Ser não-mulher, uma breve andança pela crítica de bell hooks e Monique Wittig

04/04/2024 07:54

 

Por Sofia Quarezemin

Letras Português

Bolsista Pet Letras

Esta pequena trilha (ou andança) se aventura a explorar a negação da noção de mulher. Por um lado, como política de desumanização forjada para fortalecer o Estado racista e misógino. Por outro, como pressuposto radical e deliberado para um feminismo materialista. A incipiente reflexão surgiu com a leitura combinada do livro E eu não sou uma mulher?, de bell hooks, com o ensaio Não se nasce mulher, de Monique Wittig, que se encontra no livro O pensamento hétero e outros ensaios. Ambos os objetos foram publicados pela primeira vez em 1981, e a contemporaneidade das análises chama atenção pela gritante diferença das perspectivas desenvolvidas.

Wittig abre seu argumento com a premissa beauvoiriana de que ninguém nasce mulher, mas se torna, é forjada. Nas palavras de Beauvoir, “[…] nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.” (p.42).  Ou seja, a mulher (ideal de feminilidade) que a sociedade ocidental produziu é formada a partir da lógica de dominação masculina e essencialmente ocupa o lugar de “outro” em oposição ao ser humano universal, que é o homem. Isso coloca as mulheres (grupo que se constitui nas relações sociais materiais) em constante e alucinante submissão às normas de comportamento prescritas para que possam ocupar o lugar de mulher que foram induzidas a almejar.

Wittig revoluciona sua própria escrita quando afirma que lésbicas não são mulheres. Se a mulher existe numa relação de servidão com o homem, a lésbica não é uma mulher, na medida em que nega o homem e nega a ele seu trabalho, bem como seu corpo, seu cuidado, seu sexo, e, principalmente, seu poder reprodutivo. A autora ainda evidencia que o que está em jogo, aqui, é uma definição de indivíduo e também uma definição de classe, na qual o lesbianismo é uma alternativa crítica à ideia de que existe uma “mulher verdadeira”, pois a lésbica coloca  em xeque o caráter natural da sociedade e, assim, das cisões produzidas pelo corpo masculino hetero.

*Descrição da imagem: “I can’t see you without me”, de Mickalene Thomas. Trata-se de uma obra de arte que combina fotografia, pintura e colagens para formar o rosto de uma mulher fragmentada e recortada. Ela tem cabelos cacheados, usa argolas grandes e está olhando para baixo. Seu olho esquerdo e sua boca são desenhos em preto e branco.

 

No mesmo ano, bell hooks publicava uma de suas obras mais célebres e que a consagrou no campo do pensamento feminista, com o título original Ain’t I a Woman?.  O título do livro remonta à fala de Sojourner Truth, uma das mais famosas abolicionistas negras do século XIX nos Estados Unidos, no tocante à desumanização das mulheres negras:

 

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? […] Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari cinco filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?  (p.253)

O discurso de Truth expõe as engrenagens hipócritas e nada ingênuas da ideologia da supremacia branca estadunidense, dos patriarcas brancos, de suas esposas donas de casa e suas famílias de classe média.  Nesse âmbito, hooks discute a formação da mulheridade branca e negra: as mulheres brancas foram desumanizadas no nível sobre-humano, sendo imposto a elas o ideal de castidade, pureza moral, inocência e virtuosidade (postura que elas prontamente abraçaram, pois as resguardava, em certo nível, da violência masculina); enquanto isso, as mulheres negras foram desumanizadas no nível sub-humano, uma vez que se criaram em torno da mulheridade negra uma série de estereótipos, sendo os principais: o da mulher má, o da mulher sexualmente depravada e o mito da matriarca negra, que cuida de todos e suporta sozinha o peso das estruturas do mundo.

Esse cenário foi deliberadamente construído para dividir as mulheres em duas frentes na sua busca pela mulher ideal (retomando o conceito de Wittig). Esse fator é responsável por criar competição e rivalidade entre mulheres e, em seu livro, hooks volta sua atenção para o fato de que as mulheres negras estadunidenses buscavam se livrar dos estereótipos negativos ligados à sua negritude para abraçar o ideal de feminilidade que era reservado apenas às mulheres brancas. Ela elucida que às mulheres negras, foi negada não só sua mulheridade, mas sobretudo sua humanidade e seu direito de subjetivação.

[…] carregavam um ressentimento amargo por não serem consideradas “mulheres” na cultura dominante e, portanto, não receberam a consideração e os privilégios dados às mulheres brancas. Modéstia, pureza sexual, inocência e um jeito submisso eram as qualidades associadas à mulheridade e à feminilidade que mulheres negras escravizadas se empenhavam para adquirir, ainda que as condições em que moravam continuamente sabotassem seus esforços. (p.89)

Ao passo em que Wittig nega a categoria mulher, hooks a reivindica. Essa profusão de perspectivas que resultaram das análises das duas autoras aqui em foco me levou à questão: quem tem dúvidas sobre o que é uma mulher?

Quando me deparo com os casos crescentes de lesbocídio e com o fato de que as mulheres negras representam 67% das vítimas de feminicídio, ou com os números estarrecedores de assassinatos de mulheres trans ou de pessoas transfemininas, e sabendo que essas modalidades de violência quase sempre vêm acompanhadas de um grau de crueldade, eu me pergunto, de novo: por que os homens não têm dúvidas sobre o que é uma mulher? Por que a violência masculina alcança a todas as mulheres, umas mais e outras menos, sem se perguntar o que é uma mulher? Os retalhos que compõem as mulheres são frutos dos mais diversos níveis de estilhaçamento e busca por libertação, que nos levam da idealização à demonização, e mesmo assim eles não sabem dizer o que é uma mulher. Eles querem nos subjugar e nos matam quando não aceitamos, mas não têm ideia do que somos porque presumem, simplesmente, que somos o outro. E ser apenas o outro de alguém significa que nos foi roubada nossa capacidade de nos subjetivarmos por nós mesmas, mora aí a desumanização.

REFERÊNCIAS

HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? 12. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2023.

