Slam Xodó e o amor em SC

20/03/2023 16:23

Por Angelo Perusso

Letras-Português

Bolsista PET-Letras

Antes de tudo, o que é slam? O slam é um tipo de competição de poesia falada, que foi criado na década de 1980, em Chicago, por Marc Kelly Smith. No slam, os poetas declamam seus textos autorais e são avaliados por jurados (geralmente escolhidos na plateia) e assim classificados até termos um vencedor. No contexto brasileiro, o slam se tornou um gênero literário de resistência, muito inspirado pelo rap, em que se priorizam temas como a experiência das pessoas periféricas e marginalizadas, bem como o combate a opressões como o racismo, o machismo, a lgbtqia+fobia entre outras ideologias e estruturas que tornam o mundo desigual.

O slam tem como característica fundamental dar voz. Todos podem competir e assistir, o que colabora para que textos poéticos, discursos e pessoas que geralmente são invisibilizadas pela sociedade possam ser ouvidos, apreciados e elevados pelo público. Além disso, o slam colabora para a construção de um saber coletivo. Tal fator se dá por três motivos: o primeiro é que o debate público feito com profundidade sobre diversos temas latentes na sociedade faz com que muitas pessoas possam se informar e aprender sobre diversos temas. O segundo é que, ao ter contato com a arte e a literatura produzida pelo slam, muitos jovens e adultos se sentem impulsionados a consumir literatura. Terceiro, porque a poesia do slam, além de ocupar o espaços das ruas e bares, também ocupa o espaço escolar tanto na produção de oficinas e demonstrações por parte de coletivos de poetas (como foi e é feito em Porto Alegre pelo coletivo Poetas Vivos) quanto em projetos como a construção do Slam Interescolar, em São Paulo, que é uma grande competição de poesia entre as escolas paulistas, que leva muitos jovens ao caminho da arte e que dá voz às suas questões e pensamentos.

No contexto de Santa Catarina, o movimento do Slam esteve adormecido, muito graças ao período pandêmico,  . O mais antigo que havia no estado, na cidade de Joinville, o Slam Guará, é referência no trabalho com o slam catarinense; ainda no norte do estado, atuou lindamente em 2022 o Slam Para Antonieta, que homenageia Antonieta de Barros e que tinha atuação itinerante entre Camboriú, Itajaí e Navegantes; já dentro da capital , surgiu o Slam Cruz e Sousa, homenageando o grande poeta Cruz e Sousa e que teve e tem atuação de referência na expansão do movimento do slam na cidade e no estado, e que teve grande papel na ressurreição do movimento aqui em Santa Catarina. Por fim, o Slam Estrela D’Alva, competição organizada por nós do PET-Letras e por mim, Angelo Perusso, que tem com diferencial e objetivo levar vozes periféricas e discursos excluídos do meio acadêmico para dentro do espaço universitário. Já em 2023, motivado pelo sucesso do slam no estado, surgiram diversos outros coletivos, como o Slam Carijó, Slam Dita, Slam Nosso Olhar, Slam Descoloniza Blu, Slam da Coline. O útimo deles, no qual componho a organização e que quero enfocar, é o Slam Xodó.

A foto mostra uma edição do slam xodó. Thuany está no centro do palco com o microfone na mão próximo à boca; ela é uma mulher negra, vestindo roupas brancas. Ao seu lado está Liza, olhando atentamente; ao redor vemos muitas pessoas, de costas, olhando a apresentação. No teto do espaço está um globo brilhante.

Como vimos, o slam tem muito espaço para textos mais sociais e combativos, entretanto, acaba acontecendo que alguns poetas prefiram falar sobre seus sentimentos, romances, amores e afetos – o que tem menos espaço nas competições de tema livre. O Slam Xodó foi criado com uma regra a mais: o poema tem de abordar o amor, em qualquer uma das suas formas. Pode ser sobre desamor, amor próprio, amor familiar, amor pelos pets, sobre afeto, sexo, aconchego, sobre todo o universo que compõe nossos xodós. Assim, as edições são noites de muito carinho; quem vai sai de lá abraçado, leve, em paz com o coração. De certa forma, a ideia do Slam Xodó se relaciona com o seguinte poema, de Sérgio Vaz:

Resistir ao lado das pessoas que a gente gosta,

deixa a luta mais suave, a gente não quebra, entorta.

As lágrimas ficam filtradas,

O suor mais doce e o sangue mais quente.

E sem que a gente perceba, percebendo,

as coisas começam a mudar à nossa volta.

E aquele sonho que parecia impossível,

acaba virando festa, enquanto a gente revolta.

O slam é um espaço de luta, disto não há dúvida. Porém, lutamos porque amamos. Lutamos porque amamos o povo e queremos que estes que amamos tenham uma vida justa, digna. Lutamos para que aqueles que amamos tenham comida, saúde, moradia, estudo, e a segurança de que podem viver em paz, sem ser alvos de políticas genocidas e sem ter seus direitos básicos negligenciados. Portanto, o amor é uma parte fundamental da luta, talvez de mãos dadas com a revolta, talvez um passo atrás, mas inegavelmente integrante da nossa busca por um mundo melhor. Logo, dentro deste movimento artístico e político, ele precisa ter também espaço, e essa é a ideia do Slam Xodó: espalhar o amor dos versos para os corações que amam a poesia.

Já aconteceram duas edições do Xodó: a primeira, no Espaço Multitudinal, no mês de fevereiro, e a segunda, na Casa Frisson , no último sábado, dia 18 de março, em que só competiram poetas mulheres e pessoas trans e não binárias. Ambos os eventos reuniram mais de 120 pessoas compondo o público e mais de 20 poetas em cada edição, o que evidencia: existe amor em SC.

Irmão do Jorel: imaginação e história

13/03/2023 06:37

Por Hanna Boassi

Letras – Português

Bolsista PET-Letras

Irmão do Jorel (2014) é uma série em animação brasileira criada por Juliano Enrico e produzida em parceria pela Cartoon Network e Copa Studio. A série mostra a vida do garoto conhecido apenas como Irmão do Jorel, filho caçula de uma família de acumuladores presa nos anos 80; junto com sua melhor amiga Lara, enfrenta os desafios da vida, tentando sair da sombra de seu irmão celebridade.

É importante ressaltar o fato de que o personagem não tem um nome, sempre sendo relacionado ao seu irmão Jorel; esse desprezo pela sua identidade nos dá a ideia do apagamento da autonomia da criança, de seus problemas e vontades. Outro ponto que chama atenção na produção é que a animação se assemelha a muitas outras produções da Cartoon Network, sempre criando situações de forma mais lúdica. O diferencial de Irmão do Jorel é que os elementos da imaginação do personagem principal, que é uma criança, se misturam com a realidade, nos dando a possibilidade de ver o mundo com uma perspectiva mais infantil e imaginativa.

Dessa perspectiva lúdica, leiamos Vigotski (1982, p. 8): “A imaginação, como base de toda atividade criadora, se manifesta por igual em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e técnica.” Segundo Almeida e Souza (2021), a atividade imaginativa se liga com a realidade de diversas formas, como através de elementos tomados da realidade e aqueles extraídos de experiências anteriores, já que a fantasia se constrói a partir de elementos do mundo real. 

Sendo assim, as crianças têm maior facilidade de criar o seu mundo particular, mesmo sabendo da existência da realidade. Elas utilizam desse poder imaginativo para poder criar uma melhor forma de lidar com questionamentos e situações que possam ser expostas. No caso do Irmão do Jorel, podemos acompanhar a vida de uma criança excluída do ambiente em que vive, estando sempre à sombra de seus irmãos mais velhos, mas assistimos especialmente Jorel, que na trama é uma celebridade. 

Descrição da imagem: o personagem Irmão do Jorel está centralizado na imagem; ele é branco, com cabelos cacheados pretos, e veste uma regata preta, bermuda vermelha e galochas amarelas. Sua expressão facial é de deslumbramento e ele se encontra em meio a árvores. 

Algo muito presente em Irmão do Jorel são suas referências históricas e como são retratadas para o público infantojuvenil. No segundo episódio da primeira temporada, por exemplo, chamado “Gangorra da Revolução”, o pai do Irmão do Jorel conta-lhe, já no início, como é importante lutar por sua liberdade e como ele fazia isso em sua época de “revolucionário”. O pai do Irmão do Jorel ressalta a importância de uma revolução e de ser um revolucionário para o filho e, de uma forma satírica, ele conta histórias dos seus dias de revolução.

Descrição de imagem: seis policiais representados como palhaços estão enfileirados como uma barreira; atrás dele se observa um tanque de guerra verde, e à frente deles, o pai de Irmão do Jorel, vestido com uma fantasia de urso panda.

Mais adiante na narrativa, vemos o Irmão do Jorel lutando contra o autoritarismo de sua diretora junto de seus colegas, que desejam aproveitar mais tempo do recreio. Mas o que chama atenção no episódio são as diversas referências ao período da Ditadura Militar (1964-1985). Na animação, os policiais são retratados como palhaços: eles já haviam implantado uma ditadura repressiva onde os próprios palhaços eram proibidos de se divertir e fazer piadas.

