A língua como espécie parasitária: relações entre linguística, ecologia e evolução em Salikoko S. Mufwene
Por Emmanuele Amaral Santos
Bolsista PET Letras UFSC
Letras – Português
Segundo o linguista congolês Salikoko S. Mufwene, é essencial que linguística como campo de estudo científico não apenas pense nas possíveis mudanças resultantes do processo de evolução, mas investigue que agentes participam ativamente dessas mudanças e como fatores estruturais da língua se comportam nesses processos. A partir dessas indagações e de um amplo estudo em conceitos da linguística evolucionária, da filogenética e ecologia, no capítulo seis de The Ecology of Language Evolution (2003), intitulado Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice, Mufwene discute tais questões paralelamente à formação, à evolução e ao desaparecimento de línguas crioulas de base lexical europeia, utilizados no capítulo como exemplos.
Imagem 1: Mufwene
Descrição de imagem 1: Um homem negro de cabelos brancos rentes a cabeça olha para a lateral esquerda da fotografia sem encarar a camêra, posicionando seu branço direito em algum ojetivo que não fica explícito na imagem. Ele usa óculos de grau redondo, veste terno e gravata azuis acompanhados de uma camisa formal azul clara. Ao fundo, é possível identificar uma estante marrom repleta de livros com capas de diversas cores e duas caixas laranjas empilhadas na lateral esquerda da fotografia.
Para introduzir os conceitos de ecologia e evolução partindo das noções teóricas trabalhadas no ramo de genética de populações, Mufwene descreve a evolução como “[…] mudanças a longo prazo que ocorrem em uma variedade linguística após um período de tempo.” (MUFWENE, 2003, p.145), além de destacar a diferença entre a evolução estrutural, que engloba as características morfossintáticas, fonético-fonológicas e lexicais, e a evolução pragmática, a qual faz referência às regulações sociais e contextuais do uso da língua. Essas diferenciações, no entanto, não assumem um caráter excludente, ou seja, elas coexistem no processo de evolução das línguas.
Mufwene ainda pontua que para entender como esses caminhos evolutivos são cunhados, é importante caracterizar o conceito de ecologia. A partir de Johanna Nichols (1994), essas ecologias podem ser caracterizadas como ecologia progressiva, quando o processo de mudança (evolução) é compreendido como responsável pelo aumento na complexidade da língua, ou como ecologia darwiniana, se partirmos do princípio que mudança (evolução) ocorre por seleção natural gerando diferentes especiações da língua (variações linguísticas).
Para o autor e para diversos autores da linguística moderna, como Gould (1993), o processo evolutivo não possui um propósito definido, ou seja: “Sistemas linguísticos podem evoluir tanto para uma maior complexidade estrutural quanto para estruturas mais simples, assim como podem ser novamente reestruturados sem que o sistema seja enquadrado como mais simples ou complexo que o anterior” (MUFWENE, 2003, p.147).
Deste modo, o capítulo propõe que o uso da noção de ecologia darwiniana seria mais assertivo em relação à linguística, já que salienta a existência de variedades e permite investigar os mecanismos que as originam.
Imagem 2: Primeira edição do livro The Ecology of Language Evolution publicado pela Cambridge University Press em 2001
A capa de um livro bege apresenta uma espécie de obra de arte centralizada. Esse quadro retangular possui um fundo marrom-amarelado e diversas figuras geométricas, como um círculo branco dentro de um círculo verde na margem superior esquerda e duas fileiras de triângulos em diferentes tamanhos que ocupam toda a lateral direita do quadro. Além disso, a capa também possui uma lateral esverdeada que percorre as margens esquerda e superior de todo o livro. No canto superior direito é possível ler “Cambridge Approaches to Language Contact” em fonte branca e dentro de uma caixa de texto preta. Logo abaixo, aparece o título do livro “The Ecology of Language Evolution” e, em baixo deste, o nome do autor “Salikoko S. Mufwene”. No canto inferior esquerdo, é possível notar uma caixa de texto retangular com o escrito “Cambridge”.
No decorrer do capítulo, Mufwene envolve os conceitos de evolução e ecologia a partir da ideia de que “A evolução de uma língua ocorre a partir de cada falante, por meio de seus atos de fala individuais e seus idioletos […]” (MUFWENE, 2003, p.147); deste modo, o falante como indivíduo assume o protagonismo do processo de evolução sem excluir os aspectos de controle coletivo da comunidade de fala, que regula essas transformações tanto estrutural quanto pragmaticamente durante o processo de evolução. Esse sistema de negociações entre o indivíduo e o grupo demonstra a natureza competitiva e seletiva das interações dentro do sistema de uma língua viva.
