A romantização e a culpabilização pela doença em Susan Sontag

21/05/2025 10:37

Por Laiara Serafim

Bolsista Pet-Letras

Letras-Português

 

Este texto é parte de um trabalho e de diversos questionamentos que surgiram ao me defrontar com a obra de Susan Sontag. Tomei como base o texto “Doença como metáfora”; também é nele que se amparam as duas principais ideias analisadas: culpabilização e romantização, a fim de explorar algumas ideias e representações que perpassam pelo sujeito doente.

“A imagem do corpo influenciada pela tuberculose foi um novo modelo para a aparência aristocrática — num momento em que a aristocracia deixava de ser uma questão de poder e passava a ser sobretudo uma questão de imagem. […] De fato, a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem.” (Sontag, 2007, p.22)

“As teorias psicológicas da doença são meios poderosos de pôr a culpa no doente. Pacientes informados de que, inadvertidamente, causaram sua própria doença são também levados a crer que a mereceram.” (Sontag, 2007, p.21)

A partir das perspectivas da romantização e da culpabilização, propus-me a refletir sobre representações da doença, especialmente na literatura. Embora grande parte do material encontrado se concentre em doenças como câncer, tuberculose e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), o foco não é apenas nessas enfermidades específicas, mas sim em como o sujeito doente é representado e como isso influencia a percepção social sobre a doença.

Em seu texto, Susan Sontag nos apresenta a visão fetichizada em torno das descrições da tuberculose: “A tuberculose era — ainda é — vista como capaz de gerar períodos de euforia, de apetite intenso e de exacerbado desejo sexual. Ter tuberculose foi considerado afrodisíaco e fonte de extraordinários poderes de sedução.” (Sontag, 2007, p.11). A palidez e o rubor facial, sintomas da tuberculose, foram associados a uma beleza mórbida, também representadas em pinturas clássicas e figuras vampirescas. Sontag observa que esses traços se tornaram um ideal estético, especialmente porque, ao atingir amplamente a população, a tuberculose transformou a imagem do corpo aristocrático, fazendo da aparência um novo símbolo de status.

 “De fato,a romantização da tuberculose é o primeiro exemplo de larga difusão dessa atividade caracteristicamente moderna: promover o eu como imagem. O aspecto tuberculoso tinha de ser considerado atraente uma vez que passou a ser considerado sinal de distinção de uma origem nobre.” (Sontag, 2007, p.22)

A questão central da romantização não está diretamente ligada à doença em si, mas às características físicas que ela traz. Enquanto doenças como diabetes ou obesidade não são glamourizadas, enfermidades que causam palidez e emagrecimento tendem a ser idealizadas, possivelmente por refletirem padrões estéticos já valorizados socialmente. Sontag observa que a romantização ocorrida durante a epidemia de tuberculose provavelmente foi um fenômeno criado pela literatura: “É razoável supor que essa romantização da tuberculose tenha sido apenas uma transfiguração literária da doença, no que, na época em que causou seus maiores estragos, a tuberculose era provavelmente vista como algo repugnante” (Sontag, 2007, p.22).

Ao contrário da romantização, ligada ao aspecto externo, a culpabilização parece estar intrinsecamente ligada à moral. Como aponta Sontag, a ideia de doença como punição tem raízes antigas — da lepra bíblica à Covid-19 — e surge, muitas vezes, da falta de explicações médicas, levando a interpretações religiosas ou morais que responsabilizam o indivíduo por sua enfermidade.  A culpa vem do interior do sujeito e surge em acordo com a ideia de moralidade. Estar doente se torna imoral, abominável, especialmente quando o mal a ser combatido não pode ser visto, está dentro do sujeito, o destruindo de dentro para fora. Sontag nos mostra que a culpa recai de forma mais branda sobre certas enfermidades. No caso das ISTs, a associação com o sexo – historicamente envolto em vergonha e punição – torna essa lógica ainda mais evidente. Já em doenças como o câncer, a culpa surge como uma tentativa de dar sentido a um sofrimento sem explicação visível, transformando a dor em falha moral.

“Mas ninguém pensa em esconder a verdade de um paciente cardíaco: nada existe de vergonhoso num ataque de coração. Mentem para os pacientes de câncer não só porque a enfermidade é (ou se supõe ser) uma sentença de morte, mas porque é considerada algo obsceno – no sentido original da palavra: de mau agouro, abominável, repugnante aos sentidos.” (Sontag, 2007, p.7)

No mundo contemporâneo, as heranças simbólicas da romantização e da culpabilização ainda se manifestam com força, especialmente nas representações públicas e literárias da doença. O câncer, por exemplo, continua cercado por narrativas de culpa e superação, enquanto enfermidades mentais enfrentam estigmas persistentes. A figura do “paciente-herói”, amplamente promovida pela mídia, reforça a noção de que a cura depende exclusivamente da força de vontade individual, apagando fatores estruturais como o acesso ao tratamento e as desigualdades sociais que moldam profundamente essas trajetórias.

As noções de romantização e culpabilização da doença têm origens longas e complexas e não se limitam apenas ao corpo ou à moral, ambas são atravessadas por múltiplas dimensões. São questões multifacetadas, que são perpassadas por outros aspectos essenciais para essa análise. Resta o desejo de investigar, futuramente, se a valorização de certos traços físicos em pessoas enfermas dialoga com padrões estéticos já impostos socialmente. Por fim, destaco que a literatura e outras expressões artísticas têm — e tiveram — um papel crucial nessas representações, por isso, é necessário que se ofereçam novos olhares que enfatizem a complexidade das condições humanas sem recorrer a estigmas ou idealizações.

 

REFERÊNCIA

SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

“Garota do Momento?”: apagamento racial e disputa por protagonismo na teledramaturgia brasileira

12/05/2025 18:57

Por Hanna Boassi

Bolsista PET – Letras | CNPq

Letras-Português

 

A telenovela brasileira, enquanto produto cultural de massa, desempenha papel fundamental na construção e reprodução de identidades sociais, raciais e de gênero. Ao alcançar milhões de telespectadores diariamente, esses produtos ficcionais contribuem para naturalizar representações e silenciamentos. A novela Garota do Momento (2024-2025), contextualizada no ano de 1958, inicialmente apresentada como uma trama centrada na trajetória de ascensão de uma jovem negra – Beatriz, interpretada pela atriz Duda Santos – no universo artístico, vem sendo alvo de críticas nas redes sociais por desviar-se dessa proposta e recentrar sua narrativa em personagens brancas, promovendo, segundo usuários da rede X, o apagamento da protagonista negra.

Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @supremacypayne, com um texto que diz: “Onde está a protagonista de garota do momento? Por onde anda ela? Estranhíssimo que Duda Santos em renascer interpretando uma morta aparecia mais do que nessa novela racismo do momento”. Abaixo do texto, há uma imagem da atriz Duda Santos sorrindo, é uma mulher negra com cabelos longos e cacheados, ela está em um ambiente iluminado, com luzes desfocadas ao fundo, usando um vestido azul com detalhes florais claros.

A discussão gira em torno desse tipo de apagamento, que é sintomático de uma lógica de branqueamento presente na teledramaturgia brasileira, em que personagens negras, mesmo quando colocadas no centro da narrativa, têm seu espaço e a agência constantemente esvaziados. Ao transformar a protagonista negra em coadjuvante da própria história, a novela reproduz um padrão historicamente presente nos meios de comunicação, em que corpos negros são tolerados apenas sob determinadas condições – geralmente periféricas ou estereotipadas.

