Você sabe como ocorre o aprendizado da língua de sinais pela criança surda?

11/12/2022 16:02

Débora Klug e Hanna Boassi

Letras-Português

Bolsistas do PET-Letras

 

Em abril de 2002, a Libras (Língua Brasileira de Sinais) foi oficialmente reconhecida como a língua oficial dos surdos pela Lei Federal nº 10.236 e a partir disso mudanças significativas em relação à comunidade surda aconteceram. Desta forma, a Libras passou a ser um direito das pessoas surdas — a importância da Libras como um direito significa que a pessoa consegue estar inserida dentro da sociedade, compreender o mundo e interagir com ele, como afirmam Elizabete Alves e Silvana Frassetto (2015).

Assim como outras línguas, a língua de sinais não é universal. Cada país possui a sua própria língua de sinais, que tem influências culturais do local a que pertencem. Então, diferente do que muitos pensam, todas as línguas de sinais possuem estruturas gramaticais próprias, sendo compostas pelos níveis fonológico, morfológico, sintático e semântico. Sendo assim, a única coisa que a diferencia das demais línguas é que é uma língua de modalidade visual.

Há um linguista norte-americano chamado Noam Chomsky, que alguns chamam de “pai da linguística moderna”,  e ele acredita que toda criança possui um dispositivo interno chamado faculdade da linguagem. Segundo ele, por isso, a linguagem é inata ao ser humano, sendo acionada através de estímulos linguísticos. Esses estímulos estão presentes no ambiente em que a criança está inserida, ou seja, tudo o que ela tem contato com a língua ao seu redor é um estímulo. Mesmo que esses estímulos não sejam completos – uma criança não vai ter contato com todos os elementos existentes da sua língua –, a criança é totalmente capaz de atingir a fluência de uma língua. Estes estímulos são chamados de inputs linguísticos.

Fonte: https://leiturinha.com.br/blog/wp-content/uploads/2021/01/iStock-1209996526-2048×1365.jpg

Descrição de imagem: no fundo, se percebe uma árvore desfocada; em frente a árvore, uma criança negra usando uma faixa branca no cabelo e uma camiseta listrada preta e branca gesticulando o sinal de Libras.

É importante compreender que a língua de sinais é a primeira língua dos surdos, e aqui vamos entender um pouco sobre como funciona a aquisição e o aprendizado dessa língua. A maioria das pesquisas feitas sobre esse assunto foram realizadas com crianças surdas com pais surdos, já que essas estão expostas ao input linguístico adequado para a aquisição da linguagem de forma natural – assim como uma criança ouvinte que adquire uma língua falada, por exemplo. Mas alguns estudos com crianças surdas com pais ouvintes resultaram, na maioria das vezes, num atraso na aquisição da linguagem, justamente pela falta desse input linguístico, já que as famílias normalmente demoram a conhecer a língua de sinais.

Uma publicação no Instagram do perfil SOPA-Lab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feito por Jociane Vieira de Farias (2022), apresenta uma comparação entre o desenvolvimento da língua de sinais e o da língua falada em crianças nos seus primeiros anos de vida. Ela explica que do primeiro ao terceiro mês de vida é comum que a criança emita sons, choros com intenção comunicativa e produção de gestos manuais. Depois disso,  a partir do quarto mês até o sexto mês de vida, se iniciam os balbucios, que podem ser tanto vocálicos como gestuais, imitando sons ou gestos emitidos por outras pessoas.

Já do sétimo ao nono mês de vida o bebê começa a produzir as primeiras sílabas orais ou manuais, por exemplo: o uso oral da sílaba “bo”, que comumente é usado para “bola”; e o uso gestual da mão aberta na bochecha, que normalmente significa “mãe”. A partir do décimo mês, a criança começa a produzir palavras com duas sílabas, como “mama” ou “papa” e a entender a entonação que é associada às falas ou à sinalização dos adultos por perto. Com um ano de idade, a criança já compreende o significado de algumas frases comuns ao seu cotidiano, que são acompanhadas de gestos e expressões.

Aos dois anos, as crianças já começam a produzir frases maiores, com combinações substantivo-verbo (por exemplo: cachorro brincar) e substantivo-adjetivo (como: árvore bonita). Nessa idade, a criança geralmente já possui mais de 50 palavras ou sinais em seu vocabulário. Com três anos, começam a diferenciar tempos e modos verbais — ou seja, conseguem diferenciar passado, presente e futuro, assim como indicativo, subjuntivo e imperativo. Quando a criança atinge os quatro anos, há uma melhora nas construções gramaticais (nas frases que ela monta); e também nas conjugações verbais (a criança percebe melhor as regras e usos das conjugações dos verbos na língua); também percebe-se que a criança começa a fazer monólogos, falar sozinha consigo mesma, tanto as crianças surdas em sinais quanto as ouvintes em língua oral. Aos cinco, começam a estabelecer comparações, observar semelhanças e diferenças e têm início do uso social da linguagem. As frases que produzem são equiparadas ao padrão de adultos. Por fim, dos seis anos em diante, se complexificam as noções corporal, espacial e temporal, assim como as estruturas sintáticas (elas são as combinações das palavras nas frases, e a combinação das frases entre si). Tudo isso ocorre de maneira progressiva.

A diferença entre a aquisição da linguagem entre uma criança surda e uma criança ouvinte é que, em determinado momento, logo após os primeiros balbucios, a criança surda normalmente para de oralizar e começa a focar principalmente em estímulos gestuais e visuais.

O período crítico de aquisição da linguagem de uma criança começa por volta dos dois anos de idade e vai até mais ou menos a puberdade, esse período pode ser considerado como o “pico” do processo de aquisição da linguagem; não que seja impossível haver aquisição em outros períodos, afirmam as linguistas da Universidade Federal de Santa Catarina, Ronice Müller de Quadros e Aline Lemos Pizzio 2011). As crianças surdas de pais ouvintes, que acabam sendo expostas mais tarde à língua de sinais, apresentam mais dificuldades na aquisição do que as crianças que foram expostas desde cedo.

Sendo assim, percebemos que o processo de aprendizagem da língua de sinais pela criança surda é equivalente ao aprendizado da língua oral pela criança ouvinte. A diferença entre eles obviamente é marcada pela diferença inerente entre essas línguas, assim como há diferenças no aprendizado de uma criança inglesa, em contato somente com o inglês, e uma criança brasileira, em contato somente com o português. Por fim, para além dessas diferenças incontornáveis, não devemos esquecer que a língua de sinais e a língua oral não possuem diferenças em termos hierárquicos, como se uma fosse mais difícil e complexa de aprender que outra. Aprender a língua de sinais é um direito da criança surda e garantir que ela tenha essa oportunidade de maneira adequada é um dever de uma sociedade que visa a igualdade e a justiça.

REFERÊNCIAS

ALVES, Elizabete Gonçalves; SORIANO, Silvana Frasseto. Libras e o desenvolvimento de pessoas surdas. Aletheia, Canoas, v. 46, p. 211-221, jan./abr. 2015.

PIZZIO, Aline L. ; QUADROS, Ronice Müller de. Aquisição da Língua de Sinais. Florianópolis: CCE/UFSC, 2011. v. 1.

FARIAS, Jociane Vieira de. O processo de aquisição e desenvolvimento da língua falada e da língua de sinais na criança. 9 de maio de 2022. Instagram: @sopa_lab. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CdVsMEcsdgQ. Acesso em: 6 dez. 2022.

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