RODRIGUES, Léo. Homicídios crescem para mulheres negras e caem para não negras. É o que revela pesquisa do Ipea. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 05 dez. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/homicidios-crescem-para-mulheres-negras-e-caem-para-nao-negras#:~:text=Em%202021%2C%202.601%20mulheres%20negras,ao%20das%20mulheres%20n%C3%A3o%20negras.

WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.

 

 

Elaborações escorregadias sobre “Eles estão por aí”

01/04/2024 14:39

Por Débora Klug

 Bolsista do PET Letras

Letras Português

Este será um breve comentário-resenha que se propõe a tentar dar algum contorno interpretativo ao quadrinho brasileiro “Eles estão por aí”, lançado pela editora Todavia, em 2018, de autoria de Bianca Pinheiro e Greg Stella.

Digo tentar pois quem já conhece a obra concorda que ela pode ser descrita, no mínimo, como enigmática. É um quadrinho com muita margem interpretativa, abrindo muitos sentidos possíveis ao leitor. Tentarei indicar alguns pontos de partida.

Cabe, inicialmente, uma pequena apresentação dos eixos que conduzem a narrativa, e depois uma apresentação dos elementos estéticos do quadrinho (muitíssimo importante!).

Podemos pensar em três eixos diferentes: o primeiro é a jornada de dois seres; um deles parece uma lesma com um olho só, e o outro parece uma berinjela com um braço e duas pernas – uma delas é maior que a outra, como se fosse dobrada em um laço. Eles se acompanham, mas sem nenhuma razão aparente para tal. Apenas andam, e raras vezes trocam algumas poucas palavras, rumo a um lugar que nem o leitor e nem eles parecem saber qual. Apenas se deslocam para alguma direção. Esse já é um bom ponto para começar a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre deslocamento.

O segundo eixo é uma espécie de sociedade de outros seres; estes se parecem com sementes que têm pernas e boca, mas não tem olhos. Eles são guiados por uma espécie de líder religioso, cujas pregações são sobre seres titânicos que estão por aí, e que são como que donos de tudo por serem muito grandes, enquanto as sementes pequenas não são nada. Como eles não possuem olhos, acreditam que não foram feitos para ver. Acompanhamos então uma semente revoltada, que saí como andarilha para poder ver o mundo. E o segundo ponto para pensar a tentativa de interpretação do quadrinho pode ser isso: ver o mundo.


Descrição da imagem: um quadrinho de fundo preto possui um ser parecido com o formato de uma semente, com uma boca com poucos dentes pontudos e duas pernas, tem a seguinte fala no balão “mas é só por um tempo…”. Abaixo, há um quadro maior, também com o fundo preto, com o mesmo ser em maior evidência com outra fala distribuída em cinco balões diferentes: “eu preciso andar… eu quero… eu preciso sair… a senhora entende? Tem coisas que eu preciso fazer, coisas que eu preciso ver…”

Fonte: arquivo pessoal

Agora, por fim, o terceiro eixo são outros seres que parecem viver dentro de um gigante que não faz nada além de empilhar pedras. Não enxergamos esses pequenos seres em nenhum momento, apenas lemos seus diálogos que são as maiores das trivialidades possíveis: sonhos sobre desentendimentos entre conhecidos, fulano que ficou com ciclano e risadas desconfortáveis. Em resumo, são como os assuntos que temos com colegas distantes que encontramos sem querer no ponto e queremos preencher aquele vazio incômodo até chegar o próximo ônibus. É desconfortável de ler,  de tão trivial  que é o tom das conversas, com pausas longas e tentativas de puxar assunto falhas, uma inadequação gritante permeia todos os diálogos. Outro ponto importante para a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre vazios (e a tentativa de preenchê-los).

Uma travessia de uma dupla estranha, uma semente sem olhos que se revolta em busca de enxergar, e seres microscópicos conversando as maiores frivolidades. De maneira geral esses são os principais eixos da narrativa. O que perpassa, de uma maneira ou outra por todos os três eixos, é que todos os seres não sabem qual a função deles no mundo, se existe algo além deles, o que eles devem ou não fazer. Eles tentam dar algum rumo para o que vivem com o que têm à sua disposição, apenas andando, ou se revoltando, ou jogando conversa fora.

 

Descrição da imagem: há oito quadrinhos com o mesmo desenho, um ambiente feito de poucos traços arredondados, que lembram nuvens, e dois seres que são pontos pretos no meio dos traços. Nos dois primeiros quadrinhos não há falas, indicando silêncio. No terceiro quadrinho eles falam, juntos, “você”. O quarto quadrinho está vazio, indicando um silêncio. No quinto quadrinho eles riem juntos “hehe”. No sexto quadrinho um dos seres fala “pode falar”, o outro responde “não, não, fala você.” No sétimo quadrinho um dos seres fala “não, pode falar”. Por fim, no oitavo quadrinho não há falas, indicando silêncio.

Fonte: arquivo pessoal

Cabe aqui também apresentar a estética do quadrinho. Ele possui traços muitos orgânicos e um tanto minimalistas. É todo em preto e branco, e os quadros tem muitos momentos lentos e contemplativos, em que apenas observamos os personagens se deslocando no ambiente, sem nenhuma fala ou grandes acontecimentos (principalmente no primeiro eixo da história, da lesma de um olho e a berinjela perna-de-laço).

Além disso, o quadrinho é repleto de splash pages utilizadas de uma maneira bem inusitada. Splash pages é um recurso gráfico em que o autor se utiliza de uma página inteira para colocar uma cena, ao invés de vários quadrinhos em uma página só, é uma imagem que toma conta da página toda. Geralmente, esse recurso é usado para destacar um grande acontecimento, nos momentos clímax da narrativa, para chamar a atenção do leitor. No entanto, em “Eles estão por aí” as splash pages são, muitas vezes, os momentos de completo vazio, que causam angústia, como os personagens sentados na beira de um precipício, ou caminhando por desertos ou locais estranhos e monumentais.

E é nessa estética que convergem os três pontos que destaquei anteriormente: o deslocamento, ver o mundo e vazios. Todos os três pontos se interceptam, pois, cada um à sua maneira, os personagens se deslocam entre vazios (metafóricos e literais) para ver o mundo.