Essa dinâmica tece como a televisão continua a operar como instrumento de manutenção de hierarquias raciais. A representação simbólica da negritude, quando condicionada a papéis secundários ou reduzida a figuras decorativas, reafirma uma lógica excludente que inviabiliza a multiplicidade de vivências negras e suas narrativas. Isso evidencia o que apontam Munanga e Gomes (2006 apud Lourenço, 2021, p. 2), ao afirmarem que a mulher negra vivencia “a discriminação em ser mulher em uma sociedade machista e ser negra em uma sociedade racista”.

Além disso, a recepção crítica nas redes sociais revela a crescente vigilância do público quanto às práticas midiáticas de silenciamento e apagamento. O engajamento em torno do debate sobre a representatividade racial na novela coloca em xeque os limites da ficção, exigindo maior responsabilidade dos produtores culturais diante da pluralidade da sociedade brasileira.

Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @RosaAnalu, com o texto: “Garota do Momento tinha o foco na ascensão artística da Beatriz pra inspirar outras garotas negras e tava indo super bem, mas agora a novela virou Bia, Jacira e Clarice #GarotaDoMomento”. Abaixo, há uma imagem humorística de uma figura com aparência de zumbi sentada diante de um notebook, simbolizando alguém exausto, esperando por algo há muito tempo.

O nome da novela, que remete à ideia de uma figura em evidência, torna-se irônico quando a personagem que deveria ocupar esse lugar é gradativamente apagada da trama principal; por conta disso, internautas criaram o termo “racismo do momento” para se referir a novela nas redes sociais. Isso porque, além do apagamento de Beatriz, notou-se que os outros personagens negros também não são beneficiados na trama.

Mesmo após a aprovação da Lei nº 12.288/2010, em 2010, os atores negros ainda não conseguem acessar as mesmas oportunidades e os papéis de destaque continuam sendo predominantemente atribuídos a atores brancos. Na prática, ao elaborar uma novela, parece haver um pré-requisito não declarado que privilegia os artistas brancos, marginalizando a presença e a representatividade dos negros em papéis centrais (Santos; Veiga, 2024, p. 171).

Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @pwquiw, onde o texto diz: “Nossa, só personagem negro se lascando nessa novela né, deveria mudar o nome pra racismo do momento #garotadomomento”. Abaixo, há uma imagem do ator Pedro Novaes, um homem branco de camisa polo azul com uma expressão séria.

Essa configuração mostra uma estrutura narrativa que resiste a oferecer protagonismo real a personagens negros, mesmo quando o enredo parece inicialmente caminhar nessa direção. A trajetória de Beatriz é marcada por uma sucessão de episódios de violência simbólica e física que, além de pouco problematizados pela narrativa, contribuem para a sua constante deslegitimação como protagonista. Um dos exemplos mais evidentes é o fato de a personagem sofrer agressões verbais e físicas por parte da antagonista Bia, interpretada por Maísa Silva, sem nunca reagir.

Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @nunooleon, com o texto: “A protagonista preta já foi atacada diversas vezes fisicamente, mas o roteiro nunca permitiu que ela revidasse. RACISMO DO MOMENTO”. Abaixo, há duas imagens de duas cenas diferentes da novela, onde a personagem Beatriz é atacada pela personagem Bia, uma personagem branca.

 

Além disso, algo que chamou atenção dos telespectadores: nos últimos capítulos, Beatriz sofreu uma acusação injusta de roubo de um colar milionário, ainda não resolvida na história, que simboliza não apenas a criminalização do corpo negro, mas também a forma como a trama opta por manter Beatriz em suspenso, presa a um enredo que não caminha, já que essa narrativa foi pausada para dar ênfase ao casamento de Beto (Pedro Novaes) e Bia, que foi forçado após a menina fingir ter perdido a virgindade com o rapaz. Esse desvio de foco não é apenas uma decisão de roteiro, mas uma escolha que reafirma a centralidade da branquitude, colocando a moralidade e a “honra” de Bia no centro do drama, enquanto o sofrimento de Beatriz é deixado de lado, sem o devido desenvolvimento ou resolução. “[…] as novelas tendem a retratar o negro, que já sofre discriminação na sociedade, de um modo inadequado, o que reproduz estigmas sociais e enaltece a hegemonia de pessoas brancas” (Munanga; Gomes, 2006 apud Lourenço, 2021, p. 9).

A substituição da jornada de ascensão de Beatriz por uma narrativa que gira em torno da pureza e do casamento de uma jovem branca não ocorre de forma neutra. Ela reafirma valores tradicionais racializados, nos quais a figura da mulher branca é idealizada e protegida, enquanto a mulher negra é exposta à violência e à suspeição, tendo sua voz sistematicamente silenciada.

A discussão sobre como Garota do Momento negligencia a trajetória de sua protagonista negra e busca rescentrar sua narrativa em personagens brancas, evidencia a percepção de não apenas escolhas estéticas e narrativas por parte da direção da novela, mas estruturas de poder profundamente enraizadas no imaginário televisivo brasileiro. A reação do público nas redes sociais, mostra que os espectadores não apenas consomem a ficção, mas também a interrogam criticamente, exigindo transformações que estejam à altura da diversidade e da complexidade da sociedade brasileira. A crítica à novela, condensada na expressão “racismo do momento”, revela uma recusa coletiva aos apagamentos históricos e uma demanda por representações mais justas e plurais.

REFERÊNCIAS

LOURENÇO, Suéllen Stéfani Felício. A Representação de Mulheres Negras em Novelas da Rede Globo. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 18, 2021, Juiz de Fora. Viçosa: UFV, 2021. p. 1-15.

SANTOS, Welliton Fernando dos; VEIGA, Léia Aparecida. Telenovelas e a questão racial: o papel do estatuto da igualdade racial na representatividade. Discursos Fotográficos, Londrina, v. 21, n. 26, p. 160-174, jun. de 2024.

 

 

 

“Véspera”, de Carla Madeira

05/05/2025 16:26

Por Angelo Perusso

Bolsista do PET Letras UFSC

Letras-Português

MADEIRA, Carla. Véspera 10.ed. Rio de janeiro: Record, 2023.

 

O que pode florescer da tragédia? De certa forma, sinto que essa é a pergunta que é colocada já no começo do livro Véspera, terceiro romance da escritora Carla Madeira, que alcançou renome nacional nos últimos anos. A autora, formada em jornalismo, tem uma prosa que, embora seja bastante poética e reflexiva, flui em um ritmo fácil e que instiga a ler mais e mais. A escrita de Carla Madeira é daquelas feitas para ser devorada em um domingo chuvoso, e com Véspera não é diferente. Lembro que decidi começar a ler pela manhã em um dia de praia e de certa forma me arrependi, pois o mar azul, o sol e a areia ao meu redor acabaram deixando de ser o foco do meu interesse, que se direcionou para a história de Abel e Caim.

