DE FÉRIAS COM O PET | Cinco minisséries para você assistir em até um dia

15/07/2023 06:42

Por Laiara Serafim

Letras Português

Bolsista PET-Letras

 

O fim do semestre parece o momento perfeito para finalmente aproveitar  todos os atrativos da ilha. No entanto, juntamente com a temporada de férias, chegou também a temporada de chuva. Assim, a nossa única solução parece ser nos enterrar nos livros que estão empoeirando na estante desde que os compramos, há meses atrás –  mesmo depois de ter dito que nunca mais compraríamos outro livro antes de ler todos que já temos, ou reassistir aquela saga de filmes que já vimos um milhão de vezes e sabemos as falas de cor ou então gastar horas nos sites de streaming procurando uma nova série para assistir, mesmo que no fim a gente acabe revendo aquela mesma série antiga de infinitas temporadas só porque temos medo de começar algo novo.

Acredite, eu sei pelo que você está passando!

E é por isso que hoje eu vim aqui recomendar uma lista de minisséries para você assistir rapidinho (com um bom tempo livre, pipoca e uma caneca de chocolate quente, você consegue terminar tudo em um dia).

Imagine o seguinte cenário: uma cidade pequena, nada demais acontece ali, todos os moradores se conhecem e vivem suas vidas simples. Até que algo surpreendente acontece e de repente tudo começa a mudar. Segredos escondidos no passado vêm à tona e os simples moradores já não parecem mais tão inocentes assim. Agora, qualquer um pode ser o culpado.

Eu sei, é um cenário bem clichê, mas ainda assim, bem viciante. E é por isso que irei te recomendar cinco minisséries que podem se encaixar nesse mesmo cenário, mas que irão te prender de formas diferentes, fazendo com que você não queira sair do sofá, até que elas te surpreendam com o final.

Mare of Easttown

A imagem mostra a atriz Kate Winsle interpretando Mare, uma mulher branca de meia idade, com cabelos castanhos e presos, que veste roupas de frio em tons de marrom. Ao fundo há uma parede de tijolos à vista, uma janela de vidro e uma placa onde se lê “township police”.

Começando as indicações com a melhor minissérie da lista, Mare Of Easttown está disponível na HBO e contém sete episódios que vão te prender do início ao fim. O enredo gira em torno de Mare, interpretada pela espetacular Kate Winsle, “[…] uma detetive de uma pequena cidade da Pensilvânia que deve investigar um violento assassinato local. Conforme o lado sombrio da pequena comunidade vem à luz, a vida de Mare desmorona a seu redor, e relacionamentos familiares e tragédias do passado ressurgem para definir o presente.” (HBO, 2021). Para além dos crimes misteriosos e personagens marcantes, a minissérie retrata a vida de uma avó e mãe divorciada, que perdeu o filho em uma tragédia, e agora busca no trabalho ajudar outras pessoas, enquanto esquece de si mesma e esconde seus verdadeiros problemas. Admito para vocês que, se eu pudesse, apagaria essa minissérie da memória só para me apaixonar novamente pela Mare.

Behind her eyes

A imagem mostra os atores Tom Bateman e Eve Hewson, interpretando David e Adele. Adele é uma mulher branca, de cabelos curtos e pretos, vestindo uma camisa branca e um avental de cozinha, enquanto olha de canto. David está atrás dela, um homem de cabelos escuros e barba feita. Ele veste uma camisa social e um paletó, enquanto olha para Adele a sua frente. Ao fundo, vemos os armários de uma cozinha branca.

Por trás de seus olhos, a segunda minissérie da nossa lista, está disponível na Netflix e conta com apenas seis episódios, mas que irão te deixar tão maluco quanto os próprios personagens. Nesse cenário clichê, Louise, uma secretária, se envolve com um homem, mas, no dia seguinte, descobre que ele é o seu novo chefe. E pior: ele é casado. Louise acaba se envolvendo numa teia de mentiras e segredos de um casal com um passado misterioso e sombrio.

Deixo um desafio a você que aqui me lê: se conseguir descobrir o plot twist  final, por favor, me escreva!

 Acho que a única reação possível para esse final é “O que raios eu acabei de assistir?”. Ainda assim, vale muito a pena.

Echos

A imagem mostra Michelle Monaghan interpretando as gêmeas Leni e Gina. Ela é uma mulher branca de cabelos longos e castanhos. Ela olha para frente com um sorriso discreto no rosto. Ao fundo vemos alguns pilares brancos e grandes janelas que dão vista para algumas árvores.

A  Netflix vem entregando em minisséries de suspense. Em Echos, Michelle Monaghan interpreta Leni e Gina, gêmeas idênticas que desde a infância trocam secretamente de lugar durante anos, até que todos os seus segredos e vida dupla começam a desmoronar quando uma delas desaparece. A minissérie tem sete episódios e, ainda que não entregue um grande plot twist no final, entrega o que promete. Afinal, quem não gosta de acompanhar os dramas da irmã boazinha que sofre versus a irmã malvada que não tem atenção?

A desordem que ficou

A imagem mostra os atores Inma Cuesta e Arón Piper, interpretando Raquel e Iago. Raquel é uma mulher branca, de cabelos longos e castanho claro. Ela veste uma blusa de listras azul e preta e um casaco bege por cima. Iago é um homem branco, de cabelo raspado. Ele veste uma jaqueta marrom, usa brincos, uma corrente no pescoço e carrega uma mochila nas costas. Raquel e Iago estão andando lado a lado no corredor de uma escola, enquanto conversam. Ao fundo, vemos alguns outros alunos da escola.

Aos meus colegas de Letras que aqui me lêem, deixo aqui uma recomendação especial, ou não. Afinal, a minissérie espanhola A desordem que ficou, irá acompanhar a vida de duas professoras de literatura em duas linhas do tempo diferentes. A primeira delas, Viruca, está morta; a segunda, Raquel ,é contratada para substituir a sua vaga. Ao chegar na pequena cidade, Raquel é atormentada pelos mistérios que cercam a morte da antiga professora e os alunos da escola. A minissérie está disponível também na Netflix e conta com oito episódios.

 

Não fale com estranhos

A imagem mostra os atores Richard Armitage e Hannah John-Kamen interpretando Adam e “a estranha”. Adam é um homem branco de cabelos castanhos e barba. Ele veste uma blusa bordô e uma jaqueta preta. Ao seu lado direito está “a estranha”, uma mulher de cabelos longos e castanhos com mechas loiras. Ela veste uma jaqueta verde e um boné preto. Eles parecem conversar discretamente. Ao fundo, podemos ver a porta de algum estabelecimento.

 

Estrelada por Richard Armitage, a última minissérie da nossa lista está disponível na Netflix e possui oito episódios viciantes. Não fale com estranhos é baseada na no livro de  Harlan Coben, The Stranger, e acompanha uma uma família que aparenta ter a vida perfeita, em uma pequena comunidade na Inglaterra. Porém, tudo começa a desmoronar quando uma Estranha aborda Adam para contar um segredo surpreendente sobre sua esposa. Quando confrontada, a mulher de Adam desaparece sem deixar vestígios. O grande quebra-cabeça é construído peça por peça a cada episódio e o final nos revela que, talvez, nada seja o que parece.

 

REFERÊNCIAS

HBO. Max. Mare of Easttown. Disponível em: https://www.hbomax.com/br/pt/series/urn:hbo:series:GYCiC1Q8picLCfAEAAAAC. Acesso em: 12 jul. 2023.