Apesar de ser uma animação voltada para o público infantil, Irmão do Jorel pode ser utilizado para além do entretenimento e também como material de apoio didático, já que faz essa aproximação da história com um conteúdo de fácil entendimento para as crianças, o que faz com que o interesse em entender a história seja maior.

 

Referências

VIGOTSKY, L. S. A imaginação e arte em infância. Madrid: Akail, 1982.

ALMEIDA, Flávio Aparecido de; SOUSA, Luciano Dias de. O Ensino de História através da representação de identidade brasileira na animação Irmão do Jorel. In: ALMEIDA, Flávio Aparecido de. Ensino de História: histórias, memórias, perspectivas e interfaces – volume 2. São Paulo: Científica Digital, 2021. p. 144-155.

 

Conhecendo os princípios e categorias da Ecopedagogia

06/03/2023 15:55

Por Daniely Karolaine de la Vega e Emmanuele Amaral dos Santos

Bolsistas PET Letras

Letras Português

 

De acordo com Gadotti (2001, p. 81, grifo do autor), “[…] vivemos uma era de exterminismo”. Devido à produção industrial descontrolada, podemos destruir toda a vida do planeta Terra. Diante disso, as futuras gerações terão de realizar a árdua tarefa de obter soluções para esse problema. Esperamos que as providências sejam executadas antes que essa situação se torne irredutível. Por isso, precisamos ecologizar a economia, a pedagogia, a educação, a cultura, a ciência etc.

O desenvolvimento capitalista gera um grande potencial destrutivo que o coloca em uma posição negativa à natureza. O capitalismo ampliou a capacidade de destruição da humanidade e reduziu o bem-estar e a prosperidade desta. Entretanto, vivemos também na era da informação em tempo real, da globalização da economia, da realidade virtual, da quebra de fronteiras entre nações, da robótica e dos sistemas de produção automatizados.

Imagem 1:

Descrição da imagem: Em um fundo bege claro, aparece um planeta terra, em tons de verde, acima de uma mão rodada e com as unhas pintadas de verde. Estes são acompanhados de várias ilustrações em tons terrosos que fazem alusão à sustentabilidade, incluindo talheres de bambu, uma lâmpada e um ícone de material reciclável. Também é possível identificar duas nuvens no canto superior esquerdo e dois ramos de folhas que contornam o planeta Terra lateralmente.

O cenário está dado: globalização provocada pelo avanço da revolução tecnológica, caracterizada pela internacionalização da produção e pela expansão dos fluxos financeiros; regionalização caracterizada pela formação de blocos econômicos; fragmentação que divide globalizadores e globalizados, centro e periferia, os que morrem de fome e os que morrem pelo consumo excessivo de alimentos, rivalidades regionais, confrontos políticos, étnicos e confessionais, terrorismo (GADOTTI, 2001, p. 82, grifo do autor).

O contexto explicitado por Gadotti ainda se faz intrisicamente presente nas vivências contemporâneas, assim como a importância de refletir sobre a chamada educação do futuro. Podemos começar esse processo discutindo sobre algumas categorias que propõe a compreendê-la, como:

  1. Planetaridade: segundo Padilha et al. (2011, p. 239), esta categoria consiste em “tratar o planeta como um ser vivo e inteligente”. Está relacionada a optar por uma relação saudável e equilibrada com o contexto, consigo mesmo, com as outras pessoas e com os ambientes.
  2. Sustentabilidade: o tema da sustentabilidade surgiu na economia e na ecologia para se inserir definitivamente no campo da educação. Ele se fundamenta no lema “Uma educação sustentável para a sobrevivência do planeta”, difundido pelo Movimento pela Carta da Terra na Perspectiva da Educação e pela Ecopedagogia.
  3. Virtualidade: esta categoria consiste na discussão atual sobre a educação à distância e o uso de internet nas escolas. A informação deixou de ser compreendida como uma área ou especialidade para se transformar em uma dimensão de tudo, alterando a forma como a sociedade se organiza, inclusive o modo de produção.
  4. Globalização: o processo de globalização está realizando mudanças na política, economia, cultura, história… Portanto, também na educação. É uma categoria que deve ser observada sob vários prismas. O global e o local se fundem em uma nova realidade: o “glocal”. Para pensar a educação do futuro, precisamos refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações.
  5. Transdisciplinaridade: embora com significados distintos, algumas categorias, muito próximas da transdisciplinaridade, como transculturalidade, transversalidade, multiculturalidade e outras, também indicam uma nova tendência na educação, que é necessário analisar.

Essas categorias são essenciais para a compreensão das perspectivas atuais da educação, mas não bastam para entender a ecopedagogia como uma teoria da educação que impulsiona a aprendizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana. Para isso, precisamos desenvolver outras categorias relacionadas ao âmbito da subjetividade, da cotidianidade e do mundo vivido; categorias que estruturam a vida cotidiana, levando em conta as práticas individuais e coletivas e as experiências pessoais.

Para compreender o que é ecopedagogia, devemos começar por determinar o que é pedagogia e o que é sustentabilidade. Nos livros de Francisco Gutiérrez e Daniel Prieto sobre a “mediação pedagógica”, eles definem pedagogia como um trabalho de incentivo da aprendizagem por meio de recursos necessários para o processo educativo no cotidiano das pessoas. Para os autores, a vida cotidiana é o espaço do sentido da pedagogia, pois a condição humana caminha irremediavelmente por ela. A mídia eletrônica não anula esse espaço, uma vez que “a revolução eletrônica cria um espaço acústico capaz de globalizar os acontecimentos cotidianos” (GUTIÉRREZ, 1996, p.12 apud GADOTTI, 2001, p. 85), tornando o local global, e o global, local. Isso é o que denominamos, nas Organizações Não Governamentais (ONGs), de “glocal”. O cotidiano e a história se fundem em um só. A cidadania ambiental local se torna também cidadania planetária.

Contudo, “não podemos falar em cidadania planetária excluindo a dimensão social do desenvolvimento sustentável” (GUTIÉRREZ, 1996, p. 13 apud GADOTTI, 2001, p. 85). Essa advertência de Francisco Gutiérrez é elucidativa, pois é necessário diferenciar um ecologismo elitista e idealista de um ecologismo crítico que coloca o ser humano no centro do bem-estar do planeta. Porém, “o bem-estar não pode ser só social, tem de ser também sócio-cósmico” (BOFF, 1996, p. 3 apud GADOTTI, 2001, p. 85). O planeta é minha casa, e a Terra, meu endereço. Como posso viver bem em uma casa mal arrumada, mal cheirosa, poluída e doente?

Para Francisco Gutiérrez, parece impossível construir um desenvolvimento sustentável sem uma educação para o desenvolvimento sustentável. Para ele, o desenvolvimento sustentável carece de quatro condições fundamentais:

  1. economicamente factível
  2. ecologicamente apropriado
  3. socialmente justo
  4. culturalmente eqüitativo, respeitoso e sem discriminação de gênero.

A ecopedagogia como prática educacional também é articulada e incentivada por diversas instituições internacionais, como é o caso da UNESCO. No documento “Educação para os objetivos de Desenvolvimento Sustentável – Objetivos de Aprendizagem” publicado em 2017, por exemplo, a UNESCO descreve a organização da EDS (Educação para o desenvolvimento sustável)[inserir link], indicando objetivos, atividades e métodos a serem implementados por educadores, escolas e políticas públicas educacionais. Em consonância a agenda global para a educação até 2030, esse documento da UNESCO pensa a prática educacional ecopedagógica como um pilar essencial no processo de garantia dos diversos objetivos que compõem o desenvolvimento sustentável:

[…] que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e da não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural[…]  (UNESCO, 2017, p.8)

Em âmbito nacional, podemos destacar o projeto (PECP) Programa educação para a cidadania planetária, desenvolvido entre os anos 2007 a 2011 em Osasco (SP) com intermédio do Instituto Paulo Freire. Esse programa concebe “[…] uma educação com visão de totalidade do conhecimento e dos saberes, superando a histórica fragmentação do conhecimento e considerando a sua complexidade.” (PADILHA, 2001, p.19), ou seja, o PECP evoca diversos conceitos essenciais para a ecopedagogia como a transdisciplinaridade e a planetaridade.

Outros conceitos relevantes para entender o programa são a cidadania planetária e a pedagogia da Terra. Ambos propõe a ideia de que a Terra é um organismo vivo ao qual somos interdependentemente ligados e que isso torna necessária a inserção de outros conceitos como  ecologia, ética, estética e sociedade no contexto escolar. Além disso, essa proposta de civilização planetária compreende o ser humano dentro da esfera de complexidade e diversidade da natureza, assim como a importância da manutenção dos direitos sociais, políticos, culturais e econômicos para a fundamentação dessa proposta tal qual descrevem os princípios da ecopedagogia.