O título já sugere o que a obra está colocando, tudo que acontece Hoje é produto do Ontem, cada decisão que tomamos acarreta acontecimentos que acarretam novas decisões e assim por diante, nos tornando reféns do que fomos na véspera, não importa o quanto tentemos caminhar livres dessas amarras. Pois bem, o livro inicia com uma cena profundamente marcante: uma mulher para o carro em meio a uma avenida de mão dupla, desce, abre a porta traseira, pega uma criança pequena e deixa na rua, volta para o volante e acelera. É automático se questionar: quem é essa mulher? O que a levou a isso? Quem é essa criança? Por que? A partir daqui, tudo é spoiler.

O que o livro vai nos mostrar a seguir é que o porquê de tudo começa no antes. O foco narrativo logo deixa a mulher e se volta para um casal em crise, com uma relação muito complicada e atravessada por crenças religiosas, alcoolismo e desamor. Deste combinado complicado surgem duas crianças gêmeas. Após o nascimento dos meninos, o pai, ressentido da esposa, vai ao cartório escondido e batiza os dois gêmeos: Caim e Abel. A mulher, muito temente ao Deus cristão e apegada aos ensinamentos da Bíblia, não pode perdoar o marido por nomear os filhos com o nome do primeiro assassinato da humanidade. A mãe então decide que não irá permitir que o mesmo destino ocorresse com os seus filhos, Caim não mataria Abel nessa história. O primeiro passo para que isso não acontecesse, para ela, foi igualar os dois em tudo. Já eram iguais fisicamente, então seriam iguais também nas roupas, nos horários, no tratamento, nas regras e também no nome: Abel e Caim se tornaram Abel e Abelzinho, e então nem os pais souberam quem era quem.

Tudo isso acontece logo no começo do livro, que constrói uma trama complexa entre passado e presente e se aprofunda dedicadamente nas dores dos personagens e em como elas se manifestam em suas relações. Todo mundo que já sangrou nessa vida há de sangrar junto dos personagens deste livro.

Os perigos de fumar na cama: a naturalidade do horror

28/04/2025 13:41

Por Rafaela Monticelli

Bolsista PET-Letras

Letras-Português

Os perigos de fumar na cama, livro de estreia da escritora argentina Mariana Enríquez, foi publicado no Brasil em 2023, quatorze anos após a publicação original, na Argentina, em 2009. Trata-se de uma coletânea com 12 contos recheados do elemento essencial que a autora reconfigurou na literatura da América Latina: o horror.

Mariana aborda o terror com naturalidade, como algo comum e cotidiano na vida das personagens. Ela transforma o medo, o assustar, em algo humano-sentimento, que relembra profundamente seus desejos, obsessões, seu orgulho e seus ciúmes. Além disso, a autora tece com maestria críticas subentendidas nos seus contos, sem deixar de lado a ironia. Dado o contexto da publicação original, Enríquez retrata situações “brincando” com o sobrenatural. Escolhi comentar o meu preferido.

Em “O mirante”,  acompanhamos trajetórias diferentes ao longo do conto: a inicial,  expositiva e contextualizante; a primeira protagonista e o terror da mulher louca. O conto viaja entre os dois pontos de vista: de Elina e da “forma misteriosa”. Já como cenário temos um hotel em Pinamar, da Província de Buenos Aires, conhecido por ser um lugar meio assombrado; a própria filha do dono não visita mais o local, principalmente por conta da história macabra da mulher louca. Mas o que é essa mulher louca?

Sem nome nem forma definida, a mulher louca não é nem mesmo um fantasma – ao menos ainda. Para entender quem e o que ela é, primeiro precisamos apresentar Elina, a personagem principal da história.

Elina era uma mulher-feita, preparada para passar seu aniversário no tenebroso hotel em Pinamar na intenção de também esquecer seu ex-namorado, Pablo. Era cheia de olheiras, cara cansada e sempre com insônia, o cheiro dos vários cigarros que fumava impregnado em suas roupas, depressiva, um tanto antipática e de olhar desafiador. Logo na primeira noite no hotel, a mulher teve um pesadelo com uma de suas piores lembranças da praia: o assédio que sofreu de um homem completamente bêbado e sem noção.

Ainda presa aos sentimentos da noite anterior, e com os pensamentos voando sempre à Pablo na esperança de receber uma ligação, passou por crises depressivas sozinha em seu quarto. Aquilo a machucava, a atormentava, mas a fazia se sentir viva. Ao mesmo tempo, a narrativa mostra  que tinha esperança que a morte a alcançasse.

No dia seguinte – e isso é muito importante – Elina conhece uma garota no café da manhã, um pouco estranha, forçada e obcecada por fantasmas: perguntou sobre o quarto de Saint-Exupéry, onde todas as fotos saiam borradas como se o fantasma dele ainda vagava por ali; perguntou a Elina sobre o mirante do hotel, que ficava fechado para a visitação. Curiosa, a mulher seguiu a garota até o mirante.

“— A filha do dono, quando pequena, acreditava que tinham escondido a louca aqui.” – Dizia a garota. O foco da narrativa então muda, não estamos mais na mente de Elina e sim da garota. Mas quem é ela? De onde veio? São informações que nem são citadas no conto. Bom, ao menos não estou abordando-as aqui.

Vejamos, então, os pensamentos da garota:

“Era melhor trazê-la ao mirante de novo, no dia seguinte. E deixá-la trancada. E talvez mostrar a ela sua verdadeira forma antes de abandoná-la sozinha lá em cima. […] Mostrar sua verdadeira forma. E de seu verdadeiro cheiro. E, claro, de seu verdadeiro toque. […] Elina poderia voltar a subi-la, e se jogar de novo. E então o hotel teria Elina passeando em círculos com suas mãos frias e seus braços ensanguentados. E ela seria livre, porque finalmente a encontrara.” (Enríquez, 2023, p. 75-76).

Encontrara quem?

 A mulher louca que tanto assombrava o hotel – que então finalmente assombraria. Essa forma, seja fantasma, criatura, ser sobrenatural, se alimentava dos pesadelos de Elina, a atormentava em seus sonhos e passou anos esperando por alguém como ela. Tudo que ela desejava era ser livre e, quando Elina chegou no local, não perdeu a oportunidade de deixá-la mais louca ainda, enfim concretizando aquele ser do passado da filha do dono.

O horror deste conto é um incômodo que “cutuca na ferida”. Atormentada por problemas diários e mentais, como a depressão e a dependência emocional, Elina jamais foi livre e no conto notamos que não será. Ela se torna o fantasma do passado de alguém, da mesma forma que a criatura em forma de garota fez com o trauma de Elina. O conto sugere esse ciclo.

Quem será a próxima mulher-louca?

REFERÊNCIA

ENRÍQUEZ, Mariana. Os perigos de fumar na cama. Tradução de Elisa Menezes. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca. 2023.

De onde vem a linguagem?

15/04/2025 13:52

 

 Por Anna Letícia de Abreu – Bolsista PET-LETRAS

Gabrieli Marques – Voluntária PET-LETRAS

Isabela Milioli – Autora convidada

Maysa Monteiro – Bolsista PET-LETRAS

 

Você já parou para pensar de onde vem a linguagem? Por que nós, seres humanos, desde muito cedo possuímos a capacidade de nos comunicar e entender o código linguístico mesmo antes de termos feito uma aula de gramática? Mais do que decorar regras, o que nos faz ter a predisposição de adquirir esse sistema? Por exemplo, como uma criança, até os quatro anos de idade, já é capaz de dominar esse jogo linguístico? A aquisição da linguagem é um processo tão automático que quase não percebemos o quanto ele é complexo. Muitos estudiosos se dedicaram a investigar sobre o assunto, trazendo debates, teorias e descobertas que nos ajudam a responder essa pergunta: de onde vem a linguagem?

