DE FÉRIAS COM O PET | Um loureio sem salvação
Débora Klug
Bolsista PET-Letras
Letras Português
As Metamorfoses foram escritas pelo poeta romano Ovídio, por volta do ano 8 d.C. O livro é uma coletânea de mitos e lendas da mitologia greco-romana, organizada de maneira que traça a história do mundo desde sua criação até a deificação de Júlio César. O principal tema da obra é a metamorfose, isto é, a transformação das pessoas, deuses e até mesmo de objetos, em algo diferente – seja por vontade própria ou por punição divina.
A obra também oferece uma visão cultural e religiosa do mundo antigo, mostrando como as crenças e os mitos influenciaram as pessoas daquela época. É possível observar uma série de padrões, elementos simbólicos, estruturas sociais e comportamentos que, dada a grande influência da cultura greco-romana na nossa cultura ocidental até os dias de hoje, torna o estudo das obras clássicas muito interessante e substancial para compreender a nossa sociedade atual.
Apesar de mais de dois mil anos terem se passado desde que os mitos foram escritos, um dos padrões que se repete nos dias de hoje, e que se mostra em diversas passagens da obra, em vários mitos e várias metamorfoses, é a condição subalternizada da mulher, do seu desejo e da sua autonomia, que apresentarei através de uma leitura crítica do mito de Dafne e Apolo.
Em geral, as mutações são concedidas por deuses. No caso das mulheres, as mutações são colocadas, à primeira vista, como atos misericordiosos dos deuses, como uma alternativa de salvá-las da própria condição de ser mulher. Porém, entendemos que através de um olhar mais atento e crítico, percebe-se que essas metamorfoses se dão sempre em contextos de crueldade, abuso e privação, a exemplo da metamorfose de Dafne (livro I), que se dá pois Febo ridiculariza o ofício do Cupido; como castigo o deus do amor acerta Febo com a flecha da aljava do desejo e acerta Dafne com a flecha da aljava da repulsa. Logo, o castigo: Febo se atraí irracionalmente por Dafne, e a uma ninfa o recusa veementemente.
Dafne era uma virgem da deusa Ártemis, e é conhecida por sua grande beleza, por isso é cobiçada por vários homens. Entretanto, sempre os recusa, e, apesar de seu pai, o deus Pneu, lhe pedir um genro e netos, ela implora ao deus que possa se manter virgem para sempre, pois sente asco pelo matrimônio e deseja caçar e correr pelas florestas. O pai concede o desejo da filha, nos versos 488 e 489 do primeiro livro: “Ele de fato, lá consentiu – mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos.” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489).
Nesses versos fica ambíguo qual seria o proferidor da afirmação final, após meia risca, se é o pai de Dafne, ou o poeta que escreve. Observa-se o uso da terceira pessoa singular no início do verso, onde é clara a afirmação pela voz do poeta “Ele [o pai, Pneu] de fato, lá consentiu [o desejo de ser virgem]”. Entretanto, há uma mudança de pessoa para a segunda do singular após a meia risca, no trecho ambíguo “mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489 grifos nossos); essa mudança de pessoa pode sugerir uma mudança também na voz que profere a afirmação, não mais a voz do poeta, como no início do verso, mas agora a voz é do próprio pai de Dafne, que afirma a beleza da filha ser tanta, que não é permitido à ela realizar o desejo de ser virgem. Independente da ambiguidade, fica claro aqui que a condição de permanecer virgem, a condição de escolher sobre o próprio corpo e a própria vida, não pode ser uma escolha única e exclusiva da mulher.
Nos versos seguintes, Febo persegue Dafne para tentar conquistá-la, entretanto, ela foge correndo pela floresta. A ninfa começa a se cansar e Febo chega cada vez mais perto de agarrá-la, e quando ele consegue, ela implora ao pai que acabe com a sua beleza atraente. Os versos finais dessa metamorfose são:
‘Ajuda, pai’, gritou, “se vós, os rios, tender poder divino!
Extingue e transforma esta figura, demasiado atraente!’
Mal terminara a prece, e um pesado torpor lhe invade o corpo.
O macio peito da jovem é envolto por uma fina casca,
(Ovídio, 2007, livro I, 546-557)
Imagem: “Apolo e Dafne”, escultura em mármore de Gian Lorenzo Bernini, esculpida entre os anos 1622 e 1625.
Fonte da imagem: Internet – Postposmo
Descrição da imagem: a imagem é composta por três fotos em ângulos distintos da mesma escultura. A escultura é a figura de um homem, Apolo, agarrando pela cintura uma mulher, Dafne, que está com os braços erguidos e com expressão no rosto de desespero. As mãos da mulher possuem dedos que são galhos e folhas, assim como uma de suas pernas é em partes um tronco de uma árvore. Nas duas primeiras fotografias os ângulos permitem observar o rosto de Dafne, e a terceira fotografia mostra o peito dela e o lado direito de sua face se transformando em árvore. A expressão dos corpos das duas figuras sugere que a mulher tenta se esquivar do homem, enquanto ele tenta alcançá-la. Ambos estão seminus, e Apolo tem apenas um pano lhe cobrindo parte do corpo.
O deus Pneu atende o pedido da filha, e imediatamente a transforma em um loureiro. Febo, ao perceber a transformação abraça e beija a árvore, “mas o lenho aos beijos se esquiva”. Percebe-se que desde o início a ninfa recusou o deus do sol. Ainda implorou ao pai que lhe livrasse de sua beleza para que cessasse a perseguição, e após a metamorfose, Dafne já sendo uma árvore tenta escapar do toque de Febo. Apesar disso, no final do mito ele nomeia o loureiro como a sua árvore, que estará sempre em seus cabelos, em sua cítara e em sua aljava, que guardará os umbrais das portas e terá a honra perpétua. A situação toda se contrói de maneira a romantizar como um grande ato de amor as atitudes de Febo. Porém, considerando uma leitura crítica atual a partir de valores e crenças que se distanciam daqueles da Grécia Antiga, pode-se afirmar que é evidente nos versos que o expresso desejo de Dafne, sua repulsa e asco, não apenas por Febo, mas também pelo matrimônio e as relações conjugais, foi ignorado pelo deus do sol. Ao final, de maneira muito estranha, a ninfa, agora árvore, aceita as honras dadas à ela por Febo, abanando a copa. Fica o questionamento do por que Dafne, que recusou o deus até o fim de sua existência humana, no final concordaria com ele, como se no fim cedesse à sua vontade, já desprovida de autonomia para negar os caprichos de Febo. Essa passagem condensa em si a condição da mulher e de seu desejo na época, que em últimas instâncias é sempre subordinado ao desejo do homem, e também ilustra como era idealizada e romantizada toda a trajetória da conquista entre homem e mulher, desconsiderando o querer da mulher. Mesmo após ser transformada em loureiro, Dafne ainda é beijada e ainda tenta se esquivar com o corpo que agora é tronco. Depois de toda a recusa inflexível, Febo ainda a nomeia como sua. Ou seja, a vontade da mulher foi contrafeita até o último segundo de sua existência humana, e também durante sua existência como loureiro.
PS: Essa reflexão se deu durante a realização do trabalho final da disciplina de Estudos Literários IV – Literatura Latina e Textos Fundacionais, feito em parceria com Ariadne Toledo, a quem o mito de Dafne e Apolo primeiramente chamou a atenção para o estudo.
REFERÊNCIA
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução: Paulo Farmhouse. Lisboa: Cotovia, 2007.