A história de “Eles estão por aí” é construída, essencialmente, por seus desenhos e recursos gráficos, não tanto pelo que está materializado em língua escrita. É no que não se diz que está a maior potência da narrativa.


Descrição da imagem: há uma ambientação simples, com uma longa linha no horizonte, seguida de pequenas linhas abaixo dela, criando uma textura que parece ser de um lugar deserto. Ao longe, no horizonte há duas pequenas silhuetas.

Fonte: arquivo pessoal


Descrição da imagem: essa é a continuação da imagem anterior. Ainda há uma linha longa fazendo o horizonte, no canto direito uma pequena árvore. Mais a frente, as duas silhuetas agora estão visíveis. Uma delas se parece com uma berinjela com duas pernas e um braço, e a outra parece uma lesma com um olho. Elas encaram um precipício que é preto com algumas rachaduras em branco. Os traços são simples.

Fonte: arquivo pessoal

 

Por fim, vale apontar que o quadrinho, como não tem uma estrutura narrativa convencional, também não tem um final convencional. Não há nenhuma conclusão, nenhuma mensagem final, não há qualquer tipo de ensinamento moral. A história começa de supetão do nada e termina de supetão num nada, deixando o leitor em suspenso e com dúvidas. Para de algum modo “emprestar” a estética, o presente texto assim também será.

 

Descrição da imagem: há sete quadrinhos que mostram um ser parecido com uma semente com duas pernas e uma boca, ele possui uma pequena trouxa amarrada nas costas. O ser olha de um lado pro outro, caminha um pouco, sem rumo, e para.

Fonte: arquivo pessoal

PS: leiam mais quadrinhos brasileiros!

Os símbolos no cinema: por que vilões bebem leite?

17/03/2024 14:35

Por Manoela Beatriz dos Santos Raymundo

Graduanda em Letras Inglês – Licenciatura

Bolsista PET-Letras

 

A simbologia no cinema surge de diferentes maneiras: desde coisas mais conscientes, como referências diretas a outras obras, até aspectos que atiçam o inconsciente do espectador, como, por exemplo, a comida. A comida é um símbolo que pode ser usado de diversas maneiras dentro de uma obra, mas implica, muitas vezes, em dar efeitos de mais vida e profundidade ao entendimento que temos de como o personagem age ou vive. Por exemplo, um personagem que come rápido e sempre com as mãos, como comida de rua e salgadinhos, cria um efeito de pressa, de estresse. Nesse caso, ao não se alimentar “adequadamente” mostra que está constantemente ocupado demais para se preocupar com isso.

Em algumas ocasiões, essa simbologia serve não só como ferramenta para aprofundar a personalidade do personagem, mas também para sentirmos um estranhamento pelas ações do personagem, como por exemplo, no caso do consumo de leite e sua relação com as práticas de exceção.  Já parou para pensar o por que de alguns vilões dos filmes bebem leite? O Capitão Pátria, da série The Boys, Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, e o Coronel Hans Landa, de Bastardos Inglórios. Os três exemplos geram um sentimento de desconforto no espectador pelo sentido que nós damos ao alimento leite e ao que o associamos quando pensamos na bebida. O leite é nosso primeiro alimento, ligado à maternidade. Porém, quando bebido por adultos, gera um estranhamento quando comparamos a simbologia do leite às ações e feitos dos personagens – como por exemplo a cena de Alex DeLarge e sua gangue no filme Laranja Mecânica.

Na cena, Alex, interpretado por Malcolm McDowell, e seus comparsas bebem um copo de leite em um bar – a Leiteria. O leite, batizado com diversas substâncias, pode ser vendido a pessoas menores de idade por não ser uma bebida alcoólica e, sim, uma “bebida de crianças”, nos mostrando a natureza de Alex e seus companheiros que agem com ultraviolência no decorrer do filme.

Imagem 1: Alex DeLarge, interpretado por Malcolm McDowell, personagem do filme Laranja Mecânica, dirigido por Stanley Kubrick e lançado em 1972. A imagem mostra Alex, no centro da imagem, junto de seus dois comparsas, um em cada lateral, todos bebendo um copo de leite.

Uma sensação parecida pode ser vista na série The Boys, com o super-heroi Capitão Pátria, interpretado por Antony Starr, tendo uma relação perturbadora com a bebida. Durante a série, mostra-se o quão infantil o Capitão Pátria pode ser quando contracenando com Madelyn Stillwell, interpretada por Elisabeth Shue. Capitão Pátria inveja o relacionamento de Stillwell com seu filho recém-nascido, algo que ele, por ter sido criado em laboratório, não teve. Ele sempre aparece encarando a chefe quando ela está amamentando a criança, e, até mesmo, pega uma das garrafas de leite do neném e bebe em algum ponto da série. O sentimento de estranhamento com o Capitão Pátria bebendo leite se torna ainda mais profundo quando vemos que é realmente leite materno, intensificando toda a simbologia atribuída à bebida.

Por outro lado, além das mensagens mencionadas acima acerca da bebida, temos mais uma visão da simbologia que o leite pode nos trazer, simbologia essa que é fortemente apresentada em Bastardos Inglórios. No filme, o Coronel Hans Landa, um coronel do exército nazista, pede um copo de leite durante uma cena de interrogatório logo no início do filme. Existem duas leituras, ambas, de certa maneira, contraditórias e complementares. A primeira é que o leite, bebido por alguém de alto escalão como Hans Landa, passa uma imagem amenizada da autoridade que o Coronel implica, tentando transparecer uma postura menos rígida. A segunda, e mais presente no texto do filme e de outras obras, é a mensagem de falsa superioridade, atrelada diretamente ao nazismo e aos discursos da chamada “supremacia branca” que a bebida sugere.

Imagem 2: Coronel Hans Landa, interpretado por Christoph Waltz, personagem do filme Bastardos Inglórios, dirigido por Quentin Tarantino e lançado em 2009. A imagem mostra Hans Landa sentado em frente a uma mesa de madeira, enquanto outra pessoa, um camponês francês, serve um copo de leite para ele.