Para refletir sobre algumas questões que giram em torno da aquisição e da linguagem, nós, graduandas de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas, sendo acompanhadas pela Profª Dra. Cristiane Volcão, da disciplina de Aquisição da Linguagem, criamos como método de divulgação científica uma série especial do #ComunicaPET, que chamaremos por #ComunicaLinguagem. Serão três edições sobre temas de interesse da disciplina, contando com posts de Instagram, texto publicado no site e ainda podcast! Acessível para aqueles que tem curiosidades sobre aquisição e suas várias possibilidades!

De início, é importante diferenciar linguagem e língua. A linguagem é a capacidade que o ser humano tem de se comunicar e usar símbolos para representar o mundo, e a língua é o sistema específico que usamos para fazer isso – como o Português, o Inglês, a Libras e outras muitas opções. Tendo esses dois conceitos em mente, veremos algumas teorias que tentam explicar nosso questionamento, debatendo de onde vem a linguagem.

Na Teoria Behaviorista ou Comportamentalista, por muito tempo acreditou-se que a linguagem era aprendida como qualquer outro comportamento e que as crianças aprendiam por imitação, repetição e recompensa. Frederic Skinner, um de seus teóricos, afirmava que a criança aprende a falar vendo os adultos e os imitando, recebendo respostas positivas quando acerta e negativas quando erra. Parece fazer sentido prestarmos atenção naquilo que as crianças realmente dizem, pois elas têm uma capacidade de produzir sentenças que nunca ouviram antes, como “eu fazi” ou “eu não sabo”. Nesses casos, ainda cometendo “erros”, a criança está entendendo e aplicando as regras de sua língua, mesmo sem nunca ter escutado essas frases antes. Se a aquisição fosse apenas por meio de imitação, de onde viriam essas “invenções”?

Já na Teoria Gerativista, acredita-se que a linguagem não é apenas aprendida, ela é inata, ou seja, pertence ao indivíduo desde o seu nascimento. Essa teoria revolucionou as discussões sobre o assunto e foi defendida por Noam Chomsky. Para esse linguista, já nascemos com uma espécie de “kit básico”, que nos prepara para adquirir qualquer língua, ele chama isso de Gramática Universal. Isso explicaria porque bebês do mundo todo passam por estágios muito semelhantes em relação ao desenvolvimento linguístico mesmo falando idiomas completamente diferentes. Para ele, o ambiente da criança é importante, mas apenas ativa um conhecimento que já está ali no cérebro. Ou seja, não aprendemos o código linguístico apenas porque imitamos falas ou sinalizações de outras pessoas, e sim porque já estamos programados para isso.

Ao longo das últimas décadas, além dessas teorias que citamos, muitas outras foram trazidas para o debate: o Cognitivismo, teoria defendida por Piaget, que diz que a linguagem está vinculada ao desenvolvimento cognitivo geral dos seres humanos e que o conhecimento se constrói através de estágios de desenvolvimentos; o Interacionismo, defendido  por Vygotsky, que destaca o papel das interações sociais para o desenvolvimento da linguagem.

Então, afinal, de onde vem a linguagem? Os debates sobre o assunto seguem abertos, até porque nenhuma das teorias dá conta de explicar tudo, entretanto, o gerativismo, com sua proposta de que nascemos biologicamente preparados para adquirir a linguagem, é hoje uma das teorias mais influentes e amplamente aceita. Isso não significa que as outras estejam descartadas, pois elas também oferecem explicações e complementações valiosas.

Por fim, o que nos impressiona é saber que a linguagem, algo que usamos sem pensar, passa por processos mentais e universais, e entender mais sobre isso é entender mais sobre nós mesmos. Agora quando você ouvir uma criança pronunciando “eu não sabo”, vai entender que isso é um sinal de que a mente daquela criança está criando, testando e ajustando hipóteses sobre o funcionamento de sua língua, e isso é incrível.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

CEZARIO, Maria Maura; MARTELOTTA, Mário Eduardo. Aquisição da linguagem. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo e cols. (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 207-216.

DEL RÉ, Alessandra. A pesquisa em aquisição da linguagem: teoria e prática. In: DEL RÉ, Alessandra e cols. (org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolinguística. São Paulo: Contexto, 2013. p. 13-44.

FARIA, Evangelina; CAVALCANTE, Marianne. Aquisição da linguagem: um olhar sobre o campo e teorias. In: FEITOSA, Antônio LF; DEPOLLI, Gabriel T; VOGELEY, Ana. Mapas conceituais em fonoaudiologia: Linguagem. Ribeirão Preto: BookToy, 2023. p. 19-34.

FINGER, Ingrid. A aquisição da linguagem na perspectiva behaviorista. In: FINGER, Ingrid e QUADROS, Ronice Muller de. Teorias de aquisição da linguagem. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008. p 17- 44.

GROLLA, Elaine; SILVA, Maria Cristina Figueiredo. Pra conhecer: aquisição da linguagem. São Paulo: Contexto, 2014.

HOCHSPRUNG, Vitor. Divulgação Científica: Notas sobre Popularização da Linguística na Internet e na Sala de Aula. Ensino de línguas: propostas e relatos de experiência. São Paulo: Blucher, 2023. Disponível em https://openaccess.blucher.com.br/article-details/05-23953.  Acesso em: 13 mar. de 2025.

KAIL. Michèle. Aquisição da linguagem. São Paulo: Parábola, 2013. p. 11-35 Aquisição: dos sons às palavras.

SCARPA, Ester Mirian. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

 

 

Contexto Colonial: Políticas Linguísticas nas Filipinas

08/04/2025 16:15

Por Izabel Bayerl e Gabriela Muller
Letras-Português

Bolsista PET-Letras e autora convidada

As Filipinas são um país formado por diversas ilhas localizadas no Sudeste Asiático. A colonização das Filipinas foi feita pela Espanha, entre os anos de 1565 e 1898. Os espanhóis chegaram às ilhas em 1521, quando o navegador português Fernão de Magalhães desembarcou a mando do rei espanhol Carlos I. Somente em 1565, no entanto, foi estabelecido o primeiro forte espanhol em território filipino, na ilha de Cebu, por Miguel López de Legazpi, consolidando a presença espanhola e iniciando o processo de colonização.  A colonização espanhola nas Filipinas foi marcada por diversas imposições sociais, econômicas e culturais. No país, assim como nas colônias espanholas nas Américas, a igreja acompanhou os colonizadores com o objetivo de catequizar os povos nativos.

