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Contexto Colonial: Políticas Linguísticas nas Filipinas

08/04/2025 16:15

Por Izabel Bayerl e Gabriela Muller
Letras-Português

Bolsista PET-Letras e autora convidada

As Filipinas são um país formado por diversas ilhas localizadas no Sudeste Asiático. A colonização das Filipinas foi feita pela Espanha, entre os anos de 1565 e 1898. Os espanhóis chegaram às ilhas em 1521, quando o navegador português Fernão de Magalhães desembarcou a mando do rei espanhol Carlos I. Somente em 1565, no entanto, foi estabelecido o primeiro forte espanhol em território filipino, na ilha de Cebu, por Miguel López de Legazpi, consolidando a presença espanhola e iniciando o processo de colonização.  A colonização espanhola nas Filipinas foi marcada por diversas imposições sociais, econômicas e culturais. No país, assim como nas colônias espanholas nas Américas, a igreja acompanhou os colonizadores com o objetivo de catequizar os povos nativos.

Esse processo de catolicização foi um aspecto essencial da dominação colonial, especialmente considerando a grande distância entre as Filipinas e a Europa. Em 1571, a Espanha estabeleceu um governo colonial em Manila e, a partir daí, implementou uma série contínua de reformas políticas, sociais, culturais e religiosas (Zeng; Li, 2023). Entre as ações implementadas pelos colonizadores estava o sistema de encomiendas, dando terras a colonizadores em troca da catequização dos nativos, o  monopólio comercial junto a exploração do trabalho nativo nas plantações de produtos como tabaco e açúcar e a tentativa de impor elementos da cultura espanhola, incluindo o idioma, na sociedade filipina. Segundo  Baltar Rodrigues, em seu artigo Filipinas en el contexto del sistema colonial español (2019, p.88-89):

O conservadorismo, como traço distintivo do império espanhol, atingiu manifestações excepcionais nas ilhas Filipinas. O isolamento imposto pela distância entre a colónia e a metrópole, o baixo valor económico das ilhas para o Tesouro Real, a escassa disponibilidade de funcionários capazes e interessados em fazer carreira em regiões tão distantes e a atividade voraz das corporações religiosas, conjugaram-se ao longo de três séculos e meio para transformar as Filipinas numa verdadeira peça de museu do decadente império ultramarino espanhol.

Em 1898 os Estados Unidos da América (EUA) adquiriram as Filipinas da Espanha, proporcionando maiores desenvolvimentos econômicos e comerciais no arquipélago que anteriormente sofria com as diversas restrições impostas pelo colonizador espanhol. “O tipo americano de administração colonial, baseado em formas participativas e com tendência para o autogoverno, encorajou e reforçou os sextantes filipinos mais moderados e preparou-os para a independência sob a proteção americana.” (Baltar Rodrigues, 2019, p.102). Assim, a independência das Filipinas foi formalmente oficializada pelos EUA, em 1946, depois da Segunda Guerra Mundial. Porém, em 1941, o Japão passou a ocupar as Filipinas pelo curto período de 3 anos.

Pensando na questão dos efeitos das políticas linguísticas coloniais na educação e no acesso ao conhecimento na ex-colônia nas Filipinas, é interessante destacar que durante o domínio da Espanha foi instaurada a decisão do ensino da língua espanhola para haver a diferenciação entre a elite – sob supervisão do clero – e a população nativa, e também pelas questões do multilinguismo ali presente (Baltar Rodrigues, 2019). Diferentemente, quando os EUA agregaram as Filipinas a seu domínio foi estabelecida uma “[…] política de assimilação das línguas, que implicou na promoção do inglês nas Filipinas e na instituição da educação em inglês para todos” (Sibayan; Gonzalez, 2011 apud Zeng; Li, 2023). Dessa forma, o inglês passou a ser a língua dominante sendo altamente ensinada nas escolas, mas em contrapartida as línguas indígenas presente nas Filipinas foram deixadas de lado. Por fim, durante o período da ocupação japonesa, foi instaurada a Constituição de 1943, que designou a língua nativa Tagalo como oficial com intuito de sua disseminação no país recebendo assim uma “superioridade linguística”; porém, as demais línguas indígenas continuaram excluídas (Zeng; Li, 2023). Os efeitos dessas políticas linguísticas instauradas por todos os três colonizadores das Filipinas ao longo dos anos resultaram em um país multilíngue, sendo o Inglês e o Tagalo línguas oficiais, e a marginalização das línguas indígenas do país.