Outra cena digna de menção tratando desse tema vem do filme Corra, do diretor Jordan Peele, onde a vilã Rose Armitage, interpretada por Allison Williams, é mostrada comendo cereais e leite, porém não de maneira usual. Rose toma o leite separado dos cereais coloridos, mostrando a pureza do leite  – novamente, remetendo às práticas racistas, deixando os cereais coloridos em um pote separado, para não se misturarem ao leite.

Imagem 3: Rose Armitage, interpretada por Allison Williams, personagem do filme Corra, dirigido por Jordan Peele e lançado em 2017. A imagem mostra Rose, sentada em uma cama, em frente a um laptop, pegando um copo de leite puro a sua direita. Rose está vestida completamente de branco, cabelo preso em um rabo de cavalo e com fones de ouvido.

 

Esses exemplos mostram que leite (ou qualquer outra substância, coisa, ação) não é tão inocente e vem sendo usado como símbolo de supremacia e autoridade há um bom tempo. Essas leituras mostram o poder da comida, mas, sobretudo, dos símbolos.

“Como surgiu esse sinal?” – resenha de “Processos morfológicos de formação de itens lexicais em Libras”, de Janine Oliveira e Markus Weininger

11/03/2024 15:05

https://podcasters.spotify.com/pod/show/pet-letras-ufsc/episodes/Como-surgiu-esse-sinal—resenha-de-Processos-morfolgicos-de-formao-de-itens-lexicais-em-Libras–de-Janine-Oliveira-e-Markus-Weininger-e2hikff

Por Bruno dos Santos Camargo
Letras – Libras
Voluntário PET Letras

Descrição da imagem: Imagem recortada de uma pessoa de camiseta preta fazendo o sinal de LETRAS-LIBRAS com as mãos / Fonte: Jornalismo ACS/UFGD

 

O artigo Processos morfológicos de formação de itens lexicais em Libras: o caso particular da aglomeração, de Janine Soares de Oliveira e Markus Johannes Weininger, busca destacar os itens lexicais empregados no contexto do curso de Letras-Libras da Universidade Federal de Santa Catarina. Este artigo foi publicado na Revista Sensos, no ano de 2016, volume VI, número 2. Observando que o léxico destacado não se compõe a partir de elementos livres nem de processos de derivação, com uma análise minuciosa, constatou-se a presença de características próprias da aglomeração na estrutura morfológica destes sinais.

A autora, Janine Soares de Oliveira, é professora do Departamento de Libras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Estudos da Tradução pela UFSC, é Mestre em Ensino de Matemática pelo CEFET-RJ e graduada em Matemática pela Universidade Federal Fluminense. Desenvolve pesquisas na área de tradução de textos especializados, organização de corpus e análise linguística de unidades terminológicas em Libras.

Já o autor do artigo é Markus Johannes Weininger, professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. É Doutor em Linguística pela UFSC e Mestre em Ciências Políticas pela Ludwigs Maximilian Universität, Alemanha. Dentre as inúmeras áreas de atuação, também pesquisa sobre os aspectos linguísticos, tradução e interpretação de língua de sinais

Segundo os autores, no ano de 2006, com o surgimento do curso de graduação em Letras-Libras da UFSC, uma expansão lexical gigantesca ocorreu à medida que pessoas Surdas passaram a ocupar o meio acadêmico. Conforme conceitos, especialmente linguísticos, iam sendo apresentados na Língua de Sinais, novas propostas de sinais surgiam por todo o país. Contudo, os critérios morfológicos empregados na formação destes sinais não podiam facilmente ser distinguidos, uma vez que trata-se de uma língua jovem e de modalidade gesto-visual, requerendo uma análise mais cuidadosa em cada sinal.

A metodologia do trabalho se deu a partir da análise de 234 vídeos presentes no Glossário Letras-Libras entre os anos 2008 a 2010. O corpus limitou-se aos materiais que não tratassem de nomes de pesquisadores, sinais repetidos ou de polos da Universidade, com isso somaram 100 vídeos úteis para constituição do artigo. Partindo dos descritores de Stokoe, foi realizada a descrição de 31 trilhas utilizando o software ELAN para a análise de cada conceito presente nos vídeos.

Um exemplo apresentado foi o sinal que hoje conhecemos como LETRAS-LIBRAS; os autores passaram a investigar morfologicamente os aspectos formacionais deste item lexical muito utilizado nos dias de hoje. Originalmente, este sinal tinha o aspecto de dois sinais distintos empregados para referir-se ao curso, LETRAS e LIBRAS. Porém, com o passar do tempo e devido ao processo de economia linguística, foram unidos aspectos dos dois sinais e incorporados a um único item lexical.

Foram consideradas as seguintes possibilidades de sinais: itens lexicais formados a partir de outros sinais de duas mãos, itens formados por formas livres com

mudança de algum parâmetro fonológico e itens formados por forma livre ou presa na mão dominante com outras características presentes na mão não-dominante. 53% dos sinais do Glossário Letras-Libras (2008-2010) foram considerados enquanto aglomeração no seu aspecto morfológico.

Não obstante a importância da discussão do texto, uma dificuldade encontrada na leitura se deu a partir da falta de vídeos, ou outras estratégias – como signwriting, que possibilitasse a visualização dos sinais identificados nas glosas. Quando não utilizavam glosas, fotos dos sinais eram empregadas. Entretanto, consistiam em fotos em preto e branco e com baixa qualidade, que dificultavam a percepção do sinal por conta disto.

Trata-se de um artigo interessantíssimo e que traz na prática as aplicações teóricas desenvolvidas por diversos autores ao longo dos Estudos Linguísticos da Libras e marca, em especial, o desenvolvimento das teorias e hipóteses acerca da configuração morfológica da Língua de Sinais, como vistos em Quadros e Karnopp (2004), Brito (2010) e outros autores.

Por esse e vários motivos, o artigo “Processos morfológicos de formação de itens lexicais em Libras:o caso particular da aglomeração” é um material de grande relevância e importante leitura aos estudiosos das línguas de sinais, principalmente aos graduandos do curso de Letras Libras, por elucidar de forma clara e objetiva a origem de signos linguísticos frequentes do meio acadêmico e do próprio sinal que nomeia o curso.