Esse processo de catolicização foi um aspecto essencial da dominação colonial, especialmente considerando a grande distância entre as Filipinas e a Europa. Em 1571, a Espanha estabeleceu um governo colonial em Manila e, a partir daí, implementou uma série contínua de reformas políticas, sociais, culturais e religiosas (Zeng; Li, 2023). Entre as ações implementadas pelos colonizadores estava o sistema de encomiendas, dando terras a colonizadores em troca da catequização dos nativos, o  monopólio comercial junto a exploração do trabalho nativo nas plantações de produtos como tabaco e açúcar e a tentativa de impor elementos da cultura espanhola, incluindo o idioma, na sociedade filipina. Segundo  Baltar Rodrigues, em seu artigo Filipinas en el contexto del sistema colonial español (2019, p.88-89):

O conservadorismo, como traço distintivo do império espanhol, atingiu manifestações excepcionais nas ilhas Filipinas. O isolamento imposto pela distância entre a colónia e a metrópole, o baixo valor económico das ilhas para o Tesouro Real, a escassa disponibilidade de funcionários capazes e interessados em fazer carreira em regiões tão distantes e a atividade voraz das corporações religiosas, conjugaram-se ao longo de três séculos e meio para transformar as Filipinas numa verdadeira peça de museu do decadente império ultramarino espanhol.

Em 1898 os Estados Unidos da América (EUA) adquiriram as Filipinas da Espanha, proporcionando maiores desenvolvimentos econômicos e comerciais no arquipélago que anteriormente sofria com as diversas restrições impostas pelo colonizador espanhol. “O tipo americano de administração colonial, baseado em formas participativas e com tendência para o autogoverno, encorajou e reforçou os sextantes filipinos mais moderados e preparou-os para a independência sob a proteção americana.” (Baltar Rodrigues, 2019, p.102). Assim, a independência das Filipinas foi formalmente oficializada pelos EUA, em 1946, depois da Segunda Guerra Mundial. Porém, em 1941, o Japão passou a ocupar as Filipinas pelo curto período de 3 anos.

Pensando na questão dos efeitos das políticas linguísticas coloniais na educação e no acesso ao conhecimento na ex-colônia nas Filipinas, é interessante destacar que durante o domínio da Espanha foi instaurada a decisão do ensino da língua espanhola para haver a diferenciação entre a elite – sob supervisão do clero – e a população nativa, e também pelas questões do multilinguismo ali presente (Baltar Rodrigues, 2019). Diferentemente, quando os EUA agregaram as Filipinas a seu domínio foi estabelecida uma “[…] política de assimilação das línguas, que implicou na promoção do inglês nas Filipinas e na instituição da educação em inglês para todos” (Sibayan; Gonzalez, 2011 apud Zeng; Li, 2023). Dessa forma, o inglês passou a ser a língua dominante sendo altamente ensinada nas escolas, mas em contrapartida as línguas indígenas presente nas Filipinas foram deixadas de lado. Por fim, durante o período da ocupação japonesa, foi instaurada a Constituição de 1943, que designou a língua nativa Tagalo como oficial com intuito de sua disseminação no país recebendo assim uma “superioridade linguística”; porém, as demais línguas indígenas continuaram excluídas (Zeng; Li, 2023). Os efeitos dessas políticas linguísticas instauradas por todos os três colonizadores das Filipinas ao longo dos anos resultaram em um país multilíngue, sendo o Inglês e o Tagalo línguas oficiais, e a marginalização das línguas indígenas do país.

Com o fim do período colonial nas Filipinas, o Filipino e o Inglês foram mantidos como línguas oficiais do país. Conforme discutido anteriormente, no contexto educacional ambas as línguas são contempladas, cada uma com suas especificidades, o que refletiu em um país com uma ideologia do pluralismo linguístico, assimilação linguística e internacionalismo (Zeng; Li, 2023). No período pós-independência, foi defendido a adoção da língua dominante na sociedade para promover inclusão social e ascensão econômica. Somado a isso, o internacionalismo viabiliza que as Filipinas sejam relevantes e competitivas no contexto global com o uso de uma língua mundialmente utilizada, neste caso, o Inglês. Assim, a consequência de manter a língua colonial como oficial no país se dá no maior acesso a oportunidade sociais e econômicas, facilitando a comunicação em nível internacional, proporcionando maior influência das Filipinas em questões econômicas globais. Atualmente, as Filipinas já observam os resultados positivos de sua internacionalização. Segundo, Grangeia e López (2016), “O país já não é essencialmente dependente da agricultura; é provido de um setor de serviços e um ambiente amigável para negócios na Ásia”.

Por outro lado, a decisão de manter o Inglês como uma das línguas oficiais das Filipinas e promover a educação com a língua colonial traz implicações negativas ao promover legados coloniais e desvalorizar as línguas indígenas (Zeng; Li, 2023). A tentativa de manter um pluralismo linguístico gerou uma dinâmica na qual o uso contínuo do Inglês como língua oficial nos diversos setores da vida pública e educacional tem implicações diretas na preservação e promoção das línguas locais. Uma das consequências disso é a criação de novas variedades de línguas,  que aglutinam a língua colonial com as línguas locais: “uma variedade nativizada de Inglês surgiu nas Filipinas, e é distintamente filipina’’ (Zeng; Li, 2023 apud Borlongan, 2022). O Taglish é um code switching entre Tagalo (e outras línguas nativas) e o Inglês, misturando o uso das duas línguas no discurso (Bautista, 2004) e é predominante na área metropolitana de Manila, embora também tenha se difundido entre as comunidades filipinas também fora do país. Essa variante, que surgiu da coexistência entre a língua colonial e as línguas Filipinas, se tornou mais do que uma alternância de código, e hoje em dia é tida como uma resistência local à predominância do Inglês e à desvalorização das línguas nativas.

REFERÊNCIAS

BALTAR RODRÍGUEZ, E. Filipinas en el contexto del sistema colonial español. Tzintzun. Revista de Estudios Históricos, [S. l.], n. 18, p. 87-102, 2019. DOI: 10.35830/treh.vi18.1597. Disponível em: https://www.tzintzun.umich.mx/index.php/TZN/article/view/1597. Acesso em: 6 nov. 2024

BAUTISTA, M. L. S. Tagalog-English code switching as a mode of discourse. Asia Pacific Education Review, v. 5, p. 226–233, 2004. DOI: 10.1007/BF03024960. Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF03024960. Acesso em: 9 nov. 2024.

GRANGEIA, M. L.; LÓPEZ, M. Cultura política e Estado na América latina e Filipinas. Século XXI – Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 5, n. 2, p. 109–136, 2016. DOI: 10.5902/2236672521591. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/seculoxxi/article/view/21591. Acesso em: 9 nov. 2024.

ZENG, J.; LI, X. Ideologies underlying language policy and planning in the Philippines. Humanit Soc Sci Commun v. 10, n. 405, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1057/s41599-023-01911-8. Acesso em: 2 nov. 2024.

 

Afinal, o teor humorístico nas redes sociais pode disfarçar a violência linguística?

02/04/2025 06:46

  Por Julia Martins

                                                                                                              Bolsista PET-LETRAS

                                                                                      Letras Língua Portuguesa e Literaturas

Segundo Alencar e Silva (2013), as palavras não possuem um significado fixo, mas, o sentido depende do contexto e grupo social em que são reproduzidas. Afinal, “Se não há significados imanentes à língua, que peso atribuir aos significados das  palavras  que  ferem,  machucam,  paralisam?” (Alencar; Silva, 2013, p. 135). Os autores também explicam que a linguagem não acontece em um vazio, como se cada conversa fosse um momento isolado no tempo. Pelo contrário, toda interação linguística está conectada a uma história maior, a relações sociais e a práticas culturais.