 

Uma reflexão sobre buscas, consciência, falta e arte

09/07/2023 09:17

 

Por Débora Klug
Letras-Português
Bolsista PET-Letras

As reflexões a seguir partem de um episódio intitulado “Zima Blue”, da série da Netflix “Love, Death and Robots”, e também de um conto de mesmo nome, escrito por Alastair Reynolds, um autor de ficção científica. O texto terá spoilers!

Dentro de um futuro em que a humanidade está super avançada tecnologicamente, já colonizando outros planetas, o personagem Zima é um artista conhecido em todo o sistema solar por fazer painéis gigantescos emblemáticos, pois eles são compostos apenas por uma cor de azul sólida, o Azul Zima. O que as pessoas sabem é que Zima é um humano que sofreu modificações biológicas e cibernéticas radiais durante muitos séculos, sendo assim, ele não precisa mais respirar oxigênio, consegue tolerar os ambientes mais extremos de frio e calor, seus sentidos foram ampliados em níveis sobre humanos, ele se tornou quase um deus. Mas um deus insatisfeito.

Zima começou sendo um retratista, pintando formas humanas, mas ele procurava um significado maior. Então, passou a olhar para o cosmos em si. Viajou por diversos planetas, comungou com diversos lugares do universo, em busca de algo, uma verdade, algum sentido. Mas ele compreendeu que o cosmos já tinha uma própria verdade em si mesmo, algo que ele jamais poderia compreender ou comunicar. Esse processo é notado em sua trajetória artística. Zima começou a pintar retratos de pessoas, depois passou a pintar painéis, com representações grandiosas de planetas, galáxias, nebulosas e eventos astronômicos, com dimensões físicas cada vez maiores. Suas obras chamam ainda mais atenção do público quando ele passa a colocar, no centro de cada quadro, uma pequena forma geométrica com um tom de azul específico, e sempre igual, o Azul Zima. A cor e a forma foram crescendo até seus painéis deixarem de representar eventos do cosmos, e se tornarem apenas isso: um painel enorme com um tom de azul. Zima fazia sucesso, pelas suas obras emblemáticas, e também por não dar explicações sobre elas. Ele ficou mais de cem anos sem falar com a imprensa.

Mas ele irá revelar sua última obra ao mundo. Antes disso chama uma jornalista para conversar com ele.

Zima esclarece sua história: ele foi a criação de uma cientista interessada em robótica prática. Essa cientista fazia robôs para executar as mais diversas tarefas domésticas, e ele, Zima, foi a máquina feita para limpar a piscina da casa dela. A cientista se interessou pelo robô, mas não estava satisfeita com o seu trabalho, então foi aperfeiçoando-o. Deu-lhe um sistema de visão de todas as cores e também um cérebro que permitia tomar decisões e reinventar as melhores técnicas para limpar a piscina, processar todos os dados visuais à sua volta. A máquina passou a ser uma plataforma de testes para equipamentos e programas, e nesses processos começou a ser mais consciente do que a cercava. A cientista morreu, e a máquina passou por vários donos, sofreu as mais diversas modificações, e se tornou cada vez mais viva. Cada vez mais aquilo que conheciam como o artista Zima.

A última obra de Zima era aquela piscina, que ele mandou desenterrar de onde estava, há tanto tempo. Os azulejos da piscina eram do famoso tom, o Azul Zima. Essa cor, a  primeira coisa que a máquina viu, a primeira consciência que ela teve. Era o seu primeiro mundo, tudo o que conhecia e tudo o que precisava saber.

Na apresentação da última obra, Zima imerge na piscina e lentamente desliga as funções superiores do seu cérebro, se desfazendo, deixando apenas o suficiente para apreciar o que o cercava, desmontando todo o seu corpo, toda a tecnologia que o compunha, para então restar apenas a sua primeira versão, e obter um prazer simples na execução de uma única tarefa: limpar os azulejos azuis. Aquilo que era quase um deus decide conscientemente se desfazer por completo. A sua busca pela verdade assim termina. Ele se encontra em sua forma mais primordial e mais simples.

Poderia ser só mais uma história de ficção científica que passa despercebida em um momento de lazer. Mas ela me trouxe reflexões sobre as coisas que buscamos na vida, sobre como podemos nos perder em procuras grandiosas, atrás de um aperfeiçoamento inalcançável, de um sentido além, fora dos nossos horizontes.

O arco de Zima começou simples, mas aos poucos se complexificou, se tornou uma epopeia cosmológica, sempre em busca de algo que não estava lá, atrás de uma falta primordial, que apareceu aos poucos em sua arte, através de uma abstração de forma e cor, que gradativamente foi tomando conta de seus quadros. Nada completava sua falta, nenhuma das representações surpreendentes e imponentes do universo que ele percorreu em busca de respostas. O que ele acessou de sua falta foi, inicialmente, uma pequena forma azul, sem sentido grandioso e complexo, apenas geometria azul, que se espalhou e se tornou famosa, em painéis gigantescos inteiramente compostos de Azul Zima. Sem sentido representacional, mas esplêndido em tamanho e forma física. E então, o arco terminou em um retorno ao mais primordial, ao mais simples possível, no maior desmanche de si mesmo que Zima poderia acessar. Ele se desfaz do seu eu, dos conhecimentos e consciências que construiu sobre o universo, e decide encerrar sua busca. Sua paz reside na simplicidade mais primitiva da sua existência.

Conversando com amigos, principalmente graduandos, percebi que em meio à rotina conturbada, cheia de exigências, cheia de angústias e anseios, dentro da tentativa de construir uma vida acadêmica, grande parte de nós acaba se perdendo em quem quer ser e o que importa. As auto-cobranças são enormes, os lugares que se almeja alcançar são difíceis e por vezes inalcançáveis. Muitos se perdem no personagem acadêmico e caem em uma arrogância intelectual que tenta capturar toda uma verdade do mundo, mas não permite olhar para o que está mais perto, para o mais simples do cotidiano.

A história de Zima mostra que nossa consciência sobre nossa falta (aquela inerente a todos nós, irremediável por sua própria natureza) pode nos fazer buscar completude em lugares grandiosos, em consciências complexas e elevadas. Mas, talvez, a melhor maneira de lidar verdadeiramente com a falta, encará-la de fato, seja desmontar o que achamos saber sobre nós e o mundo, e olhar para aquilo que não tem representação, aquela forma abstrata e azul inseparável do que somos.

Esse texto não tem conclusões grandiosas, ele terminará no mais simples possível.

A única coisa que parece fazer sentido é parar e respirar.

 

Fonte: imagem da internet

Descrição da imagem: A esquerda tem um planeta que parece o planeta Terra e sua Lua. Por toda a imagem tem pequenas estrelas e formações nebulosas em laranja e rosa, que fazem o fundo. Sobreposto à cena, centralizado na imagem, tem um quadrado azul pequeno.  

A experiência de uma intérprete mirim

26/06/2023 17:31

Por Samanta Schirlei Pacheco

Letras – Libras

Estagiária de Acessibilidade

 

Você conhece o termo CODA? O termo original vem do inglês e é uma abreviação para Child of Deaf Adults. Este termo é usado para representar filho(s) ouvinte(s) de pai, mãe ou ambos, surdos  (CODA, 2013).

 

Descrição da imagem: foto com cor envelhecida. Ao fundo, aparência de uma paisagem do mar encontrando com o céu, em tons de verde. Do meio para cima, as letras C O D A em branco. Em frente a cada letra, encontra-se uma mão realizando a respectiva letra no alfabeto manual em Libras.