 

REFERÊNCIAS

 

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da terra: ecopedagogia e educação sustentável. In: TORRES, Carlos Alberto (comp.). Paulo Freire y la agenda de la educación latinoamericana en el siglo XXI. Buenos Aires: CLACSO, 2001. p. 81-132.

PADILHA, Paulo Roberto et al. (org.). Educação para a cidadania planetária: currículo intertransdisciplinar em Osasco. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2011.

UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a CulturA. Education for Sustainable Development Goals: learning objectives. Paris, 2017.

 

“O Quarto de Jack”: um mundo limitado a um quarto

13/02/2023 08:34

Por Daniely de la Vega

Letras Português

Bolsista – PET Letras

Indicado para Melhor Filme no Oscar do ano de 2016, O Quarto de Jack é uma adaptação do romance Quarto (2010), da irlandesa Emma Donoghue. O filme proporcionou indicações de Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado para Lenny Abrahamsson e Donoghue, respectivamente –, além da estatueta de Melhor Atriz para Brie Larson. Atualmente disponível para os assinantes dos serviços de streaming Star+ e Amazon Prime Video, a produção apresenta uma trama extremamente densa. O Quarto de Jack pode ser dividido em dois grandes momentos: o primeiro mostra o período de confinamento de uma mulher sequestrada quando adolescente com o filho gerado em uma relação não consensual com o sequestrador; e o segundo ocorre a partir da fuga arquitetada por ela.

Fonte: Google Imagens

Descrição da imagem: Joy segura Jack em seu colo. Joy é uma mulher branca de cabelo castanho vestida com um casaco cinza, e Jack é um menino branco vestido com uma touca cinza com formato de um animal e uma jaqueta de estampa quadriculada em tons de azul e verde. Eles olham um para o outro sorrindo. No fundo, há um céu azul e uma floresta com as dimensões de um cubo.

Joy (Brie Larson) e Jack (Jacob Tremblay) estão reféns em um pequeno quarto sem janelas e com isolamento acústico. Apesar das circunstâncias aterrorizantes vividas por ambos, Joy se empenha em tornar aquele ambiente agradável para o menino, que desconhece a existência de um universo além do quarto em que nasceu e cresceu até os 5 anos de idade. Joy cria um mundo que se limita ao quarto em que estão confinados, tendo cautela para que Jack não perceba que existe um mundo muito mais amplo fora daquele cômodo e, dessa forma, não sofra a frustração derivada do aprisionamento. O drama narrado por Jack mostra a rotina de ambos dentro do cativeiro, sendo o único contato com o mundo exterior as visitas do velho Nick – como mãe e filho chamam o sequestrador –, que leva comida, roupas e outras necessidades solicitadas.

Joy e Jack levam uma vida “normal” dentro de seu mundo limitado àquele quarto, com brincadeiras, sessões de alongamento, hora de contar histórias, dentre outras atividades, até que Joy elabora um plano para que o filho consiga fugir do cativeiro. Depois de conseguirem ser resgatados, eles precisam enfrentar a realidade do mundo real além do quarto. Desse modo, Joy e Jack entram em um processo de adaptação à nova realidade: enquanto Jack trabalha para superar dificuldades de comunicação social e conhecer o mundo do qual foi privado, Joy precisa lidar com seus pais e os traumas que adquiriu depois de ter sua vida interrompida aos 17 anos de idade.

A imersão que o filme produz é surreal, e não somos agraciados com muitos momentos de alívio. Quem se interessa por filmes densos que abordam aspectos psicológicos e filosóficos se apaixonará por O Quarto de Jack. O filme não é fácil de ser digerido, pois ele toca em assuntos extremamente sensíveis, como sequestro, cárcere privado e abuso sexual. A transformação de Joy e Jack é um labirinto de emoções, que arranca nosso fôlego e nos leva às lágrimas em incontáveis momentos.

Confira o trailer oficial:

*

A influência da “book rede”

07/02/2023 11:05

Por Izabel Bayerl Bonatto

Letras-Português

Bolsista PET – Letras

 

Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, promovida pelo Instituto Pró-Livro (IPL) desde 2007, na sua 5ª edição realizada em 2019, houve um aumento de 3% da recomendação em sites especializados, blogs ou redes sociais como fator de influência na escolha de um livro para compra em comparação com 2015. Além disso, 25% das pessoas entrevistadas responderam que começaram a se interessar por literatura por causa de um influenciador digital, como youtuber, pela internet. A pesquisa tem como objetivo “[…] conhecer o perfil do leitor e do não leitor brasileiro, identificando seu comportamento leitor quanto a intensidade, forma, limitações, motivação, representações e condições de leitura e de acesso ao livro – impresso e digital” (CARVALHO et al., 2020).

As redes sociais ganharam uma utilidade a mais e nelas foi criada a famosa “book rede”, a qual viralizou durante a pandemia do COVID-19, e diversas pessoas fãs de literatura, denominadas então “bookstans”, passaram a criar perfis nessas redes – no TikTok (conhecido como Booktok) e no Instagram (denominado Bookstagram) – com o intuito de compartilhar suas leituras, dar sugestões de livros e falar a respeito dos temas e gêneros preferidos sobre literatura. Muitos desses perfis acabaram ganhando milhares de seguidores e, consequentemente, tendo mais influência de leitura sobre as pessoas que os acompanham.

A grande maioria dos livros considerados “best sellers” de 2021 e 2022, ou seja, os mais vendidos desses anos, tiveram um gigantesco volume de conteúdos produzidos em massa por esses perfis das ‘book redes’ e atingiram milhões de pessoas. Dentro dessa lista dos então considerados “queridinhos das book redes” estão: Os Sete Maridos de Evelyn Hugo (2017), de Taylor Jenkins Reid; Torto Arado (2018), de Itamar Vieira Júnior; Mentirosos (2014), de E. Lockhart; Mulheres que correm com os lobos (1989), de Clarissa Pinkola Estés; Enquanto Não Te Encontro (2021), de Pedro Rhuas; 1984 (1949), de George Orwell; Os Dois Morrem no Final (2017), de Adam Silveira; Vermelho, Branco e Sangue Azul (2019), de Casey McQuiston; A Garota do Lago (2019), de Charlie Donlea, Conectadas (2019), de Clara Alves. Há, claro, diversos outros.

O perfil da Letícia no Instagram (@biblioleticia), que tem como intuito falar sobre livros da comunidade LGBTQIA+, e o da Luana no TikTok (@luaninhareads), que aborda de livros temas mais abrangentes, são ótimos exemplos de brasileiras que fazem parte da “bookrede” e que fazem publicações mais descontraídas sobre literatura.

 

Descrição das Imagens: são duas imagens com fundo branco de duas capturas de tela de perfis de redes sociais. A primeira captura de tela é do perfil do Instagram do arroba biblioleticia, com a foto do perfil de uma arte de uma garota branca com cabelo curto castanho com as pontas azuis sorrindo no canto superior esquerdo, ao lado direito tem a indicação de duzentas e trinta e uma publicações, oitenta e quatro mil e trezentos seguidores e setecentos e vinte e nove seguindo. Em seu nome está indicado Leticia com dois traços na vertical seguido de Bookstagram e ela barra dela, abaixo indicando que é criador(a) de conteúdo digital); em sua biografia do aplicativo está o emoji de pastas e ao lado está escrito Bibi dois pontos Bibliotecário e Bissexual; abaixo está o emoji da bandeira LGBTQIA+ e escrito Representatividade LGBTQIA; mais abaixo está o emoji de brilho e sua idade vinte e seis anos, seguido do emoji de um livro aberto e o texto Lendo, dois pontos, priorado da laranjeira. A segunda captura de tela é do perfil do tiktok do arroba luaninhareads; seu nome está indicado como Luana e ela barra dela, e sua foto do perfil é de uma garota branca com cabelo loiro com a cabeça deitada sobre de uma pilha de livros; abaixo da foto está a indicação de duzentos e noventa e seis seguindo; ao lado direito cento e setenta e sete mil e setecentos seguidores e à direita cinto milhões e meio de curtidas. Abaixo dessas informações está aparecendo a opção de seguir o perfil; do lado, o símbolo do Instagram e uma seta apontando para baixo. Em sua biografia está escrito “sim é romance”. 

 

Vale ressaltar também, por fim, que comunidade “bookstan” ainda possui grande relevância se tratando da elevação as vendas do mercado literário em vários países, como aborda o jornalista Samuel Ruiz Anklam (UFRGS) em seu texto “Booktok impulsiona mercado literário e demonstra o impacto das redes sociais no consumo” de 2022, além de favorecer a visibilidade de diversos autores, tanto nacionais quanto internacionais.

BIBLIOGRAFIA

ANKLAM, Samuel Ruiz. Booktok impulsiona mercado literário e demonstra o impacto das redes sociais no consumo. 2022. Jornal da Universidade (UFGRS). Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/efeito-booktok-no-consumo-dos-leitores/. Acesso em: 04 fev. 2023.