Essa perspectiva dialoga com a análise de boyd (2010) sobre a comunicação nas redes sociais, que funcionam apenas como uma ferramenta em que as pessoas têm a possibilidade de se mostrar e observar os outros. Ela explica também que, muitas vezes, os usuários ativos são tratados como “fantoches”, ou seja, são manipulados pelas mudanças nas informações, e pela forma como interagem uns com os outros nas redes. Ou seja,  se como argumentam Alencar e Silva, as palavras carregam sentidos que nascem das relações sociais e culturais, então, no ambiente digital, essa construção de significados é dobrada pela forma como a tecnologia organiza e filtra as interações. Pensando no cenário tecnológico, para a antropóloga Abidin (2021), o ponto se refere a teoria dos “públicos refratados”, um grupo formado por usuários que ajudam a esconder suas próprias ações, criando uma “cortina de fumaça”. Isso facilita a circulação de mensagens de forma ampla e acessível, utilizando grupos privados e plataformas fechadas. Visando exemplificar esses conceitos, observamos abaixo uma publicação retirada da mídia social “X”.

Título da imagem: Tweet do humorista Júlio Cocielo
Descrição da imagem: A imagem é uma captura de tela da rede social X, com um tweet publicado pelo usuário Júlio Cocielo, que diz “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein” em 30 de junho de 2018. A publicação teve 2.722 retweets e 5.139 curtidas.

 

Na captura apresentada, vemos uma publicação feita por Júlio Cocielo, conhecido como uma das maiores figuras humoristas em âmbito nacional atualmente, acumulando mais de 8 milhões de seguidores na rede.

Para compreendermos melhor o conteúdo, é necessário uma contextualização dos eventos ocorridos no ano de 2018, tratando-se de uma comemoração global relacionada a copa do mundo. Durante os jogos futebolísticos, o influenciador direciona-se ao profissional em campo denominado: “Mbappé’’, empregando em suas palavras a tonalidade humorística em conjunto da linguagem internauta, e de certa forma, ocultando a violência presente e dirigida ao indivíduo afrodescendente.

 

Algumas horas após a publicação, Cocielo, que mantinha seu conteúdo humorístico destinado ao público-alvo, tornou-se vulnerável diante do desaparecimento da cortina de fumaça. Ou seja, a publicação tomou proporções mundiais, alcançando diversas camadas da redes, e claro, dividindo opiniões. Por um lado, enquanto o público já consumidor das pautas desenvolvidas pelo humorista; afirma que a conotação da publicação é relacionada à “velocidade’’ e à “corrida rápida’’ de Mbappé, o público refratado contra-argumenta e expõe pontos históricos de racismo, dos quais, as figuras negras sempre são vinculadas ao crime e à violência. No meio digital, somos bombardeados por inúmeros episódios de violência linguística, que acabam sendo ocultados pela tonalidade humorística. Nesse sentido, vejamos outro exemplo semelhante ao de Julio Cocielo:

Titulo da imagem: Tweet do humorista Rodrigo Fernandes
Descrição da imagem: A imagem é uma edição que utiliza no fundo a foto de Will Smith e Jaden Smith em um estádio lotado, junto com um tweet de Rodrigo Fernandes, que diz: “Tenho quase certeza que o filho do Will Smith me pediu dinheiro ontem na esquina da Rua Haddock Lobo dizendo que tava olhando meu carro.”.

 

 

Algumas semanas depois, a imagem dos atores Will Smith e seu filho Jaden Smith repercutiram nas redes sociais, pela aparência “cansada e abatida” da figura mais jovem em meio às comemorações esportivas. Diante do cenário, temos a inserção do comediante Rodrigo Fernandes — que atualmente, acumula mais de 400 mil seguidores na rede social twitter. Após a publicação relacionada aos atores, a figura conhecida como Jacaré Banguela chegou a ficar entre os assuntos mais comentados nas mídias.

 

Novamente, como manobra para ocultar a violência, o comediante utiliza da linguagem humorística. No texto, o ator Jaden Smith é associado aos trabalhadores popularmente conhecidos como ‘flanelinhas’, que frequentemente se encontram em situações de fragilidade econômica ao oferecerem ajuda em estacionamentos em troca de remuneração. Porém, diferente do episódio citado nos parágrafos anteriores, o influenciador é recebido por discussões centralizadas no teor preconceituoso e racista explícito no texto. Segundo os usuários, ambas situações direcionadas a Mbappé e Jaden – renomadas estrelas mundiais, só reforçam que o preconceito racial não é atrelado ao financeiro.

Por fim, com as análises apresentadas, é relevante lembrar novamente dos conceitos de Abidin (2021), quando mostra que o universo online (dentro das redes) e offline (fora das redes) não podem mais ser separados, destacando como as interações digitais têm impacto no mundo concreto. Essa visão se alinha também com os estudos de Silva e Alencar (2013), quando afirmam que a linguagem não é apenas uma comunicação ou representação de eventos, mas uma ação com efeitos reais. No digital, a linguagem pode ser utilizada como um mecanismo de controle e poder, capaz de causar danos físicos e emocionais, como qualquer outro tipo de violência.

REFERÊNCIAS

ABIDIN, Crystal. De “públicos em rede” a “públicos refratados”: uma estrutura complementar para pesquisar estudos “abaixo do radar”. Social Media + Society, v. 7, n. 1, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1177/2056305120984458. Acesso em: 01 abr. 2025.

BOYD, Danah. Sites de redes sociais como públicos em rede: possibilidades, dinâmicas e implicações. In: PAPACHARISSI, Zizi (org.). Networked self: identity, community, and culture on social network sites. Nova York: Routledge, 2010. p. 39-58.

SILVA, Daniel do Nascimento e; ALENCAR, Claudiana Nogueira de. A propósito da violência na linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 55, n. 2, p. 129-141, jul./dez. 2013. Disponível em: https://doi.org/10.20396/cel.v55i2.8637294. Acesso em: 01 abr. 2025.

Hostels: espaço de intercâmbio linguístico e cultural acessíveis

20/03/2025 08:19

Por Paula Scalvin da Costa

Bolsista PET Letras

Letras-Inglês

Viajar consegue ser comumente associado à descoberta de novos lugares, culturas e formas de ver o mundo. A prática de viajar, ao longo do tempo, foi se distanciando do simples turismo e transformando-se em uma experiência mais profunda de aprendizado, crescimento pessoal e expansão de horizontes. Para muitos, a viagem tornou-se uma oportunidade de imersão total, em que o contato direto com diferentes culturas e idiomas se traduz em experiências enriquecedoras. Nesse contexto, os hostels surgem como espaços privilegiados para vivências culturais e linguísticas, oferecendo não apenas hospedagem acessível, mas também um ambiente dinâmico e multicultural, onde as interações entre viajantes de diferentes origens promovem um verdadeiro intercâmbio linguístico e cultural.

Diferentemente dos hotéis convencionais, que geralmente priorizam a privacidade e os serviços personalizados, os hostels incentivam a socialização e o contato entre os hóspedes. Isso ocorre principalmente pela estrutura do local, com dormitórios compartilhados, áreas comuns e atividades coletivas, que favorecem o encontro de pessoas de diversas partes do mundo. Esse ambiente propício à interação faz dos hostels um terreno fértil para a prática de idiomas, já que os viajantes se veem imersos em situações reais de comunicação, onde precisam utilizar diversas línguas para se fazer entender.

