O dispositivo sensitivo/ mágico da protagonista do conto “A menina de lá”
Por Anna Letícia de Abreu
Letras Língua Portuguesa
Voluntária – PET Letras
Mestre da palavra, Guimarães Rosa guia habilmente seus leitores por intrincados e imagéticos caminhos da linguagem, consolidando-se como um dos luminares da literatura. Sua prosa se caracteriza por uma linguagem rica, repleta de neologismos, arcaísmos e construções sintáticas complexas. Em A Menina de Lá, G. Rosa trabalha uma trama onde a magia se manifesta de uma forma sutil, através de elementos sensitivos que nascem da personagem principal, Nhinhinha. O conto explora a quebra de convenções da realidade, introduzindo elementos sobrenaturais de forma sutil e encantadora. A descrição dos personagens e cenários destaca-se como um componente essencial, revelando nuances mágicas que permeiam a trama. Rosa traz a exploração da condição humana no conto; nessa leitura, os elementos escolhidos transportam os leitores para um universo onde a fronteira entre o ordinário e o extraordinário se dissolve, onde o real e o irreal se fundem – característica presente também em outras obras emblemáticas do autor.
Descrição da imagem: a imagem é uma pintura óleo sob a tela; o fundo é composto por tons de verde, claro e escuro, com textura de folhas voando com o vento; há um balanço de corda amarrado em um único galho marrom. Nele, está uma sentada uma menina branca, com tranças laranjas, se balançando. Ela usa um vestido até o joelho, de mangas compridas na cor creme, um chapéu da mesma cor. Também usa uma meia calça laranja e botas pretas.
O dispositivo sensitivo, presente nessa obra, se revela por meio de elementos específicos dentro da narrativa que são determinantes para o sentido, como a descrição de Nhinhinha, desde do que ela é, de como as pessoas ao redor a veem e até os comportamentos inexplicáveis dela. As atitudes intrigantes e, por vezes, questionáveis, desde os primeiros momentos do conto, incitam um pequeno incômodo ao leitor, a presença de algo inalcansável e incompressível vem como uma incessante reflexão. A ênfase na descrição assume uma importância central dentro do dispositivo sensitivo, pois é por meio dela que identificamos elementos que transcendem a realidade cotidiana, manifestando-se não apenas nas características da personagem, mas também infiltrando-se em objetos e cenários com uma atmosfera sobrenatural.
Num dos trechos, a menina chamada de Maria, ou Nhinhinha, é descrita em uma das vezes como “[…] muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.”, “[…] sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia.”. Os comportamentos que Nhinhinha apresenta no conto, junto a suas descrições, são incomuns; e como fogem da lógica humana-comum, se encaixam no dispositivo mágico/sensitivo. Desde o princípio o leitor é levado a questionar o porquê de uma menina de quatro anos agir de tal forma, fazer questionamentos mais complexos e até realizar ações para além de qualquer criança da sua idade.
Percebe-se também a presença do dispositivo sensitivo nas interações que acontecem no conto; é possível notar-se a estranheza nas falas de menina tão pequena, “Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: – “Menino pidão… Menino pidão…” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: – “Menina grande… Menina grande…”. O último fator que nos confirma o dispositivo sensitivo/mágico materializado em Nhinhinha que há uma quebra de convenções da realidade: o leitor é exposto a situações que já não condizem mais com a realidade humana, como quando Nhinhinha consegue “realizar” seus desejos, “[…]Eu queria o sapo vir aqui”, […] reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha –”.
Para além da comprovação gradual do fenômeno mágico ao longo da história, G. Rosa, como de costume, deixa esse espaço amplo de interpretação, convidando o leitor a mergulhar em camadas mais profundas de significado. Nhinhinha, encantadora e sutil, não apenas personifica os poderes mágicos que carrega consigo, mas também representa uma miríade de possibilidades interpretativas, seja para os pais ou em outras dimensões simbólicas dentro do próprio conto. A complexidade da narrativa de G. Rosa, entrelaçada com elementos espirituais, confere uma graciosa expressão ao dispositivo sensitivo, escolhendo uma criança como portadora desses dons extraordinários. Nesse cenário, o leitor é conduzido por caminhos onde esse extraordinário se mistura ao cotidiano, revelando uma magia que vai além das palavras e ressoa nas múltiplas facetas da experiência humana.