Língua de sinais: um direito da criança surda
Por Débora Klug e Hanna Boassi
Letras-Português
PET-Letras
Nos momentos iniciais de nossas vidas, nós temos nossos primeiros contatos com o mundo, com as pessoas, objetos, sensações à nossa volta, e é a partir desses contatos que nos constituímos sujeitos no mundo. A relação do ‘eu’ com o ‘outro’ é importante, pois permite o reconhecimento do ‘outro’ e, assim, o próprio autoconhecimento, em um movimento de individualização intrapessoal, por meio do contato intersocial. Não somos nós que afirmamos isso, e sim um psicólogo bielo-russo do século XX, chamado Lev Vygotsky (apud CAPORALI; DIZEU, 2005).
A interação com o ‘Outro’ e o mundo é sem dúvidas perpassada pela linguagem e pela língua. Importante destacar a diferença entre as duas. Língua é um conjunto de convenções, estruturas, códigos e regras adotadas por um corpo social. E a linguagem é tudo aquilo que envolve significação, que tem valor semiótico, ou seja, que envolve signos. Sendo assim, a língua é um tipo de linguagem.
Nós vivemos em um mundo em que a língua oral é imperativa e majoritária, o que ocasiona uma super valorização do oralismo, em contraste com uma desvalorização de outras línguas, não orais. No Brasil existe a Libras — Língua Brasileira de Sinais — utilizada pela comunidade surda. Ainda há pessoas que não dão à ela estatuto de língua, sendo considerada apenas uma alternativa à língua oral e só mais um tipo de linguagem. Mas é importante destacar que a Libras é uma língua com estrutura, regras, gramática, sintaxe, morfologia e todas as outras características que são definidoras de toda e qualquer língua, e assim ela deve ser reconhecida. A Libras não é uma alternativa à língua oral, pois ela é a língua natural dos surdos, isso deve ser esclarecido.
Porém, somente em 2002 a Libras foi oficializada como um meio legal de comunicação no Brasil; é uma conquista recente e apesar de muitos avanços na luta da comunidade surda, ainda há desinformação, preconceitos e conquistas a serem alcançadas. Um exemplo disso é a escassez de escolas bilíngues no Brasil. De acordo com uma pesquisa do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), feita em 2020, há apenas 64 escolas bilíngues de surdos no Brasil (GOV.BR, 2021) Isso significa que a maioria das crianças surdas brasileiras não têm oportunidade de ter uma educação em sua língua natural, o que é gravíssimo, se considerarmos o que foi dito inicialmente sobre a importância do contato social para a constituição de sujeitos e a importância da língua nesse processo.
As crianças geralmente entram na escola com aproximadamente quatro anos, essa idade faz parte do que os estudiosos da linguística chamam de período crítico da aquisição da linguagem. O que quer dizer isso? Quer dizer que existe uma janela de tempo em que a criança está mais sensível e mais apta para aprender uma língua. Há controvérsias sobre qual seria essa janela de tempo em termos exatos, mas podemos entender que é dos primeiros anos da criança até o início da puberdade, mais ou menos.
É preocupante saber que existem crianças surdas sem oportunidade de um aprendizado em sua língua natural no período em que estão mais propícias para tal. A falta dessa oportunidade pode afetar seu contato com o mundo, sua socialização, e por consequência, sua constituição como sujeito. Sabemos que não é apenas na escola que se aprende uma língua, esse processo já começa antes do período escolar; mas sabemos também que muitas vezes há crianças surdas que não possuem contato com outros surdos sinalizantes, e é na escola que esse contato é possível. Ou seja, às vezes sem a escola a criança surda é impossibilitada de aprender sua língua natural e socializar com outras pessoas utilizando a língua de sinais.
Descrição da imagem: No canto inferior esquerdo há uma criança negra sorrindo, e acima dela há duas mãos, também negras, sinalizando. Ao lado há mais duas mãos brancas sinalizando, e no canto superior direito há uma criança branca sorrindo. O fundo da imagem é uma cor verde clara lisa.
Fonte: Imagem da Internet
Nós entrevistamos* alguns surdos que nos contaram um pouco de como foi o processo de aquisição da Libras para cada um. Entrevistamos três pessoas surdas, e todos eles tem uma família ouvinte. Dois entrevistados tiveram a oportunidade de estudar desde cedo em uma escola bilíngue, e outro entrevistado estudou em uma escola inclusiva. É importante destacar a diferença entre essas escolas. A escola inclusiva pode colocar à disposição do aluno surdo um intérprete, mas existem escolas sem intérpretes. Essas escolas se dizem inclusivas, pois apenas aceitam crianças surdas nas salas de aula, mas não tem métodos que atendam à necessidade dos surdos, e nem ensinam a língua de sinais. Em contraste, a escola bilíngue é uma escola em que todos os professores sabem Libras, ensinam a língua de sinais e o Português para as crianças. É um ensino duplo, que valoriza a diferença entre as línguas. Todos os envolvidos, professores e alunos, mantém contato com as duas línguas. Para os surdos, o processo de ensino-aprendizagem e o contato social é muito mais privilegiado numa escola bilíngue do que numa escola inclusiva, pois há ferramentas, métodos e pessoas preparadas para o ensino e comunicação em Libras, assim como o ensino do Português.