 

Nascida de uma família em que a mãe é surda, o pai, irmão e a irmã caçula ouvintes (sim sou a filha do meio), tive contato com a língua de sinais desde muito nova. Segundo relatos de uma tia próxima a mim, desenvolvi a minha sinalização antes da fala em português. Quando meus familiares tinham dificuldade para se comunicar com a minha mãe, eu era chamada para auxiliar na comunicação, mesmo não conhecendo profundamente a língua. Com isso, minha família passou a ter uma dependência maior da minha presença para se fazer entender quando estão conversando. Para eles, é mais difícil passar a mensagem à minha mãe do que compreender o que ela diz, porque ela é surda oralizada e, além disso, usa gestos e mímica para melhor compreensão deles.

 Lembro-me de que quando era criança, acompanhava minha mãe desde reuniões até apresentações em datas comemorativas na minha escola, como por exemplo o dia das mães, páscoa, natal, etc, para que ela pudesse sempre participar. Conforme fui crescendo, continuei a acompanhá-la em outros ambientes como: lojas, para que ela pudesse se comunicar com os vendedores, tirar dúvidas ou encontrar itens que ela estava precisando; acompanhava em consultas médicas, para que não houvesse desentendimento e compreendesse claramente o diagnóstico e as instruções do médico; acompanhava em bancos, para fazer a prova de vida, fazer saques, tirar dúvidas sobre cartões e afins. Em suma, auxiliava ela na maioria dos lugares, pois além de haver barreiras de comunicação, ela não foi alfabetizada, isso acontece com muitos surdos e infelizmente isso gera um grande impacto na vida deles. Continuo acompanhando-a até os dias de hoje, mas com menos frequência. Você deve estar se perguntando o porquê de apenas eu realizar a interpretação nos lugares para ela e com a família. Isso se dá porque somente eu desenvolvi a Libras. Os demais se utilizam de oralização e sinais caseiros, que são sinais criados e convencionados por um(a) surdo(a) e seus familiares como principal meio de comunicação dentro do seu lar.

Sempre acreditei que eu não poderia ficar longe dela e começar a construir minha vida. Tinha receio de que a sociedade não estaria preparada para recebê-la sem a minha presença – bom, ainda não está! Quando ingressei na UFSC, eu saí da casa dos meus pais, e com isso, senti que eu estava cometendo um erro em deixá-la ‘’sozinha’’. Por um tempo, me senti culpada, preocupada e tentava imaginar se mesmo de longe eu conseguiria prestar ajuda e apoio a ela. Foi difícil, mas com o tempo fui entendendo que além de CODA, eu também era um ser, independente da surdez da minha mãe.

Poucas pessoas sabem que para ser intérprete é preciso ter uma formação e não apenas saber a Libras, visto que no processo de comunicação existe uma certa facilidade em construir diálogos, já que quando não conhecemos tal sinal ou termo, podemos simplesmente perguntar ao surdo(a) e assim estabelecer uma troca de conhecimentos. Isso não acontece no processo de tradução e interpretação, por haver a necessidade de conhecer profundamente ambas as línguas, e ter um conhecimento mais amplo sobre a comunidade surda,  desenvolvendo um raciocínio mais rápido e aplicando as técnicas e estratégias de tradução. Além desses exemplos citados, é extremamente importante ter a proficiência na Libras. Conforme a Lei Nº 12.319, de 1 de setembro de 2010, a qual regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras, existem muitos requisitos para se tornar esse profissional e então poder atuar na área que mais se identificar (BRASIL, 2010).

Portanto, trazendo essa bagagem que carrego, associada à falta de intérpretes de Libras em vários espaços, principalmente na área da saúde, decidi seguir esse ramo e me tornar uma profissional. Esse percurso exige muito esforço, dedicação e interesse pela língua e pela comunidade surda. Essa longa jornada faz com que existam tão poucos intérpretes de Libras atualmente. Eu desejo muito que futuramente a Libras finalmente se torne a segunda língua oficial do Brasil e que seja implantada nas escolas desde o ensino infantil assim como a língua inglesa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 12.319, de 1 de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Brasília, DF: Palácio do Planalto, 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12319.htm. Acesso em: 23 jun. 2023.

CODA. Cultura surda. 2013. Disponível em: https://culturasurda.net/2013/02/01/coda/. 2023. Acesso em: 26 jun. 2023.

Meus dias no Pet-Letras…

21/06/2023 16:14

Por Vitória Cristina Amancio

Voluntária no Pet-Letras

Letras-Libras

Meus dias no Pet-Letras…

Foram incríveis. Desafiadores.

Acho que posso dizer que foram um período de muita experiência e aprendizado.

 

Imagem com integrantes do Pet-Letras ao lado de uma mesa com bolo e salgadinhos.

 

Bom, acho que estou pulando algumas coisas. Primeiro, creio que deva me apresentar: Olá, eu sou a Vitória, essa menina com a camiseta verde do Pet na foto. Isso, essa perto dos salgadinhos (eram uma delícia, caso queiram saber). Sou graduanda do curso de Letras-Libras e entrei no Pet-Letras em 2022. Sim, ano passado. E de lá pra cá, muita coisa aconteceu.

Eu entrei como estagiária da acessibilidade para atuar como intérprete de Libras-português. Inicialmente, eu tinha muita dificuldade em interpretar para o português, mas muitas de minhas práticas deste estágio fizeram com que eu hoje eu me reconheça como intérprete não só de Libras, mas de português também.

É, meus dias aqui foram desafiadores. Principalmente no início. E logo nos primeiros meses de estágio, um dos bolsistas desenvolve a grande ideia de iniciar um slam do Pet.

Slam. Sim. Competições de poesia falada. E faladas suuuuper rápido.

E é claro que seria uma de minhas tarefas interpretá-lo.

 

Eu tentei estudar todos os textos. Mas eram tão complexos, tantas metáforas! O dia do evento… não vou mentir: foi trágico. Mas após algumas semanas, eu estava animada para o próximo. E assim descobri um dos contextos de interpretação em que mais gostava de atuar.

 

Imagem em preto e branco registrando a primeira edição do Slam Estrela D’alva com o apresentador e a intérprete.

 

Para quem tremia antes de interpretar um evento como esse, eu acabei querendo pesquisar na área. E assim desenvolvi a tradução comentada de uma poesia, também conhecida como meu TCC – o qual eu vou defender logo, então me desejem boa sorte.

Outra de minhas atividades era a interpretação semanal da formação para professores. Sim, caso você não saiba, os professores de idiomas do Pet-Letras são voluntários e havia formações ofertadas pelo programa. Foi uma experiência muito bacana, aprendi muito sobre o ensino de línguas enquanto interpretava.

 

Na imagem, integrantes do Pet-Letras e professores voluntários sorrindo para foto em uma sala de aula da formação de professores.

Em uma atividade em que eu não era intérprete (quer dizer, não na maioria das vezes). Eu era monitora do Pet-Idiomas em uma das turmas de Libras iniciante, e ficava admirada em poder acompanhar a aprendizagem dos alunos. Eram inúmeras as vezes em que eles faziam perguntas para mim e ali pude exercitar uma de minhas experiências como intérprete: explicar que meu papel naquele espaço era justamente intermediar aquele diálogo; então, encorajava os alunos para que eles mesmos dirigissem suas perguntas à professora surda.

E minha atividade favorita: interpretar a professora para o português-oral quando alguma informação importante era passada, ou nas primeiras aulas, quando a professora ainda não havia iniciado o conteúdo.

 

Imagem: confraternização da turma de Libras 1 com alunos, professores e monitora.

Os meus dias como estagiária encerraram.

 

Mas se você leu o cabeçalho deste texto deve ter percebido que agora eu sou voluntária. É… eu já contei que gosto muito de literatura?