CAMACHO, Gabu. Você sabe o que é um bookstan? 2020. Beco Literário. Disponível em: https://becoliterario.com/voce-sabe-o-que-e-um-bookstan/#:~:text=S%C3%A3o%20os%20bookstans%2C%20que%20al%C3%A9m,qualquer%20banda%2C%20cantor%20ou%20cantora.&text=Aquele%20f%C3%A3%20que%20acompanha%2C%20sabe,poderia%20ser%20somente%20%E2%80%9Cleitores%E2%80%9D. Acesso em: 04 fev. 2023.

NOVAES, Jamille. Carreira e Negócios: conheça a lista com os 10 livros mais vendidos em 2021. 2021. FDR. Disponível em: https://fdr.com.br/2021/12/27/carreira-e-negocios-conheca-a-lista-com-os-10-livros-mais-vendidos-em-2021/. Acesso em: 04 fev. 2023.

CARVALHO, Alexandre; et al. Pesquisas e Projetos IPL. Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. ed. 5, 2020. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/. Acesso em: 04 fev. 2023.

THEONILA, Victoria. Livros “best sellers” em 2022. 2022. Revista L’Officiel. Disponível em: https://www.revistalofficiel.com.br/cultura/livros-best-sellers-em-2022. Acesso em: 04 fev. 2023.

Experiências do ensino de literatura no ensino público

31/01/2023 13:06

Por Laiara Serafim

Letras-Português

Bolsista Pet – Letras

Recentemente, a professora de ensino público, Thaís Gonçalves Martins, concluiu o mestrado, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com um projeto intitulado Baú da Leitura, que visou o desenvolvimento da leitura e da escrita dos alunos do ensino fundamental, a partir de uma visão crítica gerada na interação com os colegas de sala e com a  professora.

No projeto, os alunos do 9° ano realizaram a leitura do livro A bolsa amarela de Lygia Bojunga. Por possuir um único exemplar na biblioteca da escola, a professora teve que imprimir diversas cópias do livro com recursos próprios, para que, assim, todos tivessem acesso à obra. A escolha da obra, segundo a professora, se deu com o intuito de gerar um reconhecimento entre os alunos e a obra, devido ao tema central do livro, que trata sobre os desejos da infância e adolescência de uma garotinha, a Raquel. Mas, sobretudo, porque o livro apresenta questões como o empoderamento feminino e as relações de poder existentes, o que tende a gerar juízos de valor e pensamentos reflexivos e críticos. Segundo a professora, “A leitura do livro A bolsa amarela foi feita de forma gradativa e dinâmica, tendo como instrumento de registro o diário de leitura” (MARTINS, 2022, p. 229). O projeto seguiu diversas etapas, iniciando com uma conversa dinâmica entre a professora e os alunos sobre desejos e vontades; em seguida, foi feita uma breve introdução à obra e realizadas várias formas de leitura – coletiva, individual, pela professora, etc.

Todas essas etapas foram divididas por semanas e em diferentes aulas, mas é importante ressaltar que a leitura foi realizada de diversas formas e em diferentes ambientes, desde a sala de aula até o pátio da escola, proporcionando aos alunos diferentes contatos e experiências com o processo de leitura. Durante cada etapa de leitura era realizada uma pausa para que os alunos pudessem anotar os seus pensamentos, dúvidas e comentários em seus “diários de leituras”, um fichário individual realizado por cada aluno, o que possibilitou o início da formação de um pensamento crítico e principalmente reflexivo. A ideia de formação de pensamento crítico a partir da leitura também é legitimada pelo professor Luiz Percival Britto, em seu ensaio Ao revés e do avesso, que defende, sobretudo, incentivar o desenvolvimento de leitores críticos, capazes de questionar o texto e absorver as ideias do autor de forma consciente.

Após o término da leitura na íntegra, os alunos realizaram uma socialização, na qual debateram sobre o livro, tiraram as dúvidas com a professora e tiveram conhecimento sobre os posicionamentos dos colegas. Por fim, cada aluno produziu uma resenha do livro A bolsa amarela, que foi exposta em um mural na escola.

Segundo a pesquisadora, as discussões e trocas de informações entre os colegas de sala foram essenciais para a compreensão do texto e para a concretização dos posicionamentos defendidos. Por sua vez, a produção do gênero diário de leituras gerou nos estudantes maior reflexão sobre o texto literário e maior interação com os personagens da história, sendo essa uma etapa fundamental para a formação de leitores literários. Para Martins, os projetos de leitura precisam ser organizados e sistematizados pois “[…] de nada adianta promover uma aula de leitura por semana para os estudantes sem propósitos e objetivos.” (MARTINS, 2022, p. 236).

Como aluna advinda de escola pública, entendo a importância dos projetos de leituras na escola, sobretudo entendo a importância do profissional de Letras e pedagogos para que esses projetos aconteçam, uma vez que é necessário tirar do financiamento pessoal para que as aulas de literatura aconteçam no ensino público. Para Britto (2015), a criação de projetos de leitura deve sempre manter um caráter ativo na defesa da leitura como direito e privilegiar os trabalhos nas escolas e bibliotecas públicas. Na atual conjuntura, faz-se cada vez mais  necessário formar cidadãos críticos. E para isso, é necessário formar jovens leitores.

Dada a importância da pesquisa, resolvi conversar com a professora Thaís, que me respondeu algumas questões (por meio de perguntas enviadas on-line):

Laiara: A sua tese é baseada em um projeto realizado em 2019, intitulado “baú da leitura”. Você tem dado continuidade ao projeto? Quais os resultados a longo prazo estão sendo gerados?

Thaís Martins: Não leciono mais na escola que realizei o projeto “baú da leitura”. Em 2020 pedi remoção e atuo em outras escolas, então, não tenho informações sobre a continuidade do projeto, o que sei é que a diretora tinha interesse em continuar, pois foi um projeto que movimentou a escola e proporcionou aos alunos o contato com o mundo da literatura.

Laiara: No texto, você diz ter escolhido o livro “Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, para o projeto, por ter como objetivo “encontrar uma adesão mais fácil dos estudantes”(MARTINS, 2022, p.226). Sabendo que o Brasil é um país com baixa adesão à leitura desde o ensino fundamental, quais as principais dificuldades encontradas ao trabalhar sobre um livro na sala de aula?

Thaís Martins: As dificuldades são inúmeras, pois o desinteresse pela leitura é uma questão que ultrapassa a sala de aula, e, se tratando das escolas públicas, as questões socioeconômicas influenciam muito, pois a maioria dos estudantes possui realidades cruéis, muitos vão para escola com o objetivo de fazer a única refeição do dia, como esse aluno vai se interessar pela leitura? Como vai ter vontade de ler algo? Outra dificuldade que encontramos é a concorrência com o mundo digital, no caso daqueles  estudantes que possuem condições financeiras um pouco melhores, pois não é fácil competir com jogos, videogames, redes sociais e as inúmeras atrações do mundo tecnológico.

Laiara: É sempre recorrente e, recentemente, reapareceu – principalmente na internet – o debate sobre a leitura de obras clássicas (como Machado de Assis, Clarice Lispector, Aluísio Azevedo) por estudantes no ensino fundamental e ensino médio. Qual o seu posicionamento sobre o tema? Quais mecanismos podem ser utilizados para romper as barreiras que existem entre o jovem leitor e os textos clássicos?

Thaís Martins: Parafraseando Antônio Candido, acredito que a literatura é um direito e um fator de extrema importância para a formação humana, dessa forma, a escola é o lugar que deve propiciar aos estudantes o contato com o mundo dos livros. Podemos utilizar muitos mecanismos para trabalhar com textos clássicos em sala de aula, por exemplo, o professor pode iniciar pelos contos de Machado de Assis, pois são textos mais acessíveis ao público jovem, com temas interessantes e polêmicos, uma leitura feita pelo professor com pausas para explicação sobre as palavras rebuscadas, situando o contexto histórico, com entonação e dramatização, ou seja, promover de forma mais lúdica e prazerosa a leitura de alguns textos clássicos pode ser um bom mecanismo.

Outro ponto que podemos observar nas escolas é a obrigação relacionada à leitura dos clássicos, o papel da escola é aproximar esses textos dos estudantes e não distanciar, portanto, obrigá-los a ler não é o caminho ideal. Acredito que uma boa estratégia é o trabalho com os seminários de literatura, nos quais a turma é dividida em grupos de trabalho, cada grupo precisa estudar uma determinada obra literária para apresentar aos colegas. Nessa proposta, alguns estudantes leem o livro na íntegra, outros leem os resumos, o importante é que de uma forma ou de outra acabam tendo contato com textos clássicos e não passarão pela Escola Básica sem conhecê-los.

Laiara: Em um trecho do texto é dito que “[…] os alunos recebiam o capítulo para leitura apenas no momento da aula. Para isso, a professora tirou cópias com recursos próprios, pois na escola havia apenas um exemplar do livro A bolsa amarela.” (MARTINS, 2022, p. 229). Dentre as diversas dificuldades que existem na formação de um leitor, você acredita que dentre elas está o baixo investimento na educação, especialmente em escolas públicas, com baixo repertório de livros nas bibliotecas ou, por vezes, escolas que não possuem nem mesmo uma biblioteca?