REFERÊNCIAS

BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma gramática de línguas de sinais. 2. ed. Rio de Janeiro: TB – Edições Tempo Brasileiro, 2010. 273 p.

OLIVEIRA, Janine Soares de; WEININGER, Markus Johannes. Processos Morfológicos de Formação de itens lexicais em Libras: o caso particular da aglomeração. Revista Sensos, Porto, v. 6, n. 2, p. 99-112, dez. 2016.

QUADROS, Ronice Müller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de sinais brasileira: estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Aprendizagem de línguas adicionais: o aluno como protagonista

06/03/2024 15:15

Por Ingryd Giovanna Lima Pereira

Letras – Inglês

Bolsista PET Letras

Com o início do semestre letivo, muitos estudantes de graduação em Letras – Línguas Estrangeiras se preparam para as fases iniciais do estágio obrigatório, incluindo aqueles que estão prestes a vivenciar a experiência de lecionar pela primeira vez. Nesse cenário, surge uma reflexão intensa sobre o papel do professor e passamos a nos questionar qual a nossa função como educadores, e como podemos impactar positivamente o nosso ambiente de atuação.

Antes de considerarmos nosso papel como docentes, é válido refletirmos sobre o que é a língua. A língua é instrumento crucial de expressão, comunicação interpessoal e ação. De acordo com Freire (1987), por meio do diálogo e da escuta ativa, aprimoramos nossa compreensão de mundo. Através desse enriquecimento, atingimos consciência social e buscamos ativamente por transformações sociais. Em síntese, a língua é um instrumento de expressão e ação que constrói percepções profundas do mundo e nos torna capazes de contribuir ativamente para mudanças sociais significativas.

Desta maneira, concerne ao professor possibilitar o desenvolvimento da língua como instrumento de transformação social por meio da análise crítica das necessidades (Benesch, 1996). Isso implica em adotar uma abordagem investigativa em relação ao contexto de ensino dos alunos, possibilitando uma intervenção pedagógica alinhada à realidade dos estudantes. Essa análise investigativa, para tornar o ensino significativo, deve ser um processo contínuo, com a compreensão das demandas evoluindo conforme as circunstâncias se modificam. Além disso, esse olhar vai além das necessidades instrumentais, abrangendo também a compreensão do contexto escolar, ou seja, a estrutura organizacional da escola e a realidade dos alunos.  É crucial que o professor também esteja ciente do conhecimento prévio dos estudantes, identificando seus pontos fortes e fracos, além de compreender suas expectativas e quais habilidades desejam desenvolver no aprendizado da língua. Essa mediação pode ser realizada por meio de questionários ou conversas com a turma, por exemplo. Dessa forma, busca-se não apenas atender às exigências imediatas, mas promover uma compreensão mais abrangente e contextualizada, contribuindo para um ensino mais efetivo e significativo.

Ao colocarmos o aluno no centro do processo de aprendizagem, reconhecemos que o papel do professor é o de mediador do conhecimento. De acordo com Freire (1996), para que o conhecimento seja significativo na vida do estudante, é preciso que o educando esteja centrado no ensino, o professor não deve apenas transmitir conhecimento, ao invés disso, deve propiciar um ambiente no qual os alunos se envolvam ativamente na construção do conhecimento. Os alunos devem sentir que desempenham um papel ativo no processo de aprendizagem, ao contrário, a aprendizagem se torna um mero exercício mecânico de memorização.

O papel ativo do aluno na aprendizagem visa estimular o pensamento crítico. De acordo com hooks (2010) “pensar é ação”, ou seja, o pensamento crítico é desenvolvido quando o aluno dispõe de espaço provido pelo professor para pensar, interagir, raciocinar, criar e questionar. A autora afirma que “o pensamento crítico é um processo interativo, o qual demanda a participação igualitária por parte do professor e por parte dos alunos” (hooks, 2010, p. 9 tradução minha). Quando há interação em sala de aula, criamos uma comunidade no qual o aluno sente que tem algo valioso a proporcionar para o coletivo, o aluno compreende seu lugar de escuta e após refletir, expõe sua opinião quando sente que tem algo significativo para compartilhar. Através da ação do pensar, sua compreensão social se expande, como afirma a autora “A pulsação do pensamento crítico é o desejo de saber – para entender como a vida funciona. (hooks, 2010, p. 7 tradução minha). 

Para criar esse ambiente de envolvimento ativo dos estudantes, é fundamental que nas aulas de línguas adicionais o professor faça a mediação de maneira a tornar as questões compreensíveis, pois, quando o aluno não compreende determinada palavra ou sentença, acaba por gerar um vácuo na comunicação. Long (1996 apud East, 2021 p. 30) destaca a importância do feedback corretivo; faz parte de lecionar trazer o foco do aluno através de perguntas como “você me entendeu?” “você pode repetir o que eu disse?”,  tal como incentivar que outro colega que tenha compreendido explique para aquele que não tenha entendido. Esses movimentos geram interação que facilita a compreensão da língua e a torna significativa.

Em resumo, colocar o aluno no centro do ensino significa entender que a criação de materiais didáticos parte do pressuposto de que os alunos terão a oportunidade de raciocinar e interagir. O professor, por sua vez, desempenha um papel na construção do conhecimento como um mediador, não como o detentor exclusivo do conhecimento e centralizar o aluno é torná-lo protagonista de seu próprio processo de aprendizagem. O conhecimento é realmente construído em colaboração com os alunos e, para que seja significativo, é crucial que ambas as partes atuem em conjunto, com o professor exercendo o papel de mediador do conhecimento, capaz de analisar criticamente o contexto e fornecer espaço para a construção de um conhecimento verdadeiramente significativo.

***Texto adaptado de uma atividade produzida na disciplina Estágio Supervisionado II – Inglês, ministrada pela professora Priscila Fabiane Farias, no semestre de 2023.2.

 

REFERÊNCIAS

BENESCH, S. Needs Analysis and Curriculum Development in EAP: An Example of a Critical Approach. TESOL Quarterly, v. 30, n. 4, p. 723, 1996.

