquisição da linguagem, justamente pela falta desse input linguístico, já que as famílias normalmente demoram a conhecer a língua de sinais.

Uma publicação no Instagram do perfil SOPA-Lab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feito por Jociane Vieira de Farias (2022), apresenta uma comparação entre o desenvolvimento da língua de sinais e o da língua falada em crianças nos seus primeiros anos de vida. Ela explica que do primeiro ao terceiro mês de vida é comum que a criança emita sons, choros com intenção comunicativa e produção de gestos manuais. Depois disso,  a partir do quarto mês até o sexto mês de vida, se iniciam os balbucios, que podem ser tanto vocálicos como gestuais, imitando sons ou gestos emitidos por outras pessoas.

Já do sétimo ao nono mês de vida o bebê começa a produzir as primeiras sílabas orais ou manuais, por exemplo: o uso oral da sílaba “bo”, que comumente é usado para “bola”; e o uso gestual da mão aberta na bochecha, que normalmente significa “mãe”. A partir do décimo mês, a criança começa a produzir palavras com duas sílabas, como “mama” ou “papa” e a entender a entonação que é associada às falas ou à sinalização dos adultos por perto. Com um ano de idade, a criança já compreende o significado de algumas frases comuns ao seu cotidiano, que são acompanhadas de gestos e expressões.

Aos dois anos, as crianças já começam a produzir frases maiores, com combinações substantivo-verbo (por exemplo: cachorro brincar) e substantivo-adjetivo (como: árvore bonita). Nessa idade, a criança geralmente já possui mais de 50 palavras ou sinais em seu vocabulário. Com três anos, começam a diferenciar tempos e modos verbais — ou seja, conseguem diferenciar passado, presente e futuro, assim como indicativo, subjuntivo e imperativo. Quando a criança atinge os quatro anos, há uma melhora nas construções gramaticais (nas frases que ela monta); e também nas conjugações verbais (a criança percebe melhor as regras e usos das conjugações dos verbos na língua); também percebe-se que a criança começa a fazer monólogos, falar sozinha consigo mesma, tanto as crianças surdas em sinais quanto as ouvintes em língua oral. Aos cinco, começam a estabelecer comparações, observar semelhanças e diferenças e têm início do uso social da linguagem. As frases que produzem são equiparadas ao padrão de adultos. Por fim, dos seis anos em diante, se complexificam as noções corporal, espacial e temporal, assim como as estruturas sintáticas (elas são as combinações das palavras nas frases, e a combinação das frases entre si). Tudo isso ocorre de maneira progressiva.

A diferença entre a aquisição da linguagem entre uma criança surda e uma criança ouvinte é que, em determinado momento, logo após os primeiros balbucios, a criança surda normalmente para de oralizar e começa a focar principalmente em estímulos gestuais e visuais.

O período crítico de aquisição da linguagem de uma criança começa por volta dos dois anos de idade e vai até mais ou menos a puberdade, esse período pode ser considerado como o “pico” do processo de aquisição da linguagem; não que seja impossível haver aquisição em outros períodos, afirmam as linguistas da Universidade Federal de Santa Catarina, Ronice Müller de Quadros e Aline Lemos Pizzio 2011). As crianças surdas de pais ouvintes, que acabam sendo expostas mais tarde à língua de sinais, apresentam mais dificuldades na aquisição do que as crianças que foram expostas desde cedo.

Sendo assim, percebemos que o processo de aprendizagem da língua de sinais pela criança surda é equivalente ao aprendizado da língua oral pela criança ouvinte. A diferença entre eles obviamente é marcada pela diferença inerente entre essas línguas, assim como há diferenças no aprendizado de uma criança inglesa, em contato somente com o inglês, e uma criança brasileira, em contato somente com o português. Por fim, para além dessas diferenças incontornáveis, não devemos esquecer que a língua de sinais e a língua oral não possuem diferenças em termos hierárquicos, como se uma fosse mais difícil e complexa de aprender que outra. Aprender a língua de sinais é um direito da criança surda e garantir que ela tenha essa oportunidade de maneira adequada é um dever de uma sociedade que visa a igualdade e a justiça.

REFERÊNCIAS

ALVES, Elizabete Gonçalves; SORIANO, Silvana Frasseto. Libras e o desenvolvimento de pessoas surdas. Aletheia, Canoas, v. 46, p. 211-221, jan./abr. 2015.

PIZZIO, Aline L. ; QUADROS, Ronice Müller de. Aquisição da Língua de Sinais. Florianópolis: CCE/UFSC, 2011. v. 1.

FARIAS, Jociane Vieira de. O processo de aquisição e desenvolvimento da língua falada e da língua de sinais na criança. 9 de maio de 2022. Instagram: @sopa_lab. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CdVsMEcsdgQ. Acesso em: 6 dez. 2022.