 

Esse ano eu voltei como voluntária do Pet-Letras para me juntar ao Clube da Escrita literária, e pude dialogar com várias pessoas, que assim como eu, amam a literatura. Pude conversar dentro da universidade com autores catarinenses e debater sobre fantasia X ficção científica… Ou será que existe fantasia científica?

 

Imagem: oficina com Natália Zimmerman: Interseccionalidades entre a fantasia e ficção científica.

 

E teve até sessão de autógrafos com o escritor Rafael Albuquerque, depois de uma palestra incrível sobre as brasilidades na fantasia.

 

Vitoria 6

Imagem: escritor Rafael Albuquerque autografando um de seus livros: O Mago Revolucionário.

 

Nosso último encontro presencial foi com o escritor Eduardo Silveira, em uma conversa muito profunda sobre escrever com não humanos.

 

E por fim, o nosso encontro foi online, já que nossa convidada era paulista e… estava muito frio pra sair de casa de manhã cedo.

 

Os meus dias no Pet-Letras foram ótimos. De grande valor para minha experiência acadêmica e profissional, mas também para minha particular, pois aqui fiz grandes amigos.

 

Imagem: foto com antigos e atuais membros do Pet-Letras.

 

Meus dias foram. E quem sabe algum dia voltem a ser.

Mas agora me restam apenas agradecimentos aos dias que foram parte de minha jornada.

 

A história por dentro da história: Conceição Evaristo                                 

12/06/2023 14:52

Por Tay Muller

Bolsista- PET Letras

Letras Libras

Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, em uma família grande de muitos irmãos; em sua carreira acadêmica cursou letras, é professora e escritora. Escreve e descreve situações do passado, histórias dos nossos ancestrais  entrelaçando com as do nosso cotidiano. A essa perspectiva ela dá o nome de escrevivência.

Segundo a autora, a ideia de escrevivência passa pelo individual e pelo coletivo. A forma como o corpo negro foi introduzido na sociedade e a forma pela qual eram e são tratados são a base dessa forma de escrita. Sua diferença é  que ela apresenta um relato interno dessa experiência, do cotidiano, dos sentimentos, das posições sociais, da sensação particular e coletiva que o corpo negro partilha em qualquer espaço que esteja. Esses fatores refletem-se  na construção literária, como explica a autora em um vídeo na plataforma digital do Youtube, ao canal “Leituras brasileiras” publicado em 6  de fevereiro de 2020.

Descrição da imagem: foto de Conceição Evaristo, uma mulher Preta, de cabelo brancos encaracolados. Ela está sentada numa cadeira de madeira, traja uma roupa verde  e um colar branco. Atrás dela, há uma estante de madeira com livros.

Nesse vídeo, Evaristo fala que se percebia uma crítica literária que não acreditava que a experiência negra poderia ser considerada arte; entretanto, autores não negros, nesse mesmo período, como: Os tambores de São Luiz, de Josué Montello, e as obras de Jorge Amado, que se baseiam na cultura Afrodiaspórica essa escrita era considerada a arte de falar de Negro – desde que o artista não fosse um “preto”(nós, pessoas Pretas,  fomos privadas contar a própria história).

Evaristo cita Leda Martins e sua obra Um defeito de cor, uma história sobre Luiza Mahin, para explicar o papel da literatura neste “vácuo” – no qual  a história  não consegue contar quais foram os caminhos do povo Negro. Ela conta que a partir de Leda entende que o passado ainda não terminou, então “trabalhar o passado é reivindicar uma posição de dignidade no presente”;  a literatura nos ajuda, assim,  a afirmar nossa identidade Afro-brasileira.

Para apresentar a poética da realidade, a autora diz que precisou de muito exercício, escolher as palavras, decifrar sentimentos. Ao fazer uma paralelo com Miriam Alves, também escritora, ressalta de que lugar vem esta escrita: se eu descrevo uma cena onde uma há uma empregada doméstica, enquanto mulher negra escrevo de dentro do quarto de empregada olhando pra patroa, reiterando que é uma experiência individual, e é histórica.  Para exemplificar seu tipo de escrita, ela cita alguns de seus livros: Ponciá Vivencio, um livro que retoma o processo da escravização, mas que se funde com o presente, uma busca pela ancestralidade do povo africano. Este livro, segundo Evaristo, dialoga com o corpo Preto de crianças, adultos, e os mais velhos; Becos da memória, que também apresenta o imbricamento do passado escravista com o cotidiano; fala em seguida de Olhos d’água, um livro de contos permeado por essa temática.

Ela descreve seu processo de escrita: em alguns momentos, precisou parar, por vezes deixar o livro de lado e depois retomar, pois o partilhar do sentimento de dor, segundo Evaristo, também dói no corpo de quem escreve e por isso acaba levando mais tempo durante a criação. O último livro que a autora apresenta  é uma resposta a indagação de uma outra pesquisadora, Edileuza Penha de Souza, que a questiona sobre a alegria desse povo e se ela existe; como resposta, nasce o livro “Insubmissas lágrimas de mulheres”, que apresenta mulheres falando de sua alegria já fora da dor.

Para finalizar, Conceição Evaristo  nos explica  seu desejo atual, que é de criar diálogos com textos já conhecidos e entregar um contra-discurso ou um contra-poema como em Carolina Maria de Jesus com Clarice Lispector ou em Recordar é preciso. Para finalizar, ela explica que é o ato de escrever em sua vida,  descrevendo como um exercício, como maneira de não adoecer, como possibilidade de criação. A literatura é a forma que temos de nos agarrar à vida para vencer a dor e escrever é uma forma de sangrar.

 

 

 

As facetas da estrela em Clarice Lispector e Suzana Amaral

28/05/2023 13:59

Por Sofia Quarezemin

Bolsista PET-Letras

Letras Português

Clarice Lispector publica em 1977 “A hora da estrela”, um romance sobre Macabéa, a nordestina, miserável em todos os sentidos, que migra para o Rio de Janeiro; e seu autor, Rodrigo S.M, um homem indistinto, que não faz parte de nenhum grupo social, que se diverte e lacera no árduo papel de narrador.

Em 1985, Suzana Amaral traduz o romance para o cinema deixando de fora o escritor da personagem, e nisso se impõe uma questão: como se dão as dinâmicas da narração em diferentes modalidades, ou seja, na literatura e no cinema? É previsível que a transposição do texto em filme implica em mudanças formais e que a ausência da narração de S.M gera a necessidade de se empregar recursos que fogem à proposta de Clarice. Em “A hora da Estrela”, de Suzana Amaral, a narração é objeto não do autor, aqui ausente, mas sim de agentes como as personagens coadjuvantes e a direção cinematográfica, ou seja, o foco narrativo e a linha temporal da trama.

Descrição da imagem: uma mulher de meia idade, Macabéa, está sentada num banco de praça feito de concreto. Ela usa uma camisa com fundo branco e estampada com pequenas flores azuis. Veste também uma saia e segura uma flor vermelha. Seu cabelo é preto, está penteado. Atrás dela, há  um jardim de um verde escuro. A imagem é um frame do filme de Suzana Amaral.

A diferença que impera entre as duas modalidades narrativas é a necessidade de representação mimética na produção de Suzana Amaral, tão negada por Clarice Lispector, que de acordo com Colm Tóibín (2017), escreve de forma pouco conveniente aos moldes narrativos tradicionais e cria uma narração pouco literária, mas densamente consciente. “É difícil decidir por quem lamentar mais, se por Macabéa ou pelo narrador, se pela inocente vítima da vida ou pela altamente cônscia vítima de sua própria derrota” (p. 169).