Ao abarcar esse protagonismo do indivíduo (idioleto) no processo de evolução (mudança), o autor reflete que as analogias da língua como um só “organismo”, que é coexistente entre uma mesma comunidade de fala, iniciadas no século XIX, estariam equivocadas, visto que ela não são capazes de explicar as variações dentro de uma mesma língua. Além disso, a analogia de língua como organismo não responde a outras questões ligadas à variação, como é o caso dos idioletos de um mesmo coletivo não serem idênticos, das diferentes velocidades de variação entre grupos sociais distintos pertencentes à uma mesma comunidade de fala e das especificidades do caso das línguas em regiões de contato linguístico.
Deste modo, Mufwene advoga que a analogia de língua como uma espécie seria mais adequada. O autor advoga que essa analogia permite compreender o processo de evolução como um sistema de mudanças dentro de uma estrutura que aceita um certo grau de variação dentro de cada espécie. Ademais, essa perspectiva também permite investigar o que chama-se de transmissão vertical e transmissão horizontal da língua, propiciando um mapeamento dessas variações de acordo com estudos quantitativos e qualitativos. Sobre o processo de transmissão de características provenientes de idioletos que acabam gerando novas variantes de espécies (línguas), Mufwene salienta sobre a maior importância dos fatores quantitativos, ou seja, do número de falantes.
Essa importância e outros fatores, como a relação direta entre a sobrevivência/favorecimentos sócio-histórico-econômicos entre uma língua e seus falantes, sustentam a perspectiva de Mufwene de que a língua está mais para uma espécie parasitária, com uma relação simbiótica entre a língua e o falante do que um tipo de espécie animal. Além disso, os parasitas como espécie são muito mais propícios à especiação (variações) e à evolução (mudança) em um período de tempo menor.
Tal relação simbiótica também permite refletir sobre o impacto de políticas linguísticas de caráter repressivo paralelmente à políticas de tortura e genocídio. A partir do apanhado histórico presente no artigo Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência lingüística, é possível notar que desde o período colonial foram estabelecidas políticas monolíngues que estimulavam o uso da língua portuguesa como única forma de comunicação oficial e posteriormente, detentora do status de língua nacional:
O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império” (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536). A política lingüística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento lingüístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história lingüística do Brasil poderia ser contada pela seqüência de políticas lingüísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram […] . (OLIVEIRA, 2009, p.20)
Através da analogia apresentada por Mufwene da língua como parasita e do falante como hospedeiro, podemos analisar que, além da substituição de línguas autóctones pela língua portuguesa, práticas como o isolamento dessa comunidade linguística em regiões que dificultem a sua sobrevivência e o extermínio de fauna e flora essenciais para a continuidade de rituais de cura/tradições também sustentam processo de glotocídio. Em outros períodos históricos do Brasil, como durante a chamada Era Vargas, práticas glotocidas semelhantes também fizeram parte das políticas linguísticas monolíngues de cunho nacionalista; como explicita Oliveira:
A Polícia Militar, em Santa Catarina como em outros estados, prendeu e torturou e obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que falando alemão. (OLIVEIRA, 2009, p.20)
Nesse contexto, o ato de falar português estava diretamente ligado a ser reconhecido e validado como cidadão brasileiro. Adaptando essa noção à analogia apresentada por Mufwene, é como se os catarinenses falantes de alemão ou italiano estivessem contaminados por um parasita diferente, o que colocava em risco e/ou competição a sobrevivência da língua portuguesa nesta região, além de possibilitar questionamentos sobre parâmetros de cidadania impostos.
Deste modo, é perceptível as diversas aplicações que as ideias apresentadas por Salikoko S. Mufwene, as quais incluem debates sobre política linguística, estudos de variação e mudança, além de reflexões sobre a amplitude de discussões linguísticas sob o viés de outras ciências, como a ecologia e a genética de populações.
REFERÊNCIAS
MUFWENE, Salikoko S. Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice. In: MUFWENE, Salikoko S.The Ecology of Language Evolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 145-156. (Cambridge Approaches to Language Contact).
OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, n. 7, p.19-26, 2009.
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