EAST, Martin. Foundational Principles of Task-Based Language Teaching. New York and London: Routledge, 2021.FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz E Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

hooks, b. Teaching Critical Thinking: Practical Wisdom. New York: Routledge, 2010.

 

DE FÉRIAS COM O PET | Além das facadas e do sangue: uma breve análise do subgênero slasher

28/02/2024 09:30

 Por Daniely de la Vega

Bolsista PET Letras

Letras Português

O subgênero slasher é uma das vertentes mais icônicas e duradouras do cinema de terror. Caracterizado por seus assassinos implacáveis, vítimas jovens e uma dose saudável de violência gráfica, o slasher se tornou um fenômeno cultural desde seus primórdios nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, sua influência vai além do simples susto; o slasher frequentemente serve como um espelho distorcido das ansiedades sociais e uma plataforma para explorar temas complexos, como sexualidade, moralidade e identidade.

Tal subgênero tem suas raízes em filmes como Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, e Peeping Tom (1960), de Michael Powell, que estabeleceram algumas das convenções fundamentais dos slasher movies, como a perspectiva do assassino e a ênfase na violência gráfica. No entanto, foi em 1978, com o lançamento de Halloween, de John Carpenter, que o slasher se estabeleceu como um subgênero distinto. O filme apresentou o icônico assassino mascarado Michael Myers, além de popularizar muitos dos tropos que se tornariam padrão desse subgênero, como o grupo de adolescentes sendo perseguido por um assassino implacável.

Ao longo das décadas seguintes, o slasher experimentou várias evoluções e reinvenções, desde os slashers sobrenaturais como A Hora do Pesadelo (1984) até os slashers meta-referenciais como Pânico (1996). No entanto, independentemente das mudanças estilísticas e narrativas, o cerne desse subgênero permaneceu o mesmo: a interação entre o assassino e suas vítimas, muitas vezes jovens e sexualmente ativas.

 

Imagem: cena do filme Pânico de 1996. O assassino conhecido como Ghostface segura uma faca ensanguentada.

Fonte: Divulgação / Paramount Studios.

Luís (2021) destaca ainda que os slasher movies têm sido reflexos das questões políticas e sociais das épocas em que foram produzidos, desde os anos 70 até os dias atuais. Essas produções cinematográficas, ao invés de serem meros geradores de emoções fortes, frequentemente exploram e refletem as ansiedades reais da população, acompanhando as transformações sociais e políticas que moldam os medos contemporâneos.

Por trás das facadas e do sangue jorrando, o subgênero slasher muitas vezes aborda questões mais profundas e perturbadoras. Um tema recorrente é a punição da sexualidade, com as vítimas frequentemente sendo jovens sexualmente ativas, enquanto aqueles que se abstêm do sexo muitas vezes sobrevivem até o final. Essa moralidade conservadora tem suas raízes na sociedade puritana, onde o sexo fora do casamento era considerado tabu e sujeito à punição.

Além disso, o slasher muitas vezes serve como um reflexo das ansiedades sociais da época de seu lançamento. Por exemplo, filmes como Sexta-Feira 13 (1980) capitalizaram o medo do desconhecido e do isolamento das comunidades rurais, enquanto Halloween explorou os perigos da suburbanização e da perda da inocência.

Apesar de suas raízes conservadoras, o subgênero slasher também viu uma série de filmes que subvertem e desafiam suas convenções. Filmes como A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George A. Romero, e O Massacre da Serra Elétrica (1974), de Tobe Hooper, apresentaram protagonistas femininas fortes e independentes, desafiando a ideia de que as mulheres no cinema de terror são apenas vítimas indefesas.

Além disso, o slasher moderno tem sido frequentemente objeto de análise crítica e desconstrução. Filmes como A Hora do Pesadelo e Pânico brincam com as expectativas do público, utilizando meta-referências e humor autoconsciente para comentar sobre o próprio subgênero e sua relação com a cultura popular.

Os slasher movies são muito mais do que apenas sangue e sustos. Por trás de sua superfície violenta, eles oferecem uma lente através da qual podemos examinar e entender nossos medos mais profundos e nossas ansiedades sociais. Ao longo das décadas, o slasher evoluiu e se reinventou, continuando a assombrar e intrigar os espectadores com sua mistura única de horror, suspense e subtexto social. Embora possa ser fácil descartá-lo como mera carnificina, esse subgênero continua a provar seu valor como uma forma de arte profundamente impactante e reflexiva.

REFERÊNCIAS

LUÍS, Rui Fernando. As muitas máscaras do slasher movie: como os medos da sociedade se refletem na evolução do género. 2021. 85 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciências da Comunicação, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2022. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/136355. Acesso em: 27 fev. 2024.

DE FÉRIAS COM O PET | Odoyá e o dia 2 de fevereiro

05/02/2024 07:50

                                        Por Tay Muller

Bacharelado em Letras-Libras

Bolsista Acessibilidade PET-Letras

Quanto nome tem a Rainha do Mar? “Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona YEMANJÁ”.   Esse trecho compõe a música Yemanjá – Rainha do Mar, do disco Voz Nagô- Afro samba de Pedro Amorim e Paulo Cezar Pinheiro, de 2017. É interpretada de forma magnífica por Maria Bethânia: cantora, compositora, produtora, atriz e poetisa brasileira. Essa música apresenta algumas das variações dos nomes dados a Iemanjá em diversas regiões do Brasil. Iemanjá é a Orixá das águas salgadas, dos mares, mãe de todos os Orixás, mãe das cabeças tendo como tradução do nome “mãe cujos filhos são peixes”.

 Dia 2 de fevereiro é um dia de festa para as religiões de matriz Africana como a Umbanda e o Candomblé: celebra-se o dia de Iemanjá. Essa festa é celebrada na praia, com homenagens e oferendas. Alguns Orixás são mais conhecidos aqui no Brasil, mas existem muitos outros e essa diferença existe pois o culto ao Orixá em África acontece de forma diferente. Alguns Orixás são mais conhecidos no Brasil pois são citados em ritmos musicais populares como no samba e no axé, eternizados nas vozes de cantores muito conhecidos e queridos – estes cantores em sua maioria fazendo parte de terreiros, trazendo para sua música as influências afro-brasileiras.  Alguns Orixás são também mais conhecidos pois na época da escravização do povo africano, para conseguir seguir seus rituais, os escravizados utilizaram imagens de santos famosos como São Jorge e Nossa Senhora dos navegantes, para cultuar, respectivamente, Ogum e Iemanjá.