No romance, a autora se curva sobre uma experimentação linguística que só é possível por meio da presença de Rodrigo S.M, narrador que sofre os efeitos da própria narrativa, que dialoga e apresenta as problemáticas do que é escrever uma personagem a quem ama e odeia. Além de tratar sobre as complicações da escrita e das implicações dela sobre o escritor, discorre sobre o cansaço, a angústia, a ansiedade e a necessidade de escrever.

Noemi Jaffe, na palestra “Clarice Lispector e o Efeito do Estranhamento” (2017), conceitua estranho como aquilo que não pertence, que vem de fora, e define que algo só pode ser estranho quando comparado ao que se considera normal. O que Clarice faz, ao criar Macabéa como agente passiva da vida, é pô-la em comparação à normalidade do corpo social. Assim, a nordestina, na inércia de pouco falar, pouco querer e pouco agir, é o oposto radicalizado da concepção de ser e atuar no mundo, e assim é pela visão e julgamento do outro.

Sob essa lógica, o efeito de estranhamento na produção cinematográfica se dá pela ótica dos demais personagens e do espectador, intermediado pelo foco da câmera. Um dos artifícios empregados pela diretora é o afastamento de Macabéa da vida em sociedade: seu ciclo de convívio é restrito a seis pessoas, ela não sabe se comunicar e se coloca sempre em lugares ocos, como praças, parques, ruas e becos vazios, tendo quase mais contato com seres não humanos do que com gente: o hipopótamo do zoológico, as moscas, o gato, a Rádio Relógio, os anúncios de jornal, os parafusos e o metrô. Ainda, a descrição das características de Macabéa é resultado do juízo emitido pelas poucas personagens que com ela convivem. O que no romance é exposto ao leitor por Rodrigo S.M., no filme é papel das demais personagens, como Maria das Dores e Maria do Carmo (16:10), “Eu acho ela meio esquisita. […] ela tem uma cara de sonsa. O cheiro dela é que é meio…(expressão de nojo)”, ou Glória (19:45), “Também, com essa cara… Você é muito desbotada, Macabéa.” e as demais falas que a subjugam como inadequada. Para explicitar a falta como pilar fundacional da protagonista, cabe aos demais personagens interagirem com a sua miséria de sorte, de beleza, de palavras, de modos, de dinheiro e de futuro. O que falta à Macabéa são meios de viver, e o espectador obtém consciência disso sem a intermediação de Rodrigo S.M, por meio do movimento de Suzana Amaral, que se vale das personagens coadjuvantes para caracterizar a protagonista, ancorando-se na constatação de Rodrigo S.M.: “Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico – e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto.” (LISPECTOR, 2017, p.91)

Há, ainda, outro artifício da narração utilizado na construção da visão do espectador sobre a personagem narrada: as articulações do foco narrativo. Ao longo da maior parte do filme, a câmera se oculta, quase como uma intrusa que fica ao canto da sala e somente capta os fatos, como se proporcionasse ao espectador assistir à vida da nordestina em tempo real. Esse é o efeito do estranhamento, que se forma com a oposição e o olhar alheio, em terceira pessoa, posicionando o observador como estão posicionadas as personagens que interagem com Macabéa no enredo. Por outro lado, em alguns momentos a câmera assume a visão de Macabéa ou se coloca muito próxima a ela, quase incorporando a sua visão, provocando a identificação do espectador. Por meio dessa articulação, pode-se sentir como Macabéa: um nada, um vazio e uma dor que dói em tudo e constantemente, o que se justifica nas palavras do pungente narrador: “a vida é um soco no estômago” (LISPECTOR, 2017, p.107). Por meio dos movimentos do foco narrativo, sente-se a dor de Macabéa enquanto se observa e experencia a sua vida.

REFERÊNCIAS

A HORA da Estrela. Direção de Suzana Amaral. Brasil: Raiz Produções Cinematográficas, 1985. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MBxAMJvSip0. Acesso em: 16 set. 2021.

JAFFE, Noemi. Palestra proferida no Café Filosófico CPFL, São Paulo (São Paulo), 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WV7vq5g_DQM . Acesso em: 14 set. 2021.

LISPECTOR, C. A Hora da estrela. Versão com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

TÓIBÍN, C. Uma paixão pelo vazio. In: LISPECTOR, C. A hora da estrela. Versão com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p.165-170.

 

Abordagens Teóricas dos Estudos de Tradução

23/05/2023 07:50

Por Bruno dos Santos Camargo
Letras – Libras
Estagiário de Acessibilidade

O ser humano é tradutor por natureza1. Desde os primórdios da humanidade e da vida em sociedade os indivíduos estão em um constante processo tradutório. Embora não seja possível sabermos quem foi o primeiro indivíduo a traduzir, quais escolhas tradutórias tomou ou a metodologia aplicada durante o processo, visto que é uma atividade intrínseca à vida social e humana, alguns vestígios históricos nos ajudam a compreender, ainda que superficialmente, a magnitude desta área do conhecimento. A Pedra de Rosetta, famoso achado histórico egípcio, é um desses documentos que demonstram que as civilizações remotas, há mais de dois mil anos atrás, já desempenhavam a tradução, antes mesmo da concepção da ciência que hoje intitulamos de traductologia. A partir desta suposta genealogia a tradução permeou países, línguas e autores no mundo inteiro que buscaram conceituar e compreender o que é “tradução”. Destes diferentes entendimentos e perspectivas originaram-se abordagens teóricas da tradução e formas de organização deste conhecimento.

Neste texto, meu objetivo é abordar, em síntese, algumas teorias de tradução sob a ênfase de perspectivas linguísticas, de perspectivas cognitivas, das perspectivas comunicativas e socioculturais, e, por último, as perspectivas filosóficas e hermenêuticas. Esta forma de organização sistêmica proposta por Hurtado Albir (2001) também define a existência de uma quinta ênfase temática: textual, que não será objeto deste material.

Segundo Hurtado Albir (2001, p. 126), a ênfase nas perspectivas linguísticas consiste nas conceituações do processo tradutório, e suas nuances, sob as lentes da Linguística. Em suma, os Estudos Linguísticos da Tradução baseiam-se no conceito de que o ato de traduzir consiste na transferência de significados de um código linguístico para outro4, pois “[…] para o Linguista como para o usuário comum das palavras, o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por outro signo que lhe pode ser substituído […]” (JAKOBSON, 1987, p. 42, destaques nossos). Por se tratar de uma extensa área do conhecimento, e abranger muitos tópicos, também é possível observar relações entre objetos de pesquisa da Linguística e suas respectivas correntes de conceituação sobre tradução. Embora todos tivessem a mesma ótica linguista, de descrever e comparar, seus autores divergiam quanto aos modelos aplicados. Dentre os apresentados por Hurtado Albir, aqui citam-se três proposições: uma que dá ênfase à semântica no processo tradutório, como defendido por Nida (1975) e Durisin (1972), na década de 70; uma comparativa, da década seguinte, proposta por Guillemin-Flescher (1981) e Chuquet e Paillard (1989); a terceira, que classifica os Estudo da Tradução por diferentes modos de análise linguística, como apontam Catford (1965) e Garnier (1985).

