Crescendo entre línguas: a experiência dos CODAs
Por Franciane Ataide Rodrigues
Letras Libras
Bolsista PET-Letras
As pessoas ouvintes filhas de pais surdos são chamadas de CODAs, sigla para Children of Deaf Adults. A composição familiar pode se dar de três maneiras: mãe surda e pai ouvinte, pai surdo e mãe ouvinte ou ambos, pai e mãe surdos. O CODA, geralmente, cresce em meio a duas culturas, duas línguas, e no contato com muitas experiências visuais. As pesquisas acadêmicas em torno de filhos de pais surdos ainda são recentes no Brasil, pois grande parte desses estudos encontram-se na América do Norte e na Europa (Souza, 2014, p.35).
Descrição de imagem: a imagem é um cartaz do filme “CODA”. De plano de fundo no canto superior esquerdo um farol com um céu dourado pelo pôr do sol. No centro da imagem uma família de 4 pessoas sentadas na traseira de uma caminhonete azul. Da direita para a esquerda, uma jovem que apoia a cabeça no ombro de um homem barbudo de boné, que sorri para uma mulher loira ao seu lado; ela também sorri. Na direita, um rapaz jovem de jaqueta jeans que está olhando feliz para o grupo. Em caixa alta, no canto inferior esquerdo, o título “Coda”.
Na comunidade surda, existe uma crença de que todos os CODAs possuem fluência em Libras e uma grande predisposição para se comunicar nessa língua. No entanto, isso nem sempre corresponde à realidade. Como destacado por Quadros e Cruz (2020), apesar de CODAs crescerem em casas onde a língua de sinais é usada, eles variam consideravelmente na fluência desta língua. Em alguns casos, dentro do ambiente doméstico, há uma maior exposição a sinais caseiros, especialmente quando os próprios pais não possuem grande fluência em Libras – no caso do Brasil. Nessas situações, a comunicação familiar acaba ocorrendo por meio de convenções criadas dentro da própria família. Por outro lado, em lares onde os pais se comunicam fluentemente em Libras, os filhos tendem a ter uma predisposição maior para aprender a língua. Entretanto, é fundamental considerar os diversos contextos culturais e familiares para evitar generalizações que desconsiderem ou apaguem as diferentes realidades vividas por essa população.
Pensando no contexto de aquisição da linguagem, a literatura nos diz que a convivência com outros falantes da língua a ser adquirida e o recebimento de estímulos de comunicação durante o período crítico de aquisição da linguagem são fatores importantíssimos para que a criança se desenvolva na língua. Como afirmado por Quadros e Karnopp (2004), a aquisição da língua oral pela criança CODA está intimamente ligada ao nível de exposição e estímulo que recebe, bem como à fluência dos pais e familiares na língua majoritária. Dito isso, é possível ver diferentes níveis de desenvolvimento de linguagem nessas crianças, a depender do nível de estímulo que recebem, a fluência e contato dos pais e da família na língua portuguesa e, sobretudo, a idade em que entrou na escola.
Pensando no contexto do crescimento e dinâmicas da vida, a realidade do CODA pode ter algumas diferenças em relação às crianças ouvintes, pois desde muito novas assumem, em algumas situações, o papel de ponte de comunicação entre o adulto surdo e o mundo ouvinte. Isso não ocorre apenas em situações com estranhos, como em consultas médicas, lojas, etc., mas também no contexto familiar, na relação com tios, sobrinhos e avós, quando estes são ouvintes, pois muitas vezes a família não é capaz de se comunicar com o surdo. Como é observado por Preston (1994), desde cedo, muitos filhos ouvintes de pais surdos assumem o papel de intérpretes informais, mediando a comunicação entre seus pais e o mundo ouvinte, o que pode impactar seu desenvolvimento e identidade.
Por fim, a contribuição dos surdos pais de crianças ouvintes na sociedade passa por algumas responsabilidades semelhantes às dos pais ouvintes, como a criação de um ser humano ético, responsável e que contribua positivamente para a sociedade, dar suporte e segurança para a criança. Além disso, há especificidades que surgem a partir da dinâmica familiar como apontam Quadros e Massutti (2007) quando descrevem os conflitos gerados pela convivência do CODA com dois grupos distintos e representações linguísticas díspares – ouvintes, representados pela Língua Portuguesa, e surdos, pela Libras.
Diante desse contexto, é importante reconhecer que muitas crianças CODAs acabam sendo tratadas como “mini adultos”, assumindo precocemente responsabilidades que vão além do que seria esperado para sua idade. Ao desempenharem o papel de intérpretes informais para seus pais em situações complexas, como consultas médicas, delegacias ou serviços bancários, essas crianças são expostas a informações sensíveis e, muitas vezes, emocionalmente desafiadoras. Esse acúmulo precoce de responsabilidades pode impactar seu desenvolvimento emocional e psicológico, gerando sobrecarga e ansiedade. Por isso, é fundamental que espaços públicos contem com intérpretes de Libras profissionais, garantindo que a comunicação entre surdos e ouvintes ocorra de maneira adequada, sem que as crianças precisem assumir um papel que não lhes cabe. O reconhecimento dessa necessidade é um passo essencial para assegurar os direitos linguísticos da comunidade surda e preservar a infância dos CODAs.
REFERÊNCIAS
SOUZA, J. C. F. Intérpretes CODAs: construção de identidades. 2014. Dissertação (Mestrado em Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
QUADROS, R. M. de; CRUZ, M. R. G. Estudos experimentais com bilíngues bimodais: aspectos metodológicos e implicações para a pesquisa. Revista Linguíʃtica, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 1-25, 2020.
QUADROS, R. M. de; KARNOPP, L. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: ArtMed, 2004.
PRESTON, P. Mother Father Deaf: living between sound and silence. Cambridge: Harvard University Press, 1994.
QUADROS, R. M. de; MASSUTTI, R. Codas: uma ponte entre dois mundos. O Som dos Sinais, 2007. Disponível em: https://osomdossinais.blogspot.com/2013/07/codas-uma-ponte-entre-dois-mundos.ht. Acesso em: 7 mar. 2025.