Descrição da imagem: imagem de festa do Terreiro do Asas de Aruanda; é uma vista aérea; tem como primeiro plano areia da praia, com várias pessoas posicionadas em forma oval, em várias filas. Ao centro, pessoas de branco abaixadas e voltadas para um ponto do lado direito, o congá (equivalente a um altar). Na parte de abaixo da imagem, temos 4 barracas de praia.

Fonte@Rafael_paz

 

 

Mas não apenas pessoas participantes dos terreiros vão a estas festas. Como vemos nas imagens deste texto, as pessoas mais ao centro, abaixadas são os médiuns; ao redor, os visitantes.  Pessoas de diversas religiões frequentam não apenas as festas, mas também os terreiros e barracões atrás das “macumbas” (nome usado de forma pejorativa), “encantamento”, “feitiços”, “curas” ou “trabalhos” (são diversos os nomes, para o que se faz nesses espaços); utilizam os ritos da cultura Afro e os costumes já enraizados na cultura popular brasileira, mas não falam a ninguém por vergonha ou preconceito e por vezes; muitos nem conhecem o significado destes costumes populares de que fazem uso. Por exemplo: pular 7 ondas no mar, na virada do ano novo, é uma prática para que se faça desejos para o ano que começa. Entretanto, de onde vem as 7 ondas? E os 7 desejos? Dentro de algumas crenças Afro, 7 ondas são a distância para adentrar ao reino de Iemanjá – mas o resto da história foi aumentando a cada conto.

Mais do que religião, os Terreiros e as festas são espaços de cultura, oportunidades de conhecer partes invisibilizadas do povo preto que constituem o imaginário popular dos nossos costumes e nossa língua, ensinamentos orais e perspectivas de mundo diferentes das que estamos habituados. Os Terreiros são espaços de acolhimento de corpos marginalizados e rejeitados pela sociedade espaços de reconstrução de pessoas. E as festas promovidas por esses locais são um momento muito importante para que essa herança de racismo e preconceito religioso se dissolva e possamos encontrar cada vez mais celebrações mais diversas e respeitosas sem que, a cada momento, seja noticiada uma violência contra estes espaços e pessoas.

Descrição da imagem: amplificação da imagem anterior. Vemos a mesma imagem de cima e tudo fica pequeno. Do lado esquerdo temos uma vegetação verde rasteira; abaixo, uma estrada com uma fila de carros com as luzes acesas, pedras em direção a areia da praia; pisando na areia, várias pessoas (em torno de 600) posicionadas em forma oval em várias filas, aumentando o tamanho circular/ oval. Ao centro, pessoas de branco abaixadas e voltadas para um ponto do lado direito, o congá (equivalente a um altar). Na parte de abaixo da imagem, temos 4 barracas de praia.

Fonte@Rafael_paz

 

 

DE FÉRIAS COM O PET | Resenha: “A autobiografia da minha mãe”, de Jamaica Kincaid

30/01/2024 13:36

 

Por Laiara Serafim

Letras-Português

Bolsista Pet-Letras

Ano novo. Vida nova. Novas metas. Nova lista de leituras.

No De férias com o Pet dessa semana, venho trazer uma indicação de leitura, para você que está precisando dar o “pontapé” inicial nas suas leituras de 2024 ou para você que, assim como eu, já criou uma lista de leitura enorme da qual sabe que não vai dar conta. Eis que aqui vai mais um nome para a sua lista: A autobiografia da minha mãe , de Jamaica Kincaid, publicado em 1996.

A segunda obra de Jamaica Kincaid traduzida no Brasil traz uma narrativa realista, cruel e emocionante de Xuela, transportando as palavras para além das páginas, tornando-as quase palpáveis ao leitor. A habilidade literária de Kincaid conduz o leitor pela vida de Xuela, desde a sua infância até sua casa na velhice, em uma obra sem capítulos ou diálogos. A protagonista da obra perde a mãe no parto e é criada por uma lavadora de roupas da família. A narrativa nos aproxima de Xuela a cada cena, revelando as dificuldades cotidianas que ela enfrenta. Por trás das cenas de sofrimento de toda a sua trajetória, Kincaid expõe um cenário marcado pelo colonialismo. Xuela é filha de uma mãe caribenha e de um pai meio escocês e meio africano, e é moradora da ilha de Dominica, ilha que foi colônia da Inglaterra por anos, até conseguir a sua independência apenas no ano de 1978.

Descrição da imagem: A imagem é a capa do livro “A autobiografia da minha mãe”,  de Jamaica Kincaid.  O fundo da imagem é bege. No centro há o desenho de uma mulher de pele negra e cabelo preto, vestindo uma blusa amarela. Em torno na imagem está o nome do livro e, abaixo, o nome da autora, ambos em letras da cor laranja.

A realidade de Kincaid parece ter sofrido os mesmos desdobramentos. Segundo o jornal Folha de São Paulo, “só quando chegou aos Estados Unidos, aos 17 anos, Kincaid percebeu que a cor da sua pele poderia ser interpretada como um forte marcador de desigualdade.” E é através do cenário do colonialismo que Kincaid traz os temas centrais de sua obra, identidade e busca por suas raízes.

“Passei a me amar por rebeldia, por desespero, porque não havia mais nada. Esse amor basta, mas apenas basta, não é o melhor; tem gosto de uma coisa que ficou tempo demais na prateleira e estragou, e que revira no estômago quando é comida. Ele basta, ele basta, mas só porque não existe mais nada que ocupe o seu lugar; não é recomendado.” (p. 38).