Contudo a tarefa de traduzir é, por si só, uma atividade complexa e que requer diversas competências e capacidades mentais do tradutor. Por isso, diversos autores e pesquisadores passaram a investigar os processos mentais ocorridos no momento da tradução, concebendo assim os Estudos Cognitivos da Tradução. Uma das mais célebres teorias desta perspectiva é conhecida como Teoria Interpretativa da Tradução, ou Teoria dos Sentidos, proposta por Danica Seleskovitch e em seguida por Marianne Lederer. Na perspectiva das autoras, “[…] todo discurso, independente da língua, sempre é entendido como uma função não só do valor inerente a cada palavra dita, mas, também, do conhecimento associado a cada palavra, que denominamos complementos cognitivos” (SELESKOVITCH; LEDERER, 1989, p. 22, destaques das autoras); portanto, a figura do tradutor, seu conhecimento de mundo e seus processos cognitivos tornam-se imprescindíveis para a tradução.

Outra teoria da abordagem cognitiva é a Teoria do Modelo dos Esforços na Interpretação, proposta por Daniel Gile, que explica os esforços aplicados pelo profissional no momento de uma interpretação/tradução. Esta teoria indica a existência de três esforços, e o de coordenação, conhecidos como: esforço de audição e análise, esforço de produção e esforço da memória de curto prazo. Além disso, afirma que o processo tradutório requer gasto de energia mental que vai se esgotando mediante os esforços apresentados e uma vez que o limite foi alcançado a performance deteriora-se  (GILE apud FREIRE, 2000, p.160).

As teorias que, por sua vez, enfatizam a função comunicativa da tradução, levando em consideração os aspectos culturais, contextos e a forma de compreensão do material pelo indivíduo alvo, são classificadas como Estudos Comunicativos e Socioculturais da Tradução. Diversos modelos e linhas de pensamento surgem dentro desta abordagem: autores de ênfase no sociocultural, como Nida e Tabet (1969); teorias funcionalistas da tradução, como defendidas por Reiss e Vermeer (1984); a perspectiva de que a tradução consiste numa equação cultural que deve considerar a cultura do meio, como por Hewson e Martin (1991), dentre outras linhas de pensamento que se enquadram sob o guarda-chuva dos Estudos Comunicativos e Socioculturais (ALBIR, 2001, p.128).

Por fim, os Estudos Filosóficos e Hermenêuticos de Tradução consistem nas percepções de tradução a partir de filosofias e reflexões pós-estruturalistas, de forma a desconstruir padrões, normas e paradigmas que tentam reduzir a tradução a algo simplório e limitado. Todas as demais perspectivas e abordagens teóricas tentam explicar e conceituar o significado de “tradução” utilizando outras áreas do conhecimento, técnicas e rótulos racionais que tendem a limitar a tradução e apresentar uma perspectiva reducionista, motivo pelo qual este movimento desconstrutivista – um dos modelos pós-estruturalistas –  se faz necessário. Sobre Desconstrutivismo, Arrojo (2003) explica: “[…] não é um método, nem uma técnica e nem tampouco um modelo de crítica que possa ser sistematizado e regularmente aplicado a teorias, textos ou conceitos” (ARROJO, 2003, p. 9). Uma das principais correntes teóricas deste movimento é a que surge a partir das reflexões derridiana da desconstrução; porém, além desta, encontram-se autores que partem de outras abordagens: de uma teoria hermenêutica da tradução, como Ortega Arjonilla (1996); de Teorias Canibalistas de Tradução, conforme defendido por De Campos (1972) e Gavronsky (1977); da Teoria da Ética Transversal da Tradução, de Vidal Claramonte (1998), entre outros.

 

 

Nota 1: Considero a reflexão de Octavio Paz (apud Arrojo, 1986, p.11) , “[…] a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não verbal e, em segundo, porque todo signo e toda frase é uma tradução de outro signo e de outra frase”.

 

REFERÊNCIAS

ALBIR, Amparo Hurtado. Traducción y traductología: Introducción a la traductología. Madrid: Cátedra, 2001.

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986.

ARROJO, Rosemary. O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003.

BASSNETT, Susan. Estudos de Tradução: fundamentos de uma disciplina. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

BORDENAVE, Maria Candida. Fundamentos de uma metodologia de ensino da tradução. Tradução em Revista. [Rio de Janeiro], v. 2012, n. 13, p. 18-22, 2012.
CAMPOS, Geir. O que é tradução?. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

FREIRE, Evandro Lisboa. Teoria Interpretativa da Tradução e Teoria dos Modelos dos Esforços na Interpretação: proposições fundamentais e inter-relações. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 2, n. 22, p. 151-174,  2009.

JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikistein, São Paulo: Cultrix, p. 63-72, 1987.

LEDERER, Marianne; SELESKOVITCH, Danica. The Interpretation Process. In: A Systematic Approach to Teaching Interpretation. Paris: European Communities,  1989. p. 22-26.

LEDERER, Marianne. “The Role of Cognitive Complements in Interpreting”. In: BOWEN, David & BOWEN, Margareta (orgs.). Interpreting — Yesterday, Today, and Tomorrow. ATA Monograph Series, v. IV. Binghamton: State University of New York, p. 53-60, 1990.

SANTOS, Ana Gabriela Dutra. O conceito de tradução em artigos científicos dos Estudos da tradução e interpretação de línguas de sinais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras-Libras) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Santa Catarina, 2020.

SOUZA, José Pinheiro de. Teorias da tradução: uma visão integrada. Revista de Letras, v. 12, n. 20, p. 51-67, 1998.

 

 

Contos que exploram o terror psicológico

12/05/2023 15:51

Por Ingryd Giovanna Lima Pereira

Letras – Inglês

Bolsista PET Letras

Os contos, apesar de serem histórias curtas com personagens e ambientações limitadas, podem ser extremamente impactantes e surpreendentes. Se engana quem pensa que a brevidade dos contos interfere na capacidade de gerar impacto emocional no leitor, na verdade, ao focar a narrativa em um número restrito de personagens e em uma ambientação específica, o autor é capaz de explorar elementos com profundidade criando uma conexão forte com o leitor. 

Com certeza, um dos gêneros de contos mais fascinantes e intrigantes é o de terror. Esse tipo de narrativa é capaz de criar cenários sombrios e aterrorizantes que nos fazem mergulhar nas experiências dos personagens. Quando se trata de terror psicológico, uma das características mais marcantes é sua capacidade de manipular as emoções do público para causar desconforto mental e medo. Para isso, o gênero se diferencia do gore que utiliza a violência explícita, sangue e aspectos repugnantes para utilizar-se da criação de um ambiente de tensão e incertezas, promovendo um clima de suspense, que gera perturbações e mantém o público assustado mesmo após o desfecho da história. 

Descrição da imagem 1: Imagem em tons de preto e branco, há vários rostos de caveira enfileirados nas dimensões horizontal e vertical. 

Do medo à paranoia, passando pela insanidade e pelo colapso mental, dois contos em particular, “O Papel de Parede Amarelo” e “Um Incidente na Ponte do Riacho da Coruja”, são exemplos marcantes de como a literatura pode explorar o terror psicológico através da deterioração da sanidade mental e da confusão entre realidade e ilusão. Ao longo desses contos, é possível acompanhar a evolução do desespero, a tensão dos personagens em situações de colapso e momentos desconcertantes. As histórias são satisfatoriamente construídas para manter o leitor em um estado constante de tensão, até que o clímax final traga uma revelação surpreendente.

Descrição da imagem 2: Ao fundo da imagem vemos um papel de parede amarelo com detalhes abstratos organizados de maneira padronizada. Sobre o papel de parede tem uma sombra escura de uma mulher. 