O aprendizado de uma língua estrangeira depende não só da teoria, mas também da prática constante em contextos autênticos. Nos hostels, essa prática ocorre de forma espontânea e natural, seja durante um café da manhã compartilhado, em passeios em grupo ou até mesmo na troca de receitas culinárias na cozinha comum. Nesse cenário, o viajante é desafiado a se comunicar em uma língua que talvez ainda não domine completamente, forçando-o a ouvir, falar e se expressar de maneira prática. Muitos relatam que a experiência de convivência diária nesses espaços é uma das formas mais eficazes de aprendizagem linguística, comparável a um intercâmbio formal.

Além do intercâmbio linguístico, os hostels desempenham um papel vital na promoção da troca cultural entre seus hóspedes. Ao reunir pessoas de diferentes países, os hostels oferecem uma oportunidade única para os viajantes se conectarem com costumes, tradições e pontos de vista diversos. Cada conversa, cada interação, carrega consigo uma experiência cultural única, revelando desde pequenas nuances do cotidiano, como os diferentes modos de cumprimento, hábitos alimentares ou gestos de hospitalidade, até discussões mais profundas sobre valores e tradições que formam a base da identidade de cada um.

Em um hostel, a diversidade cultural é vivenciada em sua forma mais autêntica e acessível. As amizades que surgem nesses ambientes frequentemente ultrapassam as barreiras geográficas e temporais, criando redes de contato que podem resultar em reencontros em diferentes partes do mundo ou até mesmo em parcerias profissionais e pessoais. As interações no hostel ajudam a construir um ambiente de respeito e troca, onde as barreiras culturais vão sendo suavizadas à medida que as pessoas compartilham suas histórias e suas realidades.

Outro aspecto fundamental que torna os hostels um excelente ambiente para o intercâmbio linguístico e cultural é a possibilidade de trabalho voluntário. Muitos hostels oferecem a oportunidade de trocar horas de trabalho por hospedagem e alimentação, criando uma experiência de imersão mais profunda e prolongada. Essa modalidade de trabalho voluntário oferece aos viajantes não só uma economia significativa, mas também a chance de praticar idiomas e desenvolver habilidades valiosas, como a resolução de problemas, a adaptabilidade e a comunicação interpessoal.

O trabalho voluntário em hostels pode envolver diversas atividades, como recepção de hóspedes, organização de eventos, limpeza, cozinha e marketing. Essas experiências proporcionam aos viajantes uma vivência direta e prática da língua e da cultura local, além de contribuírem para a criação de uma rede de amizades e contatos profissionais. Além disso, o trabalho voluntário permite aos viajantes uma sensação de pertencimento e contribuição para a comunidade, o que fortalece ainda mais o caráter social da experiência.

Nos últimos anos, a tecnologia tem se mostrado uma grande aliada na promoção do intercâmbio linguístico e cultural, e isso também se reflete no cenário dos hostels. Plataformas digitais como Worldpackers, Workaway e Hostelworld são excelentes exemplos de como a tecnologia pode facilitar a conexão entre viajantes e hostels que oferecem oportunidades de voluntariado e troca cultural. Essas plataformas permitem que os viajantes encontrem hostels em diversos lugares do mundo que oferecem desde acomodações até a oportunidade de realizar trabalho voluntário em troca de hospedagem, alimentação ou até experiências culturais imersivas.

O Worldpackers, por exemplo, conecta viajantes com mais de 2.000 hostels ao redor do mundo que oferecem programas de voluntariado em diferentes áreas, desde educação até conservação ambiental. O uso dessas plataformas possibilita uma abordagem mais organizada e acessível para quem deseja se engajar em experiências de intercâmbio, tanto linguístico quanto cultural. Os usuários podem avaliar as experiências de outros viajantes, o que ajuda a garantir a transparência e a qualidade das experiências oferecidas.

Além disso, plataformas de redes sociais, como Instagram e YouTube, têm sido utilizadas por influenciadores para compartilhar suas experiências em hostels ao redor do mundo. Influenciadores de viagens frequentemente documentam sua vivência em hostels, proporcionando aos seguidores uma visão autêntica e realista do que esperar. Muitos deles, ao compartilharem suas histórias, oferecem dicas e conselhos valiosos sobre como aproveitar ao máximo essas experiências, seja para aprender um novo idioma ou para se envolver em projetos culturais. O conteúdo gerado por influenciadores também ajuda a divulgar hostels menos conhecidos, mas que oferecem experiências enriquecedoras.

Além da troca presencial de idiomas e culturas, a tecnologia também tem facilitado a criação de experiências linguísticas no ambiente virtual. Plataformas como Duolingo, Babbel e Tandem oferecem aos usuários a oportunidade de praticar idiomas com falantes nativos por meio de trocas linguísticas online. Embora não substituam totalmente a imersão física em um ambiente multicultural, essas ferramentas podem ser complementares, permitindo que os viajantes se preparem para suas experiências em hostels, aprendendo o básico do idioma antes da viagem.

Ao escolher um hostel como opção de hospedagem ou de trabalho, o viajante não só economiza, mas também investe em uma experiência transformadora e autêntica, que ultrapassa as barreiras do turismo tradicional. O verdadeiro intercâmbio acontece nas interações cotidianas, nas trocas culturais espontâneas e nas amizades formadas em espaços que, embora simples, têm o poder de transformar a maneira como vemos o mundo e nos relacionamos com ele.

Crescendo entre línguas: a experiência dos CODAs

09/03/2025 10:22

Por Franciane Ataide Rodrigues

Letras Libras

Bolsista PET-Letras

 

As pessoas ouvintes filhas de pais surdos são chamadas de CODAs, sigla para Children of Deaf Adults. A composição familiar pode se dar de três maneiras: mãe surda e pai ouvinte, pai surdo e mãe ouvinte ou ambos, pai e mãe surdos. O CODA, geralmente, cresce em meio a duas culturas, duas línguas, e no contato com muitas experiências visuais. As pesquisas acadêmicas em torno de filhos de pais surdos ainda são recentes no Brasil, pois grande parte desses estudos encontram-se na América do Norte e na Europa (Souza, 2014, p.35).

Descrição de imagem: a imagem é um cartaz do  filme “CODA”.  De plano de fundo no canto superior esquerdo um farol com um céu dourado pelo pôr do sol. No centro da imagem uma família de 4 pessoas sentadas na traseira de uma caminhonete azul. Da direita para a esquerda, uma jovem que apoia a cabeça no ombro de um homem barbudo de boné, que sorri para uma mulher loira ao seu lado; ela também sorri. Na direita, um rapaz jovem de jaqueta jeans que está olhando feliz  para o grupo. Em caixa alta, no canto inferior esquerdo, o título “Coda”.

 

Na comunidade surda, existe uma crença de que todos os CODAs possuem fluência em Libras e uma grande predisposição para se comunicar nessa língua. No entanto, isso nem sempre corresponde à realidade. Como destacado por Quadros e Cruz (2020), apesar de CODAs crescerem em casas onde a língua de sinais é usada, eles variam consideravelmente na fluência desta língua. Em alguns casos, dentro do ambiente doméstico, há uma maior exposição a sinais caseiros, especialmente quando os próprios pais não possuem grande fluência em Libras – no caso do Brasil. Nessas situações, a comunicação familiar acaba ocorrendo por meio de convenções criadas dentro da própria família. Por outro lado, em lares onde os pais se comunicam fluentemente em Libras, os filhos tendem a ter uma predisposição maior para aprender a língua. Entretanto, é fundamental considerar os diversos contextos culturais e familiares para evitar generalizações que desconsiderem ou apaguem as diferentes realidades vividas por essa população.

