Ser não-mulher, uma breve andança pela crítica de bell hooks e Monique Wittig
Por Sofia Quarezemin
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Esta pequena trilha (ou andança) se aventura a explorar a negação da noção de mulher. Por um lado, como política de desumanização forjada para fortalecer o Estado racista e misógino. Por outro, como pressuposto radical e deliberado para um feminismo materialista. A incipiente reflexão surgiu com a leitura combinada do livro E eu não sou uma mulher?, de bell hooks, com o ensaio Não se nasce mulher, de Monique Wittig, que se encontra no livro O pensamento hétero e outros ensaios. Ambos os objetos foram publicados pela primeira vez em 1981, e a contemporaneidade das análises chama atenção pela gritante diferença das perspectivas desenvolvidas.
Wittig abre seu argumento com a premissa beauvoiriana de que ninguém nasce mulher, mas se torna, é forjada. Nas palavras de Beauvoir, “[…] nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.” (p.42). Ou seja, a mulher (ideal de feminilidade) que a sociedade ocidental produziu é formada a partir da lógica de dominação masculina e essencialmente ocupa o lugar de “outro” em oposição ao ser humano universal, que é o homem. Isso coloca as mulheres (grupo que se constitui nas relações sociais materiais) em constante e alucinante submissão às normas de comportamento prescritas para que possam ocupar o lugar de mulher que foram induzidas a almejar.
Wittig revoluciona sua própria escrita quando afirma que lésbicas não são mulheres. Se a mulher existe numa relação de servidão com o homem, a lésbica não é uma mulher, na medida em que nega o homem e nega a ele seu trabalho, bem como seu corpo, seu cuidado, seu sexo, e, principalmente, seu poder reprodutivo. A autora ainda evidencia que o que está em jogo, aqui, é uma definição de indivíduo e também uma definição de classe, na qual o lesbianismo é uma alternativa crítica à ideia de que existe uma “mulher verdadeira”, pois a lésbica coloca em xeque o caráter natural da sociedade e, assim, das cisões produzidas pelo corpo masculino hetero.
*Descrição da imagem: “I can’t see you without me”, de Mickalene Thomas. Trata-se de uma obra de arte que combina fotografia, pintura e colagens para formar o rosto de uma mulher fragmentada e recortada. Ela tem cabelos cacheados, usa argolas grandes e está olhando para baixo. Seu olho esquerdo e sua boca são desenhos em preto e branco.
No mesmo ano, bell hooks publicava uma de suas obras mais célebres e que a consagrou no campo do pensamento feminista, com o título original Ain’t I a Woman?. O título do livro remonta à fala de Sojourner Truth, uma das mais famosas abolicionistas negras do século XIX nos Estados Unidos, no tocante à desumanização das mulheres negras:
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? […] Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari cinco filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (p.253)
O discurso de Truth expõe as engrenagens hipócritas e nada ingênuas da ideologia da supremacia branca estadunidense, dos patriarcas brancos, de suas esposas donas de casa e suas famílias de classe média. Nesse âmbito, hooks discute a formação da mulheridade branca e negra: as mulheres brancas foram desumanizadas no nível sobre-humano, sendo imposto a elas o ideal de castidade, pureza moral, inocência e virtuosidade (postura que elas prontamente abraçaram, pois as resguardava, em certo nível, da violência masculina); enquanto isso, as mulheres negras foram desumanizadas no nível sub-humano, uma vez que se criaram em torno da mulheridade negra uma série de estereótipos, sendo os principais: o da mulher má, o da mulher sexualmente depravada e o mito da matriarca negra, que cuida de todos e suporta sozinha o peso das estruturas do mundo.
Esse cenário foi deliberadamente construído para dividir as mulheres em duas frentes na sua busca pela mulher ideal (retomando o conceito de Wittig). Esse fator é responsável por criar competição e rivalidade entre mulheres e, em seu livro, hooks volta sua atenção para o fato de que as mulheres negras estadunidenses buscavam se livrar dos estereótipos negativos ligados à sua negritude para abraçar o ideal de feminilidade que era reservado apenas às mulheres brancas. Ela elucida que às mulheres negras, foi negada não só sua mulheridade, mas sobretudo sua humanidade e seu direito de subjetivação.
[…] carregavam um ressentimento amargo por não serem consideradas “mulheres” na cultura dominante e, portanto, não receberam a consideração e os privilégios dados às mulheres brancas. Modéstia, pureza sexual, inocência e um jeito submisso eram as qualidades associadas à mulheridade e à feminilidade que mulheres negras escravizadas se empenhavam para adquirir, ainda que as condições em que moravam continuamente sabotassem seus esforços. (p.89)
Ao passo em que Wittig nega a categoria mulher, hooks a reivindica. Essa profusão de perspectivas que resultaram das análises das duas autoras aqui em foco me levou à questão: quem tem dúvidas sobre o que é uma mulher?
Quando me deparo com os casos crescentes de lesbocídio e com o fato de que as mulheres negras representam 67% das vítimas de feminicídio, ou com os números estarrecedores de assassinatos de mulheres trans ou de pessoas transfemininas, e sabendo que essas modalidades de violência quase sempre vêm acompanhadas de um grau de crueldade, eu me pergunto, de novo: por que os homens não têm dúvidas sobre o que é uma mulher? Por que a violência masculina alcança a todas as mulheres, umas mais e outras menos, sem se perguntar o que é uma mulher? Os retalhos que compõem as mulheres são frutos dos mais diversos níveis de estilhaçamento e busca por libertação, que nos levam da idealização à demonização, e mesmo assim eles não sabem dizer o que é uma mulher. Eles querem nos subjugar e nos matam quando não aceitamos, mas não têm ideia do que somos porque presumem, simplesmente, que somos o outro. E ser apenas o outro de alguém significa que nos foi roubada nossa capacidade de nos subjetivarmos por nós mesmas, mora aí a desumanização.
REFERÊNCIAS
HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? 12. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2023.
RODRIGUES, Léo. Homicídios crescem para mulheres negras e caem para não negras. É o que revela pesquisa do Ipea. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 05 dez. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/homicidios-crescem-para-mulheres-negras-e-caem-para-nao-negras#:~:text=Em%202021%2C%202.601%20mulheres%20negras,ao%20das%20mulheres%20n%C3%A3o%20negras.
WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.