A impactante história do conto O papel de parede amarelo retrata a degradação da saúde mental de uma mulher que luta contra a opressão, a submissão e a falta de tratamentos adequados ao seu problema mental. Escrito por Charlotte Perkins Gilman, no final do século XIX, o conto narra a história de uma família que aluga uma mansão para passar as férias. No entanto, a narradora é diagnosticada com histeria por seu marido, um respeitado médico, e é confinada em um dos quartos da mansão, sendo proibida de escrever e cuidar de seu filho ou passear pelos jardins da casa. 

Conforme o tempo passa, a protagonista começa a ter alucinações com o papel de parede amarelo do quarto, imaginando que os padrões e as manchas presentes no desenho do papel de parede formam grades que aprisionam várias mulheres que estão gritando por liberdade. Sua obsessão com o papel de parede, que faz um paralelo com seus próprios sentimentos de impotência, leva-a a perder a noção da realidade e acreditar que as mulheres estão tentando se comunicar com ela, fomentando um grande desejo em rasgar o papel de parede para libertá-las.

Este conto é uma reflexão da realidade das mulheres da época, que tinham sua saúde mental e física subestimadas e eram muitas vezes tratadas com negligência. A obra aborda de forma sensível a importância de dar voz às mulheres, além de mostrar como os homens através da medicina buscavam controlar as mulheres, julgando-as como irracionais, assim como ensina a historiadora Margareth Rago. Inspirado na própria vida da autora, que provavelmente sofria de depressão pós-parto agravada pelo tratamento de repouso absoluto prescrito por seu médico, O papel de parede amarelo é um conto atemporal que continua a promover reflexões e discussões sobre diversos problemas presentes na sociedade contemporânea. 

O conto explora o terror psicológico através da insanidade da protagonista causada pelo isolamento e privação de estímulos externos.  A partir da obsessão da personagem com o papel de parede amarelo do quarto, o conto constrói uma atmosfera de tensão e suspense que explora a linha tênue entre a realidade e a imaginação. Além disso, a narradora se sente cada vez mais impotente e incapaz de se libertar da situação em que se encontra, aumentando ainda mais a sensação de desespero e claustrofobia. 

Descrição da imagem 3: Foto em tons de preto e branco, no meio da imagem vemos uma ponte férrea, no lado direito, vemos Peyton Farquhar preparado para ser executado, ele está apoiado na metade de uma estaca de madeira que por sua vez está apoiada na ponte. Há uma corda envolvida em seus punhos e uma segunda corda envolvida em seu pescoço. Em cima da ponte há quatro soldados. 

Através de uma narrativa não linear, Um Incidente na ponte do Riacho da Coruja escrito por Ambrose Bierce em 1890, se passa durante a Guerra Civil Americana, que dividia os Estados Unidos em dois grupos: os estados do Norte (União) e os estados do Sul (Confederação). O início da história se passa em uma ponte férrea sobre o Riacho da Coruja, na qual está o fazendeiro Peyton Farquhar, simpatizante da causa da Confederação, prestes a ser executado pelos soldados da União. Após acompanharmos a preparação da execução do fazendeiro, a narrativa volta ao passado para conhecermos o personagem e entender as circunstâncias que o trouxeram até ali. Em seguida, voltamos para a ponte e acompanhamos os pensamentos aflitos do protagonista ouvindo o barulho do relógio de pulso de um dos soldados enquanto planeja uma maneira de sobreviver. 

Ao cair no riacho, o fazendeiro consegue se libertar das amarras feitas em seu pulso e pescoço; então, através de uma descrição vívida e detalhada, acompanhamos sua incessante fuga. Farquhar, com os sentidos a flor da pele, consegue ouvir nitidamente os ruídos de cada animal enquanto nada em direção à superfície, sendo perseguido pelos tiros que os soldados disparavam. Em seguida, Farquhar entra em uma floresta exuberante em direção a sua fazenda e passa o dia sentindo uma enorme fome, sede e fadiga, pensando sempre em sua esposa e família. Ao chegar em sua fazenda, é recebido calorosamente por sua esposa; mas antes que pudesse desfrutar do momento, tudo fica escuro ao barulho de um estalo em seus ouvidos de seu pescoço sendo quebrando. Tudo o que Farquhar experimentou e viveu em seus últimos momentos de vida foi apenas uma ilusão, uma fantasia criada por sua mente enquanto era estrangulado pelos soldados da União.

Novamente, o conto explora o terror psicológico através de narrativa de fuga falsa, fazendo com que o leitor acredite que os devaneios do personagem principal são reais. Essa técnica narrativa é usada  para criar uma reviravolta chocante no final do conto, deixando o leitor surpreso e perplexo. Além disso, para uma história de terror, é importante que a ambientação expresse aspectos sinistros e fúnebres. Esses detalhes já se fazem presentes no conto desde de seu início, ao citar um homem em preso a uma forca e logo após em constante agonia em uma floresta. Ao longo da história, somos levados a sentir a esperança e o desespero que Peyton Farquhar sentiu enquanto estava sendo executado; a ilusão criada pelo autor é tão vívida e real que é difícil não se sentir envolvido pela história. Isso nos faz refletir sobre a capacidade da mente humana em criar realidades alternativas diante do perigo de morte. O conto nos mostra que, em momentos extremos, nossa imaginação pode nos levar a lugares desconhecidos e transformar nossos medos em realidades alternativas. Além disso, a narrativa transmite a ideia de que, nos momentos finais de nossa vida, as pessoas e as coisas que são mais importantes para nós são aquelas que passam pelos nossos pensamentos.

Em suma, percebemos que além de causar impacto no leitor os contos através de uma narrativa focada no terror psicológico, possuem a característica marcante de gerar reviravoltas surpreendentes nas histórias. O terror psicológico é gerado através de questões filosóficas sobre vida, morte e ilusões, bem como explorando questões psicológicas sobre a saúde mental. Além disso, é possível que as histórias transmitam mensagens implícitas por meio de simbolismos e metáforas, enriquecendo a experiência de leitura e permitindo reflexões sobre questões sociais através de diferentes perspectivas. Percebemos que os contos de terror psicológicos são eficazes em transmitir emoções intensas aos leitores ao longo de uma narrativa que explora medos profundos e questões existenciais que possamos vim a enfrentar. 

Línguas indígenas no Brasil

01/05/2023 14:29

Por Laiara Serafim

Letras Português

Bolsista Pet – Letras

 

A segunda temporada da série Cidade Invisível, chegou na Netflix no mês de março e, com ela, trouxe o cenário da floresta amazônica com novas lendas do norte do país. Além das figuras folclóricas, a série trouxe um foco para os personagens indígenas da trama. Um dos aspectos presentes é a língua Tukano utilizada pelos personagens, língua franca da região do Alto Rio Negro, que foi a primeira região a oficializar outra língua além do português.

Para além das telas e, diferente do que pensa uma parcela da população, as línguas indígenas possuem uma vasta variedade no Brasil e não estão restritas a uma única região. O último censo, realizado em 2010 pelo IBGE, registrou a existência de 274 línguas indígenas no Brasil. Aqui em Santa Catarina atualmente a população indígena é composta por três povos distintos: Kaingang, Xokleng e Guarani. A língua Kaingang pertence à família jê do tronco macro-jê. A linguista Ursula Wiesemann classificou a língua dos Kaingang atuais em cinco dialetos, sendo um deles o de Santa Catarina. Os dialetos diferenciam-se em várias partes de sua estrutura, sendo as diferenças mais evidentes as fonológicas. Já no caso do povo Xokleng, na TI Ibirama (SC), fala-se o “xokleng”, um idioma próximo ao kaingang. Os Xokleng dizem entender alguma coisa de kaingang, mas não o falam. Já o povo Guarani forma o maior povo nativo em quantidade de população vivendo no Brasil. O idioma guarani pertence ao tronco linguístico tupi-guarani, de onde derivam 21 línguas. Essa é a língua indígena mais falada na América do Sul e chega a 60% do Paraguai.

