A romantização e a culpabilização pela doença em Susan Sontag
Por Laiara Serafim
Bolsista Pet-Letras
Letras-Português
Este texto é parte de um trabalho e de diversos questionamentos que surgiram ao me defrontar com a obra de Susan Sontag. Tomei como base o texto “Doença como metáfora”; também é nele que se amparam as duas principais ideias analisadas: culpabilização e romantização, a fim de explorar algumas ideias e representações que perpassam pelo sujeito doente.
“A imagem do corpo influenciada pela tuberculose foi um novo modelo para a aparência aristocrática — num momento em que a aristocracia deixava de ser uma questão de poder e passava a ser sobretudo uma questão de imagem. […] De fato, a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem.” (Sontag, 2007, p.22)
“As teorias psicológicas da doença são meios poderosos de pôr a culpa no doente. Pacientes informados de que, inadvertidamente, causaram sua própria doença são também levados a crer que a mereceram.” (Sontag, 2007, p.21)
A partir das perspectivas da romantização e da culpabilização, propus-me a refletir sobre representações da doença, especialmente na literatura. Embora grande parte do material encontrado se concentre em doenças como câncer, tuberculose e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), o foco não é apenas nessas enfermidades específicas, mas sim em como o sujeito doente é representado e como isso influencia a percepção social sobre a doença.
Em seu texto, Susan Sontag nos apresenta a visão fetichizada em torno das descrições da tuberculose: “A tuberculose era — ainda é — vista como capaz de gerar períodos de euforia, de apetite intenso e de exacerbado desejo sexual. Ter tuberculose foi considerado afrodisíaco e fonte de extraordinários poderes de sedução.” (Sontag, 2007, p.11). A palidez e o rubor facial, sintomas da tuberculose, foram associados a uma beleza mórbida, também representadas em pinturas clássicas e figuras vampirescas. Sontag observa que esses traços se tornaram um ideal estético, especialmente porque, ao atingir amplamente a população, a tuberculose transformou a imagem do corpo aristocrático, fazendo da aparência um novo símbolo de status.
“De fato,a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem. O aspecto tuberculoso tinha de ser considerado atraente uma vez que passou a ser considerado sinal de distinção de uma origem nobre.” (Sontag, 2007, p.22)
A questão central da romantização não está diretamente ligada à doença em si, mas às características físicas que ela traz. Enquanto doenças como diabetes ou obesidade não são glamourizadas, enfermidades que causam palidez e emagrecimento tendem a ser idealizadas, possivelmente por refletirem padrões estéticos já valorizados socialmente. Sontag observa que a romantização ocorrida durante a epidemia de tuberculose provavelmente foi um fenômeno criado pela literatura: “É razoável supor que essa romantização da tuberculose tenha sido apenas uma transfiguração literária da doença, no que, na época em que causou seus maiores estragos, a tuberculose era provavelmente vista como algo repugnante” (Sontag, 2007, p.22).
Ao contrário da romantização, ligada ao aspecto externo, a culpabilização parece estar intrinsecamente ligada à moral. Como aponta Sontag, a ideia de doença como punição tem raízes antigas — da lepra bíblica à Covid-19 — e surge, muitas vezes, da falta de explicações médicas, levando a interpretações religiosas ou morais que responsabilizam o indivíduo por sua enfermidade. A culpa vem do interior do sujeito e surge em acordo com a ideia de moralidade. Estar doente se torna imoral, abominável, especialmente quando o mal a ser combatido não pode ser visto, está dentro do sujeito, o destruindo de dentro para fora. Sontag nos mostra que a culpa recai de forma mais branda sobre certas enfermidades. No caso das ISTs, a associação com o sexo – historicamente envolto em vergonha e punição – torna essa lógica ainda mais evidente. Já em doenças como o câncer, a culpa surge como uma tentativa de dar sentido a um sofrimento sem explicação visível, transformando a dor em falha moral.
“Mas ninguém pensa em esconder a verdade de um paciente cardíaco: nada existe de vergonhoso num ataque de coração. Mentem para os pacientes de câncer não só porque a enfermidade é (ou se supõe ser) uma sentença de morte, mas porque é considerada algo obsceno – no sentido original da palavra: de mau agouro, abominável, repugnante aos sentidos.” (Sontag, 2007, p.7)
No mundo contemporâneo, as heranças simbólicas da romantização e da culpabilização ainda se manifestam com força, especialmente nas representações públicas e literárias da doença. O câncer, por exemplo, continua cercado por narrativas de culpa e superação, enquanto enfermidades mentais enfrentam estigmas persistentes. A figura do “paciente-herói”, amplamente promovida pela mídia, reforça a noção de que a cura depende exclusivamente da força de vontade individual, apagando fatores estruturais como o acesso ao tratamento e as desigualdades sociais que moldam profundamente essas trajetórias.
As noções de romantização e culpabilização da doença têm origens longas e complexas e não se limitam apenas ao corpo ou à moral, ambas são atravessadas por múltiplas dimensões. São questões multifacetadas, que são perpassadas por outros aspectos essenciais para essa análise. Resta o desejo de investigar, futuramente, se a valorização de certos traços físicos em pessoas enfermas dialoga com padrões estéticos já impostos socialmente. Por fim, destaco que a literatura e outras expressões artísticas têm — e tiveram — um papel crucial nessas representações, por isso, é necessário que se ofereçam novos olhares que enfatizem a complexidade das condições humanas sem recorrer a estigmas ou idealizações.
REFERÊNCIA
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.