Pensando no contexto de aquisição da linguagem, a literatura nos diz que a convivência com outros falantes da língua a ser adquirida e o recebimento de estímulos de comunicação durante o período crítico de aquisição da linguagem são fatores importantíssimos para que a criança se desenvolva na língua. Como afirmado por Quadros e Karnopp (2004), a aquisição da língua oral pela criança CODA está intimamente ligada ao nível de exposição e estímulo que recebe, bem como à fluência dos pais e familiares na língua majoritária.  Dito isso, é possível ver diferentes níveis de desenvolvimento de linguagem nessas crianças, a depender do nível de estímulo que recebem, a fluência e contato dos pais e da família na língua portuguesa e, sobretudo, a idade em que entrou na escola.

Pensando no contexto do crescimento e dinâmicas da vida, a realidade do CODA pode ter algumas diferenças em relação às crianças ouvintes, pois desde muito novas assumem, em algumas situações, o papel de ponte de comunicação entre o adulto surdo e o mundo ouvinte. Isso não ocorre apenas em situações com estranhos, como em consultas médicas, lojas, etc., mas também no contexto familiar, na relação com tios, sobrinhos e avós, quando estes são ouvintes, pois muitas vezes a família não é capaz de se comunicar com o surdo. Como é observado por Preston (1994), desde cedo, muitos filhos ouvintes de pais surdos assumem o papel de intérpretes informais, mediando a comunicação entre seus pais e o mundo ouvinte, o que pode impactar seu desenvolvimento e identidade.

Por fim, a contribuição dos surdos pais de crianças ouvintes na sociedade passa por algumas responsabilidades semelhantes às dos pais ouvintes, como a criação de um ser humano ético, responsável e que contribua positivamente para a sociedade, dar suporte e segurança para a criança. Além disso, há especificidades que surgem a partir da dinâmica familiar como apontam Quadros e Massutti (2007) quando descrevem os conflitos gerados pela convivência do CODA com dois grupos distintos e representações linguísticas díspares – ouvintes, representados pela Língua Portuguesa, e surdos, pela Libras.

Diante desse contexto, é importante reconhecer que muitas crianças CODAs acabam sendo tratadas como “mini adultos”, assumindo precocemente responsabilidades que vão além do que seria esperado para sua idade. Ao desempenharem o papel de intérpretes informais para seus pais em situações complexas, como consultas médicas, delegacias ou serviços bancários, essas crianças são expostas a informações sensíveis e, muitas vezes, emocionalmente desafiadoras. Esse acúmulo precoce de responsabilidades pode impactar seu desenvolvimento emocional e psicológico, gerando sobrecarga e ansiedade. Por isso, é fundamental que espaços públicos contem com intérpretes de Libras profissionais, garantindo que a comunicação entre surdos e ouvintes ocorra de maneira adequada, sem que as crianças precisem assumir um papel que não lhes cabe. O reconhecimento dessa necessidade é um passo essencial para assegurar os direitos linguísticos da comunidade surda e preservar a infância dos CODAs.

 

 

REFERÊNCIAS

SOUZA, J. C. F. Intérpretes CODAs: construção de identidades. 2014. Dissertação (Mestrado em Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.

QUADROS, R. M. de; CRUZ, M. R. G. Estudos experimentais com bilíngues bimodais: aspectos metodológicos e implicações para a pesquisa. Revista Linguíʃtica, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 1-25, 2020.

QUADROS, R. M. de; KARNOPP, L. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: ArtMed, 2004.

PRESTON, P. Mother Father Deaf: living between sound and silence. Cambridge: Harvard University Press, 1994.

QUADROS, R. M. de; MASSUTTI, R. Codas: uma ponte entre dois mundos. O Som dos Sinais, 2007. Disponível em: https://osomdossinais.blogspot.com/2013/07/codas-uma-ponte-entre-dois-mundos.ht. Acesso em: 7 mar. 2025.

O papel da memória como ato político

05/03/2025 13:10

 

Por Hanna Boassi

Bolsista PET – Letras | CNPq

Letras – Português

 

O que não foi dito também tem significado.

-Eni Orlandi

 

O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional nesse último domingo (2). A narrativa acompanha a história de Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, durante o período da Ditadura Militar no Brasil. A construção de memória no filme pode ser analisada a partir da relação entre o discurso, a narrativa cinematográfica e o contexto histórico em que a história se insere. A memória, no contexto do filme, não é apenas um resgate do passado, mas uma reconstrução subjetiva que se dá na interseção entre os testemunhos, os documentos e as marcas discursivas deixadas pelo período ditatorial.

Ainda Estou Aqui não apenas relata a dor e a luta de Eunice, mas evidência como a ausência se manifesta na memória individual e coletiva. O desaparecimento de Rubens Paiva não é apenas um evento trágico pessoal, mas uma lacuna histórica que reverbera até os tempos atuais, revelando as tensões entre o esquecimento imposto e a resistência em manter viva a lembrança de pessoas, que como Rubens, foram silenciadas.  A estética do filme reforça essa construção ao utilizar uma narrativa fragmentada, intercalando cenas de arquivo, depoimentos e reconstruções ficcionais para dar forma à memória de Eunice. É nesta materialidade que podemos pensar uma memória discursiva:

Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador. […] Não é de se admirar, nessas condições, que a ideia de uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que desempenhou o papel de ponto de referência” (Pêcheux, p. 50, 1999).

No caso de Eunice, essa disputa adquire uma dimensão mais complexa diante do Alzheimer; ao ser abordada essa condição no filme, reforça-se a fragilidade de uma memória individual e a necessidade da construção de uma memória coletiva que resista ao esquecimento. Sua luta não desaparece junto de sua memória, pois sua trajetória se inscreve na memória coletiva e no discurso público, que mantém viva a recordação de Rubens Paiva e de tantas outras vítimas da Ditadura. Em sua cena final, Fernanda Montenegro, ao interpretar Eunice já em estado avançado do Alzheimer, diante de uma televisão onde se passa uma reportagem sobre seu marido desaparecido, não pronuncia uma palavra, mas no seu olhar observamos a recuperação de uma memória que, embora fragmentada e instável, ainda resiste – ainda está ali. O silêncio de Eunice não é vazio, mas carrega significado.

Em Maio de 68, Eni Orlandi aponta que a forma sujeito-histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso (Orlando, 1999, p. 61); essa forma dialoga com o fato de que, Eunice Paiva, tanto em sua vida quanto em sua representação no filme, encarna essa contradição. Se, por um lado, sua identidade pessoal se dissolve devido à doença, por outro, sua história se mantém como parte de um coletivo que resiste ao apagamento. Ainda Estou Aqui transcende a história pessoal de Eunice e Rubens Paiva e se insere em um debate mais amplo sobre como lembrar é um ato político. O filme reafirma que a memória não é apenas um resgate do passado, mas um campo de disputa no presente, onde diferentes narrativas se confrontam para garantir que o que for perdido não se torne definitivo.

 

REFERÊNCIAS

PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da Memória. Tradução e Introdução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.

ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999, p.59-71.