Thaís Martins: Com certeza, a situação da maioria das escolas públicas é precária, faltam bibliotecas, faltam profissionais especializados para trabalhar, faltam investimentos em acervos, em projetos, falta vontade dos responsáveis em investir na educação. Infelizmente, essa é uma triste realidade no Brasil, um país onde investimentos em educação são considerados despesas, um país onde os professores não são valorizados. Precisamos avançar em políticas públicas que tenham por objetivo uma educação de qualidade, enquanto isso, muitos professores seguem fazendo milagres em suas escolas, tirando dinheiro do próprio salário para tentar proporcionar uma formação digna aos seus estudantes.

Assim, reforço mais uma vez a importância de uma boa formação para os profissionais de Letras, mas, sobretudo, a importância do investimento governamental em escolas públicas, para que outros professores não precisem fornecer de recursos pessoais para proporcionar aos estudantes uma formação literária digna.

 

REFERÊNCIAS

BRITTO, Luiz Percival Leme. Ao revés do avesso: leitura e formação. São Paulo: Pulo do Gato, 2015. 144 p.

MARTINS, Thaís Gonçalves. Baú da leitura: uma proposta de formação crítica para os estudantes do ensino fundamental. In: LIMA, Sheila Oliveira; PASCOLATI, Sonia (org.). Práticas de leitura literária na escola. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. p. 223-239.

Literatura para uns, pornografia para outros: uma breve reflexão

30/01/2023 10:17

Por Pedro Pedrollo

Letras-Espanhol

Bolsista PET-Letras

 

Quando, de alguma maneira, nos deparamos com temas complexos, como pornografia e erotismo, podemos pensar, de modo mais simplificador, que a pornografia seria algo mais explícito, ou mesmo escancarado, em que tudo pode ser “mostrado ou dito”, enquanto o erotismo seria algo mais velado, dotado de certa sutileza. Esse tipo de compreensão, ainda que possa ser considerado comum e mesmo aceitável, revela algumas perspectivas socio-historicamente construídas sobre como o moralismo, e sobre outros princípios em que a sociedade tende a se basear, podem nos levar a uma valoração específica para os produtos sociais — arte, literatura, filmes, teatro etc. —, ou mesmo para os termos que os definem e qualificam, no caso dos que abordam o sexo, como pornográficos e/ou eróticos; termos os quais, entretanto, se confundem, aproximam-se e se distanciam.

Nesse sentido, parece que seria mais fácil para uma sociedade — forjada em bases religiosas, por exemplo, tendo o sexo como um tabu — aceitar e endossar a abordagem do sexo, e de questões relacionadas a ele, por meio de entrelinhas. Dito de outro modo, haveria certa concessão, ou mesmo aceitação, ao sexo abordado de modo mais implícito do que ao sexo tratado de modo explícito. Essa perspectiva seria responsável por atribuir juízos de valor aos produtos sociais que, de alguma maneira, abordam o sexo. Assim, isso faria com que as obras, por exemplo, que possuam “cenas de sexo” escancaradamente manifestas, recebessem menos valor e, por sua vez, prestígio do que aquelas em que tais cenas seriam apenas sugeridas: estivessem em suas entrelinhas.

Todavia, algo que é muito interessante de se considerar, ao pensar nos conceitos de erotismo e pornografia, são os renomados escritores que se inseriram no tema sexual, inclusive se ocupando de uma abordagem mais desvelada e de uma visão mais escancarada do sexo, e que receberam, ainda que alguns tardiamente, reconhecimento por suas obras: Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Pietro Aretino, por exemplo. A partir deles, é possível refletir sobre o tema e observar como o abordam de modo explícito, sendo tal abordagem, até mesmo, considerada extremamente obscena ou mesmo degradante. Um autor muito citado e conhecido, no âmbito de tal temática, é o Marquês de Sade, que, inclusive, citou reconhecidos filósofos em sua obra — tais como Rousseau, Montesquieu e Diderot —, ao tratar de contextos sexuais, que podem ser definidos como extremos.

Compreender como a abordagem do sexo tende a ser aceita ou rejeitada socialmente e os porquês de sua ocorrência, envolve uma diversidade de questões culturais, históricas, éticas, ideológicas, morais etc. Cientes disso, cabe-nos considerar que o erotismo “não mostraria tudo” e assim se aproximaria do belo, do que pode ser dito, do que é aceito e desejável; já a pornografia, por outro lado, ao basear-se na “abordagem explícita do sexo” (ou mesmo dos órgãos sexuais) se tornaria inaceitável, pois faria com que o sexo fosse algo feio, errado e sujo. Ainda que, tais conceitos, sejam variáveis, a depender de onde, de quando e de como, por exemplo, são empregados, os produtos sociais têm sido, historicamente, classificados e valorados por meio de opostos: bom e mau, belo e feio, limpo e sujo, moral e imoral, erótico e pornográfico, e assim por diante. Nessa perspectiva, tende-se a considerar algo erótico como “bom, belo e limpo”, e pornográfico como “mau, feio e sujo”, por exemplo. Entretanto, vale dizer que aquilo que ontem era considerado absurdamente pornográfico, imoral e ofensivo, pode tornar-se aceito amanhã, sendo visto como erótico e aceitável, e vice-versa.

Descrição da imagem: uma mulher branca e loira segurando um livro enquanto usa roupas intimas pretas

e transparentes e um hobby vermelho, enquanto faz uma cara de surpresa.

Sem aprofundar em um tratamento teórico ou mais acadêmico do tema, vale incentivar algumas reflexões sobre o modo como lidamos com o sexo e com sua abordagem nos produtos sociais, qualificando as obras como eróticas (aceitáveis e permitidas) ou pornográficas (inaceitáveis e proibidas). Além disso, há que se considerar o que há por detrás de nossos julgamentos e o que eles provocam. Um olhar sobre a estrutura social permite que se observe o sexo sendo posto como tabu, em várias sociedades e momentos históricos. Diversas convenções sociais passaram a servir de base para se julgar e qualificar as pessoas e os produtos sociais, a partir do modo como atendiam a tais convenções que estabelecem como, quando e onde se poderia abordar o sexo e seus temas afins. Afastar-se de tais convenções, ou seja, quebrar as regras, poderia colocar a pessoa e suas obras numa situação de marginalização, considerando-a promiscua, obscena, perversa e de menor valor social, visto que ela corromperia a “pureza” almejada para o humano em certas sociedades, culturas, religiões e/ou cosmovisões.

Podemos considerar que quando decidimos dizer o que é e o que não é erótico e/ou pornográfico, estamos reproduzindo nossas crenças, tradições e cosmovisões, ou seja, o imaginário social, que nos constitui e nos move em direção à reprodução de certos padrões e convenções, sejam eles vistos como mais moralistas ou não. Portanto, se, em nosso crivo, acreditamos que devemos aceitar o sexo sendo abordado apenas no que é erótico e rejeitar aquilo que seria visto como pornográfico, nos afastaremos de certas obras. E isso pode nos impedir de ampliar nosso contato com aqueles produtos sociais que não estão forjados dentro do que seria “aceitável e permitido” a nós mesmos. Cientes disso, podemos assumir uma postura mais crítica diante das convenções sociais, e de seu impacto sobre os produtos sociais, e entender que os limites sobre o erótico e o pornográfico são por demais tênues e que talvez seja mais produtivo circular por eles do que tentar aplicar um juízo de valor que nos posicione em prol do erótico e em detrimento do que seria pornográfico, por exemplo.

Há certos olhares para história que dizem que a pornografia seria um fenômeno de mercado, inaugurado no Renascimento e que se caracterizaria pelas imagens e palavras que ferem o pudor. Nesse sentido, o fenômeno da pornografia teria inaugurado uma nova forma de representar o sexo. Pietro Aretino seria um dos autores que teria tido a intenção de tornar o sexo mais realista, contribuindo para que a temática, que, até então, circulava em meios mais restritos, passasse a ser mais acessível a círculos mais amplos. Inclusive há quem defenda que isso teria tido um papel fundamental para a consolidação do mercado da pornografia comercial, que teria a intenção de vender sexo, e de sua aproximação com a arte erótica, que usaria símbolos sexuais para falar de coisas que transcendem o sexo.

De certa maneira, observa-se, atualmente, uma significativa circulação de pornografia, a qual é inclusive “tolerada” em seus círculos mais restritos. É interessante notar que quando essa pornografia vem à tona, em círculos sociais mais amplos e abertos, ela é alvo de intensas críticas e, muitas vezes, considera-se um escândalo, um atentado ao pudor.  Se olharmos para a literatura que aborda o sexo e o modo com ela foi e vem sendo recebida socialmente, veremos casos interessantes, como o de Madame Bovary, de Flaubert, pois, ao tratar da história de uma adúltera, em sua obra, com um conjunto de detalhes e cenas de sexo, ele foi alvo de muitas críticas e julgamentos. Entretanto, há quem diga que, mesmo com o incomodo social gerado, a obra não poderia ser considerada pornográfica, já que era de um grande autor, tinha grandes qualidades estilísticas etc., o que contraria certas ideias, sobre o teor e caráter da pornografia, e nos faz refletir sobre quais seriam os elementos que nos levam a aceitar ou a rejeitar determinadas obras e a classificá-las como eróticos ou pornográficas, como merecedoras ou não de nossa atenção. Outro exemplo interessante é Contos d’Escarnio: textos grotescos, de Hilda Hilst, formado por um conjunto de contos em que o sexo é tema recorrente, que passa por críticas, rejeições e julgamentos.