Nosso entrevistado Bruno é um surdo que estudou em uma escola inclusiva. Primeiramente, ele adquiriu o Português, ou seja, é um surdo oralizado, que consegue se comunicar de forma oral, já que passou pelo processo de transplante coclear muito cedo, utilizou aparelho auditivo desde os três anos e fez acompanhamento de fonoaudiologia. Sobre o aprendizado de Libras, ele relata:
Com sete anos eu aprendi Libras, mas foi escondido. Porque a minha mãe não deixava, e a professora também não deixava. A professora forçava, eu tinha que falar, usar a voz, eu não podia aprender Libras, eles achavam que era negativo. E falou muita coisa negativa pra mim sobre a Libras, sobre língua de sinais, e depois eu discuti muito sobre isso, e eu queria aprender Libras. Eu sabia escrever o português eu sabia oralizar bem, era muito capaz. E minha mãe viu e falou ‘ok, mas eu quero ver como vai o seu seu progresso, vou fazer um teste’. Aí eu falei: ‘ah ok’, aí eu continuei aprendendo libras, e eu falei pra ela: ‘Então, eu parei de oralizar? Não, então eu quero continuar aprendendo Libras’. Aí depois eu adquiri rápido a fluência na língua de sinais, tive convívio com outros surdo, isso até hoje.
Quando o questionamos mais sobre como foi aprender Libras escondido, o que o motivou a isso, Bruno explica:
Foi assim: eu percebi que eu sentia conforto na língua de sinais, e eu percebi que eu não era igual os outros, eu me sentia diferente. Eu sentia muita influência porque eu tinha que ficar oralizando, usando aparelho, e meus amigos não, eu tinha amigos que não oralizavam , só sinalizavam, e eu tinha que me ajustar para me comunicar com eles. Então foi assim, eu aprendi escondido para me comunicar com meus amigos. E eu tinha um professora que controlava muito, eu não podia mexer as mãos, ela me obrigava a ficar com as mãos abaixadas, era muito ruim. Então foi esse aprendizado escondido, até que a minha mãe me liberou para aprender Libras. E eu tive esse contato com outros surdos para aprender. Antes a professora falava que se eu sinalizasse, ela falava pra minha mãe, ficava contando pra minha mãe que eu ficava sinalizando, e eu ficava incomodado. Aí depois com treze anos que ela foi me liberar para aprender Libras de verdade.
Através de relatos tão importantes como o de Bruno nós podemos perceber como o ensino inclusivo não é tão positivo quanto se propõe a ser, assim como percebemos que o contato com Libras e surdos sinalizantes é importante e muitas vezes desejado pela própria criança, pois ela se sente mais confortável utilizando língua de sinais. Dada essa realidade, não restam dúvidas quanto à importância e necessidade do aprendizado de Libras desde cedo na vida da criança surda, em prol da sua própria qualidade de vida.
Como dissemos anteriormente, entrevistamos dois surdos que estudaram na escola bilíngue, e deixamos aqui seus relatos sobre a experiência.
Andreza, outra das entrevistadas, nos conta:
Desde criança minha família me levou para a escola de surdos, a escola bilíngue, isso é muito importante, porque eu aprendi Português e Libras juntos, então eu consegui evoluir nas duas línguas, consegui me comunicar, foi mais fácil pra mim aprender os dois, e eu agradeço muito a eles, porque o Português para mim foi um desafio, mas a Libras pra mim era mais fácil, conseguir ver os sinais, pra mim era muito mais fácil.
Também conversamos com o Gustavo, que nos contou como foi a sua experiência na escola bilíngue:
Então, quando eu nasci e minha mãe descobriu que eu era surdo ela já começou a buscar informação na área, e aí ela descobriu uma escola para surdos, e naquele momento ela já me levou para a escola para surdos, toda a minha família fez essa integração, começou um curso de Libras, esse aprendizado para se comunicar comigo, e na escola eu já fui aprendendo também língua de sinais. A minha família nunca me impôs o Português, nunca foi imposto nada. Eu tive sorte porque a minha família entendeu que a minha primeira língua é a Língua Brasileira de Sinais e a segunda é o Português […] Então, eu sou muito grato à minha escola por ter ofertado curso de Libras à minha família, toda a minha família foi lá, foi muito rápido esse processo. Em casa às vezes era um pouco limitado, e na escola tinha eventos, dia dos pais, dia das mães, várias datas comemorativas, e minha família sempre ia, participava, achava interessante, tinham esse contato com a língua de sinais, então foi muito maravilhoso todo esse momento da minha escola e essa relação, foi muito legal.
Através do relato da Andreza e do Gustavo podemos perceber como a escola bilíngue é positiva para a formação individual da criança, quando dá oportunidade de a criança ter o contato com a Libras desde cedo – e aprendê-la junto com o Português. Além disso, a escola cumpre um importante papel no incentivo à socialização e à normalização do uso de Libras pela família da criança surda. Por vezes, a criança nasce em uma família que não sabe Libras, e se a escola pode ofertar um curso para a família, isso claramente tem impacto positivo no desenvolvimento da criança para além de aspectos escolares e de ensino formal somente, mas também em aspectos da socialização e contato interpessoal.
Em síntese, podemos concluir que é extremamente relevante e necessário na formação da criança surda, como um indivíduo na sociedade, ter o contato desde cedo com a Libras, conviver com pessoas que também sinalizam e ter um ensino de acordo com as suas demandas.
*Entrevistas realizadas nos dias 03 e 09 de novembro, na sala do PET-Letras (Centro de Comunicação e Expressão, UFSC).
REFERÊNCIAS
CAPORALI, Sueli Aparecida; DIZEU, Liliane Correia Toscano de Brito. A Língua de Sinais constituindo o surdo como sujeito. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 583-597, maio/ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/LScdWL65Vmp8xsdkJ9rNyNk/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 4 dez. 2022.
GOV.BR. A educação bilíngue se torna modalidade de ensino independente. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2021/08/educacao-bilingue-de-surdos-se-torna-modalidade-de-ensino-independente#:~:text=Atualmente%2C%20h%C3%A1%2064%20escolas%20bil%C3%ADngues,Educacionais%20An%C3%ADsio%20Teixeira%20(Inep). Acesso em: 30 nov. 2022.