No romance, a personagem Xuela também enfrenta um grande embate com o racismo. A autora critica constantemente essa realidade, assim como o colonialismo, examinando os conflitos presentes em diversos grupos étnicos e desconstruindo ideias generalizadas sobre a formação das identidades. Outro grande elemento abordado na obra de Kincaid, relacionado à questão de nacionalidade e pertencimento, é a linguagem. Dado que a língua desempenha um papel fundamental na formação da identidade de cada indivíduo, saber a língua do colonizador era extremamente importante para o status social; para  participar de uma sociedade colonizada, ainda era necessário que se falasse a língua do colonizador “corretamente”, sem traços da língua nativa.

“Comecei a falar bastante na época — comigo mesma frequentemente, com os outros quando absolutamente necessário. Falávamos em inglês na escola — inglês correto, não patoá — e entre nós o patoá francês, uma língua que não era considerada nada correta, uma língua que uma pessoa da França não sabia falar e teria dificuldade de entender” (p.15).

A autobiografia da minha mãe é um livro que fará você sair da zona de conforto. Um livro forte, belíssimo em seu lirismo e perturbador em seu enredo. A obra é uma boa alavanca para refletir sobre os conceitos de nacionalidade e os impactos do colonialismo, mas também sobre perdas, sobre relações familiares e os estigmas na vida da mulher.

REFERÊNCIA

KINCAID, Jamaica. A autobiografia da minha mãe. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020.

 

 

DE FÉRIAS COM O PET | A figura feminina no conto “O Caso de Rute”, de Júlia Lopes de Almeida

22/01/2024 10:20

Por Izabel Bayerl Bonatto

Letras-Português

Bolsista PET – Letras

 

O conto O Caso de Rute, publicado em 1903, está presente na coletânea de contos Ânsia Eterna, que foi escrita por Júlia Lopes de Almeida, e tem como ponto central o entrelaçamento entre a pureza e a violação. A autora apresenta no conto traços do Romantismo, apesar de pertencer ao Realismo, além de trazer elementos góticos para o texto, dando voz à personagem feminina Rute, abordando criticamente a questão do casamento arranjado e questões sociais relevantes para a época na qual o conto foi escrito.

Descrição da imagem: o fundo da foto é todo num tom de roxo azulado; na parte superior está escrito na cor branca “O caso de Rute” e abaixo na cor preta “Júlia Lopes de Almeida”. No canto inferior direito há uma imitação de pagina rasgando que revela a parte de trás da cabeça de uma mulher branca de cabelos escuros.

É contada a história de Rute, uma mulher branca de 23 anos e de boa classe social, que está prometida como noiva para Eduardo Jordão; porém, a jovem guarda um grande segredo. Logo que Ruth é apresentada a seu noivo, a baronesa Montenegro começa a tecer elogios sobre o quanto a moça é bondosa, recatada, digna, instruída e de boa educação. Toda essa apresentação acerca da jovem remete ao que a sociedade esperava da figura feminina na época, uma mulher passiva e servente do marido e família. “[…] Eram, com isso, apagadas, no sentido de que sua subjetividade era completamente desconsiderada em função do outro, o sujeito masculino, e em função de manter os status quo daquela sociedade” (Dias, 2019, p.150).

Outro ponto a ser destacado ocorre na história assim que Rute fica a sós com Eduardo e ela revela que não quer enganá-lo, afirmando que não é mais “pura”: “– Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!” (O Caso de Rute, p.30). Ela descreve o ocorrido: há 8 anos seu padrasto, já falecido, dominava-a; a vontade dele era a mesma da dela. Ao mesmo tempo que ela lastima o ocorrido, também não se absolve de sua culpa e em nenhum momento diz ter lutado contra aquilo: “– É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência; mas cedi.” (O Caso de Rute, p.31). É possível notar que a personagem espera que Eduardo cancele o noivado e a culpe por não ser mais virgem, mas não é o que acontece. Ele perdoa Rute mesmo sem ela ter pedido esse perdão.

Neste ponto da história ocorre uma espécie de fluxo de consciência de rapaz, seus pensamentos travam uma batalha entre a violência que acabara de descobrir, a morte do padrasto dela e o amor que há entre os dois. Além disso, agora perdoada e com o casamento ainda prometido, ocorre outro fluxo de consciência, mas agora de Rute: o perdão de Eduardo a revoltava, e ela ponderava sobre a possibilidade dele a repelir no futuro, mesmo ele prometendo que esqueceria do ocorrido. Com isso, vieram à sua mente pensamentos suicidas:

Rute pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma ideia humilhante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, que a levasse ao túmulo com a mesma aparência de cecém cândida, de envergonhar a própria sensitiva. (O Caso de Rute, p.33)

E realmente a protagonista cumpre com seu desejo, suicida-se. Em seu velório, uma mesma voz repetia que a jovem iria ficar com o falecido padrasto, no mesmo jazigo. Eduardo, pensando que a noiva havia se matado para ir de encontro com o antigo amante, teve um surto de ciúmes somado ao sentimento de posse, tal como Rute sabia que em algum momento aconteceria: “E a todos que acudiram nesse instante pareceu que viam sorrir a morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse…” (O Caso de Rute, p.34)

Por fim, a respeito de O caso de Rute, Dias (2019) ainda destaca:

Ademais, podemos dizer que, com muita delicadeza, Júlia Lopes de Almeida de fato retratou devidamente a condição da mulher naquela sociedade, denunciando as situações degradantes as quais as mulheres estavam submetidas. Através de personagens masculinas que ocupavam posições de destaque, como o Barão, a autora critica sutilmente a reafirmação de valor que se costuma dar a essas pessoas e os privilégios que os sujeitos do sexo masculino usufruem com sua imagem, em consonância com o silenciamento e a negativização da imagem das mulheres.(p.158)

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Júlia Lopes de. O Caso de Rute. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. Ânsia Eterna. 2. ed. rev. Brasília: Senado Federal, 2020.   p. 27-34.

DIAS, Ana Paula Pereira. A representação do feminino no conto O caso de Rute, de Júlia Lopes de Almeida. Revista Porto das Letras, Tocantins, v. 05, n. 03, p. 147-160, 2019. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/portodasletras/article/download/8025/16014. Acesso em: 21 jan. 2024.