Será que vemos o sexo e sua abordagem como um risco ou um perigo para a sociedade, a ponto de termos que considerá-lo um tabu e de rejeitar obras que o abordem explicita e livremente? Em “Conhecimento Proibido”, de Roger Shattuck, há uma discussão sobre os possíveis problemas que a sabedoria pode trazer e sobre a necessidade de se proibir alguns conhecimentos, já que, em tese, certas verdades poderiam causar males a sociedade. O autor questiona: “[…] deveremos acolher entre nossos clássicos literários as obras de um autor violou e inverteu todos os princípios de justiça e decência humana desenvolvidos ao longa de 4 mil anos de vida civilizada?” (SHATTUCK, 1999, p. 196)

Esse questionamento pode nos levar a diversos outros: inclusive sobre os limites que deveriam ter ou não os produtos sociais em relação às temáticas abordadas e ao como realizar tal abordagem. Contudo, considero que o mais importante é podermos refletir sobre os porquês de se aceitar determinadas obras e de se rejeitar outras e o como o posicionamento assumido nos conduzirá a certas obras e nos afastará de tantas outras.

Embora saibamos diferenciar realidade e ficção, precisamos também saber ponderar a respeito de como uma interfere na outra, não é mesmo? Por mais que possam ser encontrados exemplos de pessoas que se valeram de ficção para justificar suas ações reais, como os suicídios cometidos após a leitura de O Sofrimento do Jovem Werther de Goethe, temos que nos perguntar se os problemas sociais estariam delimitados e definidos pelas obras literárias, artísticas, teatrais, musicais que circulam socialmente; e se seriam provocados por seus conteúdos e modos de abordar seus temas. Teria sentido censurar as obras e eliminar aquelas que fugiriam dos padrões de determinadas épocas, sociedades e/ou culturas? Uma possibilidade de se refletir sobre tal questionamento pode ser encontrado na obra Um Mais Além Erótico: Sade, de Octavio Paz (1999, p.83) que afirma: “[…] o perigo de certos livros não está neles próprios, mas sim na paixão de seus leitores”.

Classificar uma obra como erotismo ou como pornografia e, consequentemente, assumir julgamentos de valor que rejeitem determinadas obras e as marginalizem, não deve ser visto como algo simples e natural. Portanto, como afirmei, é extremamente relevante refletir sobre o que estaria por detrás de certas classificações e julgamentos de valor e sobre como isso pode afetar as obras, o modo como nos relacionamos com elas e, até mesmo, como isso pode nos atingir. Além disso, uma obra definida como pornografia não deixa de ser um produto social que compartilha características com diversas outras obras, sejam elas eróticas ou não.

 

Leituras recomendadas:

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

HILST, Hilda. Contos d’escarnio textos grotescos. São Paulo: Globo, 1990.

MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999.

SCHATTUCK, Roger. Conhecimento proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Tri, Afu e Baita: como funcionam?

19/01/2023 07:52

Por Angelo Perusso

Bolsista PET-Letras UFSC

Letras – Português

Ao nos depararmos com alguém nascido em Porto Alegre naturalmente associamos a fala dessa pessoa a expressões como “bah, tri legal né, guri”, por serem expressões muito presentes no vocabulário da maioria das pessoas nascidas na capital gaúcha. Neste texto, tendo em vista essas variedades, trataremos mais especificamente de adjetivos intensificadores que também podem atuar como adjetivos positivos, por exemplo, o consagrado “tri”. O “tri” (além de ser o nome do cartão do ônibus de Porto Alegre) é também uma expressão que pode atuar nessas duas funções, pois quando temos uma frase do tipo “esse teu tênis é tri feio”, ele está atuando como atuaria o “muito”, o “mega”, o “super”, entre outros termos usados para atribuir intensidade. Ou seja: o tênis não é somente feio, mas “tri” feio. Quando o “tri” aparece neste uso, ele está mais próximo do seu sentido original, que a Zero Hora, jornal típico de Porto Alegre, explicou em uma matéria de 2018, e que é o seguinte: a expressão se popularizou nos anos 1970, logo após o Brasil ser tricampeão da Copa do Mundo de Futebol. Logo, tudo que era muito bom (ou muito ruim, ou muito qualquer coisa), era três vezes bom, então era “tri.” Porém, o que decorreu disso foi que o porto-alegrense pegou gosto pelo tal do “tri” e eventualmente começou a dispensar o adjetivo que vinha depois, quando se tratava de coisa boa. Logo, se algum porto-alegrense vir o seu tênis novo e disser “bah, que tri”, ele quer dizer que o tênis está aprovado, que é bonito, ou legal, ou qualquer coisa boa.

Ainda na fala do porto-alegrense, há um outro exemplo bastante comum de casos como esse, que é do “afudê” e do “afu”, que são pai e filho. Em um passado distante, o termo mais comum era o “afuzel”, que é avô do “afu”. Essa expressão era usada para expressar que algo era bom, bonito, legal, entre outras coisas boas. Lentamente, o “afuzel” foi substituído pelo “afudê”, que significa a mesma coisa: algo bom. “Bah, que afudê teu tênis”: se seu amigo disse isso, pode sair pra festa tranquilo com o teu tênis novo, ele é bonito. Se tu contar que foi de férias para Floripa e teu amigo te disser “afudê, meu”, significa que ele achou “bem legal”.

Porém, surgiu uma abreviação, que é o “afu”, e que por sua vez funciona muito mais como intensificador, mas também pode ser visto como adjetivo positivo. Por exemplo, se alguém se aproxima de ti e diz “tu tá cheiroso afu, hein meu?”, significa que tu está muito cheiroso, assim como se alguém disser que tu é “feio afu”, significa que tu é muito feio. No caso do “afu”, nos dias atuais, essa é a forma amplamente mais popular de utilizá-lo, como um intensificador do que vem a seguir. Até pouco tempo atrás e, provavelmente, por causa da relação com o “afudê”, era possível se deparar com diálogos do tipo “como foi o jogo?”, “foi afu”. Logo, aqui nessa função, o adjetivo intensificador “afu” também vai assumir uma postura de adjetivo positivo, assim como faz o “tri”. Entretanto, é necessário pontuar que o “tri” é muito mais produtivo na fala.

Agora, subamos para a praia veranear e falemos então de uma expressão que, embora também aconteça na fala porto-alegrense e de outros lugares, aparece com os dois sentidos, que buscamos na fala dos moradores da Ilha de Santa Catarina, especificamente a dos nativos, que é o “baita”. Conversando com uma amiga um dia desses, ela me disse que os nascidos e crescidos em Florianópolis, popularmente chamados de “manezinhos”, se fossem flertar com uma menina, poderiam dizer a frase “tais uma baita hein, feia”. Aqui, vemos o termo “baita” aparecer como um substituto para “bonita” ou “atraente”. É possível ver ainda, ao mostrar o tênis novo ou contar uma história, reações como “que baita”, que seria justamente o “baita” aparecendo na função do “legal”. Outro caso ainda é quando ouvimos que “foi um baita jogo” ou que alguém viu um “baita filme”. Essa pessoa muito dificilmente estará se referindo ao tamanho do jogo ou o tamanho do filme, mas sim a sua qualidade; logo, essas frases poderiam ser substituídas por “foi um ótimo jogo” e “um ótimo filme.” Ou seja, nessa maneira de utilizar a expressão ela está agindo como um adjetivo positivo, mas em sua função original ela age do mesmo jeito que o “tri” agia quando surgiu, que é na função de intensificador.

A grande questão é que o baita na função de intensificador apresenta nuances, pois ele pode indicar intensidade, mas também tamanho. Voltando à fala porto-alegrense, alguém pode dizer que teve que subir uma “baita lomba”, ou seja, um grande morro, mas também pode dizer que alguém é um “baita de um mala sem alça”, ou seja, uma pessoa “muito chata”. Por vezes também é possível confundir se o baita está agindo como um adjetivo que indica que algo é bom ou grande, por exemplo, na frase “ele é um baita homem”. É possível interpretar que o homem em questão é grande, mas também que ele é um homem bom, honrado. Logo, vemos que o “baita” também pode aparecer tanto na função de adjetivo positivo como de intensificador.

Algo semelhante, e que nos ajudará a entender esses processos, é explicado por Basso (202, p.6). Ao fazer uma análise do intensificador “puta”, ele percebe que a maneira que um intensificador se comporta vai variar de acordo com o que ele está se combinando. No caso do “puta”, vemos que quando ele está combinado com um nome, ele pode ser substituído por “ótimo” ou “bom”, como em “João tem um puta emprego”. Por outro lado, se o “puta” estiver combinado com um adjetivo, ele então poderá ser substituído por “muito” ou “bastante”, como em “ele é um puta chato”.