Entretanto, essa vasta pluralidade linguística vem reduzindo drasticamente devido a colisão de culturas e fixação da língua portuguesa nas comunidades há mais de 500 anos. Atualmente, uma pequena parte da população indígena fala somente a própria língua dentro da comunidade, muitos falam português e a língua indígena e, ainda, a grande maioria dos jovens fala somente o português.

Isso se deve às inúmeras rupturas sociais, políticas, econômicas e culturais que têm lugar no Brasil, e à presença de escolas para indígenas com a mesma grade curricular das demais escolas públicas, que não estimulam e nem consideram as particularidades culturais e linguísticas, ainda que a Constituição Federal assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Muitos dos falantes também não conhecem a língua escrita, o que faz com que as línguas sejam pouco documentadas

Devido a isso, universidades de todo o continente têm se unido para organizar pesquisas de documentação e ensino dessas línguas. Aqui na UFSC, no Núcleo de Estudos Gramaticais, acontece o projeto (In)definitude através das línguas/(In)definiteness across languages, coordenado pela professora Roberta Pires de Oliveira, professora titular na Universidade Federal de Santa Catarina, que estuda a sintaxe-semântica do sintagma nominal em 8 línguas (6 minoritárias em vitalização). Dentre elas está o Rikbaktsa, língua também pertencente ao tronco macro-jê. Alguns aspectos que diferem a gramática do Rikbaktsa da gramática do português são a marcação do gênero do falante na terminação das palavras, como a inexistência de artigos como “o/os, a/as”. Atualmente, a pesquisa do Rikbaktsa, coordenado por Léia de Jesus da SIlva, doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela Universidade de Paris VII – Université Denis Diderot (2011), estuda a definitude na língua Rikbaktsa. Outra ação já realizada pelo projeto foi a formação de professores da própria comunidade Rikbaktsa para ensinar a língua nas escolas da comunidade. A professora Léia de Jesus tem dedicado grande parte de toda a sua pesquisa à língua Rikbaktsa. Sua dissertação de mestrado teve como tema Aspectos da fonologia e morfologia da língua Rikbáktsa e sua tese de doutorado Morphosyntaxe du rikbaktsa (Amazonie brésilienne).

Conversamos com a professora sobre a sua pesquisa com a língua e a importância de pesquisas na área:

Laiara: Léia, sua dissertação de mestrado (2005) e sua tese de doutorado (2011) são sobre a língua Rikbaktsa. Como surgiu o interesse por essa área de pesquisa?

Léia de Jesus: Pesquisas sobre povos e línguas indígenas são de grande importância tanto para estes povos, quanto para a humanidade em geral e para a ciência não indígena. Pesquisas em linguística, por exemplo, já apontaram inúmeras características próprias das línguas indígenas brasileiras que contribuíram para o avanço da linguística geral. As pesquisas desenvolvidas na UFSC têm contribuído para o avanço dos conhecimentos que temos sobre estes povos, suas línguas e culturas e também para dar visibilidade a eles e ajudar na manutenção e fortalecimento de suas línguas e culturas. Em se tratando do impacto que estes estudos têm dentro das comunidades indígenas, é inegável que têm contribuído enormemente para melhorar a educação escolar indígena e oferecer melhores condições de vida a estes povos, na medida em que muitas pesquisas resultam em projetos voltados para as escolas ou para estratégias de sustentabilidade. Além disso, um dos efeitos do avanço da educação escolar indígena é que os indígenas chegaram à Universidade, agora como pesquisadores, desenvolvendo eles mesmos pesquisas sobre seus povos, línguas e culturas.

Laiara: Sabemos que, aqui na UFSC, acontecem pesquisas sobre línguas indígenas do Brasil. Qual a importância das pesquisas na área? Qual papel a documentação e estudos sobre a língua desempenham dentro da própria comunidade?

 Léia de Jesus: Eu queria mudar o mundo. Entendia que estudar línguas indígenas era uma forma de contribuir para um mundo melhor, na medida em que as minhas pesquisas poderiam ajudar a melhorar a educação escolar indígena, consequentemente a vida destas pessoas. E eu, como não indígena, poderia auxiliá-los nesse universo intercultural em que vivem. Não sei se eu mudei o mundo, mas tenho certeza de que a vivência em campo e em sala de aula, como professora de cursos de Educação intercultural, mudaram completamente o meu mundo. À parte o lado mais romântico da história, meu primeiro contato com línguas indígenas foi nas aulas de morfologia, fazendo segmentação morfêmica. Achei incrível saber sobre uma língua sem necessariamente falá-la. Fui ser bolsista de IC voluntária em um projeto do professor Aryon Rodrigues e aqui estou, entre a morfologia, a descrição e a educação escolar indígena.

Laiara: O Brasil é um país muito diverso e possui muita riqueza linguística. Qual foi o seu principal desafio ao começar estudar uma nova língua, mas principalmente, pouco documentada? Quais desafios você encontra até hoje?

Léia de Jesus: Durante o mestrado, quando comecei a estudar Rikbaktsa, cujas últimas pesquisas datavam da década de 70, havia dois grandes desafios, o primeiro era a falta de financiamento para trabalho de campo. A universidade financiava apenas a passagem de ônibus, todo o custo do trabalho de campo, que é caro, era por nossa conta. Isso muitas vezes afetava a qualidade dos dados coletados, pois não tínhamos recursos para comprar equipamentos e nos virávamos com o que tínhamos, um gravador de fitas k7, à pilha. O segundo maior desafio era o tempo. A duração do mestrado e do doutorado para quem fazia campo dessa natureza era exatamente a mesma de estudantes que não tinham essa dinâmica. Não que o tempo destes deveria ou deva ser menor, mas deveria sim ser considerado um acréscimo, caso solicitado, para estudantes de que fazem campo. O trabalho de campo com línguas indígenas exige muito, deslocamento a lugares muitas vezes de difícil acesso, o que pode levar algumas semanas só pra se chegar em campo, a coleta, transcrição e confirmação dos dados com colaboradores, retorno de campo, e só então, análise dos dados. Sempre me pareceu que seria justo se os programas de Pós-Graduação levassem essa dinâmica em conta. Infelizmente, não me parece que as coisas tenham mudado ao longo dos anos. Mesmo com todos estes desafios, continuo vendo como um privilégio poder estudar línguas minoritárias e, principalmente, aprender tanto com estes povos.

Assim, como bem mostra a Prof. e Dr. Léia de Jesus, é imprescindível o incentivo à pesquisa na área da línguas indígenas, e o conhecimento e manutenção dos estudos que já ocorrem, devido às diversas esferas que são impactadas pela documentação, estudo e ensino das línguas indígenas de nosso país.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Juliana. Índios Guarani. 2011. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/indios-guarani/. Acesso em: 09 abr. 2023.

IBGE. Indígenas. 2013. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/. Acesso em: 09 abr. 2023.

SANTA CATARINA. Poder Judiciário. Línguas e cultura indígena em foco. 2015. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/gestao-socioambiental/linguas-e-cultura-indigena-em-foco. Acesso em: 09 abr. 2023.

TOMMASINO, Kimiye; FERNANDES, Ricardo Cid. Kaingang. 2014. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang. Acesso em: 09 abr. 2023.

WIIK, Flavio Braune. Xokleng. 2020. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xokleng. Acesso em: 09 abr. 2023.