O “baita” se comporta da  mesma maneira, pois poderíamos dizer que “João tem um baita emprego”, colocando o baita como um intensificador nominal e atribuindo assim o caráter de “bom” ou “ótimo”, bem como poderíamos utilizar “Ele é um baita chato”, colocando o “baita” como intensificador adjetival e atribuindo assim o caráter de “muito chato”. Algo parecido (mas não igual) pode ser feito também com o “afu” e com o “tri”, pois se disséssemos que “João tem um emprego tri” ou “um emprego afu”, estaríamos combinando nossos intensificadores com um nome, e eles estariam atribuindo a ideia de “ótimo” ou “bom” a esse nome; porém, nesses casos, precisam aparecer somente após o nome na sentença. Caso utilizássemos “ele é tri chato” ou “ele é chato afu”, teríamos os intensificadores combinados com adjetivos, atribuindo característica de “muito” ou “bastante” ao adjetivo. Novamente, como vimos, o “tri” muda de posição e, ao se combinar com o adjetivo, aparece antes dele na sentença, enquanto o “afu” permanece sempre após o termo que ele se combina.

Por fim, cabe dizer que se tu chegou até aqui e não entendeu nada, então esse texto foi “tri nada a ver”.

A língua como espécie parasitária: relações entre linguística, ecologia e evolução em Salikoko S. Mufwene

09/01/2023 12:39

Por Emmanuele Amaral Santos

Bolsista PET Letras UFSC
Letras – Português

 

Segundo o linguista congolês Salikoko S. Mufwene, é essencial que linguística como campo de estudo científico não apenas pense nas possíveis mudanças resultantes do processo de evolução, mas investigue que agentes participam ativamente dessas mudanças e como fatores estruturais da língua se comportam nesses processos. A partir dessas indagações e de um amplo estudo em conceitos da linguística evolucionária, da filogenética e ecologia, no capítulo seis de The Ecology of Language Evolution (2003), intitulado Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice,  Mufwene  discute tais questões paralelamente à formação, à evolução e ao desaparecimento de línguas crioulas de base lexical europeia, utilizados no capítulo como exemplos.

Imagem 1:  Mufwene

Descrição de imagem 1: Um homem negro de cabelos brancos rentes a cabeça olha para a lateral esquerda da fotografia sem encarar a camêra, posicionando seu branço direito em algum ojetivo que não fica explícito na imagem. Ele usa óculos de grau redondo, veste terno e gravata azuis acompanhados de uma camisa formal azul clara. Ao fundo, é possível identificar uma estante marrom repleta de livros com capas de diversas cores e duas caixas laranjas empilhadas na lateral esquerda da fotografia.

Para introduzir os conceitos de ecologia e evolução partindo das noções teóricas trabalhadas no ramo de genética de populações, Mufwene descreve a evolução como “[…] mudanças a longo prazo que ocorrem em uma variedade linguística após um período de tempo.” (MUFWENE, 2003, p.145), além de destacar a diferença entre a evolução estrutural, que engloba as características morfossintáticas, fonético-fonológicas e lexicais, e a evolução pragmática, a qual faz referência às regulações sociais e contextuais do uso da língua. Essas diferenciações, no entanto, não assumem um caráter excludente, ou seja, elas coexistem no processo de evolução das línguas.

Mufwene ainda pontua que para entender como esses caminhos evolutivos são cunhados, é importante caracterizar o conceito de ecologia. A partir de Johanna Nichols (1994), essas ecologias podem ser caracterizadas como ecologia progressiva, quando o processo de mudança (evolução) é compreendido como responsável pelo aumento na complexidade da língua, ou como ecologia darwiniana, se partirmos do princípio que mudança (evolução) ocorre por seleção natural gerando diferentes especiações da língua (variações linguísticas).

Para o autor e para diversos autores da linguística moderna, como Gould (1993), o processo evolutivo não possui um propósito definido, ou seja: “Sistemas linguísticos podem evoluir tanto para uma maior complexidade estrutural quanto para estruturas mais simples, assim como podem ser novamente reestruturados sem que o sistema seja enquadrado como mais simples ou complexo que o anterior” (MUFWENE, 2003, p.147).

Deste modo, o capítulo propõe que o uso da noção de ecologia darwiniana seria mais assertivo em relação à linguística, já que salienta a existência de variedades e permite investigar os mecanismos que as originam.

Imagem 2: Primeira edição do livro The Ecology of Language Evolution publicado pela Cambridge University Press em 2001

A capa de um livro bege apresenta uma espécie de obra de arte centralizada. Esse quadro retangular possui um fundo marrom-amarelado e diversas figuras geométricas, como um círculo branco dentro de um círculo verde na margem superior esquerda e duas fileiras de triângulos em diferentes tamanhos que ocupam toda a lateral direita do quadro. Além disso, a capa também possui uma lateral esverdeada que percorre as margens esquerda e superior de todo o livro. No canto superior direito é possível ler “Cambridge Approaches to Language Contact” em fonte branca e dentro de uma caixa de texto preta. Logo abaixo, aparece o título do livro “The Ecology of Language Evolution” e, em baixo deste, o nome do autor “Salikoko S. Mufwene”. No canto inferior esquerdo, é possível notar uma caixa de texto retangular com o escrito “Cambridge”.

No decorrer do capítulo, Mufwene envolve os conceitos de evolução e ecologia a partir da ideia de que “A evolução de uma língua ocorre a partir de cada falante, por meio de seus atos de fala individuais e seus idioletos […]” (MUFWENE, 2003, p.147); deste modo, o falante como indivíduo assume o protagonismo do processo de evolução sem excluir os aspectos de controle coletivo da comunidade de fala, que regula essas transformações tanto estrutural quanto pragmaticamente durante o processo de evolução. Esse sistema de negociações entre o indivíduo e o grupo demonstra a natureza competitiva e seletiva das interações dentro do sistema de uma língua viva.

Ao abarcar esse protagonismo do indivíduo (idioleto) no processo de evolução (mudança), o autor reflete que as analogias da língua como um só “organismo”, que é coexistente entre uma mesma comunidade de fala,  iniciadas no século XIX, estariam equivocadas, visto que ela não são capazes de explicar as variações dentro de uma mesma língua. Além disso, a analogia de língua como organismo não responde a outras questões ligadas à variação, como é o caso dos idioletos de um mesmo coletivo não serem idênticos, das diferentes velocidades de variação entre grupos sociais distintos pertencentes à uma mesma comunidade de fala e das especificidades do caso das línguas em regiões de contato linguístico.

Deste modo, Mufwene advoga que a analogia de língua como uma espécie seria mais adequada. O autor advoga que essa analogia permite compreender o processo de evolução como um sistema de mudanças dentro de uma estrutura que aceita um certo grau de variação dentro de cada espécie. Ademais, essa perspectiva também permite investigar o que chama-se de transmissão vertical e transmissão horizontal da língua, propiciando um mapeamento dessas variações de acordo com estudos quantitativos e qualitativos. Sobre o processo de transmissão de características provenientes de idioletos que acabam gerando novas variantes de espécies (línguas), Mufwene salienta sobre a maior importância dos fatores quantitativos, ou seja, do número de falantes.

Essa importância e outros fatores, como a relação direta entre a sobrevivência/favorecimentos sócio-histórico-econômicos entre uma língua e seus falantes, sustentam a perspectiva de Mufwene de que a língua está mais para uma espécie parasitária, com uma relação simbiótica entre a língua e o falante do que um tipo de espécie animal. Além disso, os parasitas como espécie são muito mais propícios à especiação (variações) e à evolução (mudança) em um período de tempo menor.

Tal relação simbiótica também permite refletir sobre o impacto de políticas linguísticas de caráter repressivo paralelmente à políticas de tortura e genocídio. A partir do apanhado histórico presente no artigo Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência lingüística, é possível notar que desde o período colonial foram estabelecidas políticas monolíngues que estimulavam o uso da língua portuguesa como única  forma de comunicação oficial e posteriormente, detentora do status de língua nacional:

O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima, considerando-a “companheira do Império” (Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, em 1536). A política lingüística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento lingüístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história lingüística do Brasil poderia ser contada pela seqüência de políticas lingüísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram […] .  (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Através da analogia apresentada por Mufwene da língua como parasita e do falante como hospedeiro, podemos analisar que, além da substituição de línguas autóctones pela língua portuguesa, práticas como o isolamento dessa comunidade linguística em regiões que dificultem a sua sobrevivência e o extermínio de fauna e flora essenciais para a continuidade de rituais de cura/tradições também sustentam processo de glotocídio. Em outros períodos históricos do Brasil, como durante a chamada Era Vargas, práticas glotocidas semelhantes também fizeram parte das políticas linguísticas monolíngues de cunho nacionalista; como explicita Oliveira:

A Polícia Militar, em Santa Catarina como em outros estados, prendeu e torturou e obrigou as pessoas a deixar suas casas em determinadas “zonas de segurança nacional”. Mais grave que tudo isso: a escola da “nacionalização” estimulou as crianças a denunciar os pais que falassem alemão ou italiano em casa, criando seqüelas psicológicas insuperáveis para esses cidadãos que, em sua grande maioria, eram e se consideravam brasileiros, ainda que falando alemão. (OLIVEIRA, 2009, p.20)

Nesse contexto, o ato de falar português estava diretamente ligado a ser reconhecido e validado como cidadão brasileiro. Adaptando essa noção à analogia apresentada por Mufwene, é como se os catarinenses falantes de alemão ou italiano estivessem contaminados por um parasita diferente, o que colocava em risco e/ou competição a sobrevivência da língua portuguesa nesta região, além de possibilitar questionamentos sobre parâmetros de cidadania impostos.   

Deste modo, é perceptível as diversas aplicações que as ideias apresentadas por  Salikoko S. Mufwene, as quais incluem debates sobre política linguística, estudos de variação e mudança, além de reflexões sobre a amplitude de discussões linguísticas sob o viés de outras ciências, como a ecologia e a genética de populações.

 

REFERÊNCIAS

MUFWENE, Salikoko S.  Language contact, evolution, and death: how ecology rolls the dice. In: MUFWENE, Salikoko S.The Ecology of Language Evolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.  p. 145-156. (Cambridge Approaches to Language Contact).

OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência linguística. Synergies Brésil, n. 7, p.19-26, 2009.

 

Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras

27/12/2022 16:25

Por Vítor Pluceno Behnck
Ex-bolsista PET Letras UFSC
Graduado em Letras – Inglês (UFSC)
Mestrando em Inglês – Estudos Linguísticos (PPGI/UFSC)

 

Este último 23 de dezembro de 2022 (sexta-feira), último dia da minha graduação de Licenciatura em Letras – Inglês, conclui também minha trajetória enquanto bolsista do Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina. Quando o professor Atilio Butturi Junior me pediu para escrever um texto “de despedida”, fiquei pensando em todas as pessoas que passaram por mim durante esses três anos de PET-Letras. Foram vários colegas bolsistas, dois tutores, e muitos colaboradores voluntários e inscritos nas ações de ensino, pesquisa e extensão de que participei. Nesse texto, quero relatar e compartilhar minhas vivências no programa, a fim de criar uma memória que não se finda em si só, mas que se mantém como um convite àqueles que querem participar e colaborar com o programa.

Iniciei minhas atividades no Programa em agosto de 2019, como professor voluntário de Língua Inglesa. O que pouca gente sabe é que não pude estar presente na minha primeira aula como professor por conta de um momento muito delicado da minha trajetória pessoal, que foi o falecimento do meu pai. Atuar como professor voluntário foi muito importante para mim naquele momento, pois criou um desafio a minha rotina que colaborou no meu processo de compreender aquele momento da minha vida. Posteriormente, já como bolsista, lecionei mais uma vez o curso de Língua Inglesa 1, mas na modalidade remota com minha colega Luciana dos Santos. Ainda neste ano, lecionei mais um curso, mas dessa vez voltado à formação dos professores voluntários de Línguas Adicionais do programa. Parafraseando Freire, aprendi ensinando e ensinei aprendendo.

Durante o período de Ensino Remoto Emergencial (ERE) ocasionado pela pandemia de Coronavírus, uma das iniciativas do PET-Letras foi a publicação dos textos ComunicaPET, visando estimular a produção textual dos bolsistas e o compartilhamento de suas vivências durante o isolamento social. O projeto seguiu seu próprio rumo até os dias atuais, e nesse meio tempo tive a oportunidade de compartilhar algumas escrevivências: na primeira matéria publicada, intitulada “How to study English during the quarantine? Dicas para estudar Inglês em casa”, busquei colaborar com aqueles que queriam continuar os estudos em Inglês, apesar da crise sanitária, econômica, educacional e social. Nesse mesmo contexto, escrevi “Sobre salvar vidas e alimentar almas”, compartilhando artistas — Susano Correia e Gabriela Buffon — cuja arte me ajudou a passar por aquele momento. Ainda isolado em casa, compartilhei minha experiências com podcasts no texto “Podcast: o que é, para que serve e como ouvir?”.

A partir desse texto, resolvi tornar meus ComunicaPETs narrativas mais pessoais e que, de alguma forma, contassem minha história. Escrevi sobre minha relação com a Língua Alemã, no texto “Língua e memória: ‘eine Hommage an meinen Vater’”, divulguei um trabalho de graduação no texto “Você conhece o Guia Prático para Professores de Primeira Viagem?”, e teci comentários sobre como percebo, numa perspectiva ideológica, o ensino de Língua Inglesa no texto “Inglês como língua de transformação: um manifesto”. No décimo mês do segundo ano de pandemia, me questionei: “Quem seremos nós quando a pandemia acabar?”, e já em 2022 relatei minha experiência cinematográfica com o filme “‘The Lost Daughter’ (2021): a review on a son’s vision”.

Mais tarde nesse mesmo ano pude compartilhar “O que eu aprendi com bell hooks”, prestando uma homenagem à autora que faleceu no ano anterior e que tanto colaborou para minha formação profissional e acadêmica. Nesse mesmo ano, participei de um intercâmbio cultural e acadêmico na Universidade de Colônia, na Alemanha, que culminou no relato de experiência “Cologne Summer Schools: my experience as an international student”. Por fim, chegamos ao presente texto, que celebra todos os que vieram antes: “Aprender a ensinar e ensinar a aprender: minha trajetória de três anos no PET-Letras”.

Ademais, uma atribuição permanente que tive do primeiro ao último dia como bolsista do PET-Letras foi o gerenciamento do projeto PET-Mídias, que gerencia a produção e o compartilhamento dos materiais de comunicação do grupo. Dessa maneira, estive um pouco presente em grande parte das atividades do grupo, até mesmo aquelas com que eu não tinha relação direta. Nesse sentido, é interessante ressaltar para aqueles que visam entender o funcionamento do Programa, que não se trata só de ações como os cursos de idiomas, mas demais ações de ensino, pesquisa e extensão que colaboram para difusão do conhecimento na área de Linguística, Letras e Artes dentro e fora da universidade.

Na minha despedida, quero enfatizar como ser um bolsista PET pode ser um diferencial na vida de um estudante curioso, que se interessa em explorar o conhecimento e as suas possibilidades. A horizontalidade do grupo permite que o Programa tenha um perfil dinâmico, que se altera a cada novo integrante que adere ao Programa e que deseja implementar seus projetos e colaborar com aqueles que já existem. Não obstante, não posso ignorar o claro desrespeito das autoridades durante esses três anos no que diz respeito ao atraso das bolsas dos estudantes e da verba de custeio do Programa, além da falta de reajuste das bolsas há mais de uma década, o que faz com que tenham perdido 76% do seu poder de compra nesse meio tempo (SBPC, 2022).

Por fim, ressalto a importância da união dos grupos PET — especialmente em eventos como Encontro Nacional do Programa de Educação Tutorial (ENAPET) — num constante movimento de reafirmação da relevância do Programa em termos de desenvolvimento científico, cultural e tecnológico das Universidades. Para além desses benefícios, o Programa resiste também como uma ferramenta de permanência estudantil, onde estudantes podem produzir ciência e cultura que colabora com o desenvolvimento social ao passo que recebem uma remuneração que colabora no custeio dos seus estudos.

Por fim, agradeço ao Programa, aos tutores Carlos Henrique Rodrigues e Atílio Butturi Junior e aos demais colegas petianos por três anos de muito trabalho, dedicação e comprometimento com as ações de ensino, pesquisa e extensão realizadas. As habilidades que pude desenvolver no Programa contribuíram para formação de um profissional muito mais empático, sensível ao seu redor e preocupado em levar para fora dos muros o que há de melhor na Universidade. Vida longa ao Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da UFSC!

Fotodescrição: conjunto de sete imagens impressas postas sobre uma mesa de madeira. De baixo pra cima na primeira fileira, há uma foto em que só é possível ver um campo verde e algumas pernas. Abaixo, há vários integrantes do PET-Letras junto ao ex-tutor Carlos. Abaixo, há uma foto do primeiro encontro de formação de professores voluntários do PET-Letras em agosto de 2019. Abaixo, há uma foto com um fundo branco de cartolina com palavras escritas com o ex-bolsista Vítor na frente. Na coluna da direita, de baixo para cima, há a foto do ex-bolsista Vítor com o livro “O Educador” em frente ao seu rosto, cuja capa é a silhueta de Paulo Freire, abaixo há uma foto dos ex-bolsistas Luciana e Vítor conversando com uma aluna no Varandão do CCE, e abaixo há a última foto da coluna, onde estão o ex-tutor Carlos e o ex-bolsista Vítor no varandão do CCE.

  • Página 1 de 3
  • 1
  • 2
  • 3