Com o fim do período colonial nas Filipinas, o Filipino e o Inglês foram mantidos como línguas oficiais do país. Conforme discutido anteriormente, no contexto educacional ambas as línguas são contempladas, cada uma com suas especificidades, o que refletiu em um país com uma ideologia do pluralismo linguístico, assimilação linguística e internacionalismo (Zeng; Li, 2023). No período pós-independência, foi defendido a adoção da língua dominante na sociedade para promover inclusão social e ascensão econômica. Somado a isso, o internacionalismo viabiliza que as Filipinas sejam relevantes e competitivas no contexto global com o uso de uma língua mundialmente utilizada, neste caso, o Inglês. Assim, a consequência de manter a língua colonial como oficial no país se dá no maior acesso a oportunidade sociais e econômicas, facilitando a comunicação em nível internacional, proporcionando maior influência das Filipinas em questões econômicas globais. Atualmente, as Filipinas já observam os resultados positivos de sua internacionalização. Segundo, Grangeia e López (2016), “O país já não é essencialmente dependente da agricultura; é provido de um setor de serviços e um ambiente amigável para negócios na Ásia”.

Por outro lado, a decisão de manter o Inglês como uma das línguas oficiais das Filipinas e promover a educação com a língua colonial traz implicações negativas ao promover legados coloniais e desvalorizar as línguas indígenas (Zeng; Li, 2023). A tentativa de manter um pluralismo linguístico gerou uma dinâmica na qual o uso contínuo do Inglês como língua oficial nos diversos setores da vida pública e educacional tem implicações diretas na preservação e promoção das línguas locais. Uma das consequências disso é a criação de novas variedades de línguas,  que aglutinam a língua colonial com as línguas locais: “uma variedade nativizada de Inglês surgiu nas Filipinas, e é distintamente filipina’’ (Zeng; Li, 2023 apud Borlongan, 2022). O Taglish é um code switching entre Tagalo (e outras línguas nativas) e o Inglês, misturando o uso das duas línguas no discurso (Bautista, 2004) e é predominante na área metropolitana de Manila, embora também tenha se difundido entre as comunidades filipinas também fora do país. Essa variante, que surgiu da coexistência entre a língua colonial e as línguas Filipinas, se tornou mais do que uma alternância de código, e hoje em dia é tida como uma resistência local à predominância do Inglês e à desvalorização das línguas nativas.

REFERÊNCIAS

BALTAR RODRÍGUEZ, E. Filipinas en el contexto del sistema colonial español. Tzintzun. Revista de Estudios Históricos, [S. l.], n. 18, p. 87-102, 2019. DOI: 10.35830/treh.vi18.1597. Disponível em: https://www.tzintzun.umich.mx/index.php/TZN/article/view/1597. Acesso em: 6 nov. 2024

BAUTISTA, M. L. S. Tagalog-English code switching as a mode of discourse. Asia Pacific Education Review, v. 5, p. 226–233, 2004. DOI: 10.1007/BF03024960. Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF03024960. Acesso em: 9 nov. 2024.

GRANGEIA, M. L.; LÓPEZ, M. Cultura política e Estado na América latina e Filipinas. Século XXI – Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 5, n. 2, p. 109–136, 2016. DOI: 10.5902/2236672521591. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/seculoxxi/article/view/21591. Acesso em: 9 nov. 2024.

ZENG, J.; LI, X. Ideologies underlying language policy and planning in the Philippines. Humanit Soc Sci Commun v. 10, n. 405, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1057/s41599-023-01911-8. Acesso em: 2 nov. 2024.

 

Afinal, o teor humorístico nas redes sociais pode disfarçar a violência linguística?

02/04/2025 06:46

  Por Julia Martins

                                                                                                              Bolsista PET-LETRAS

                                                                                      Letras Língua Portuguesa e Literaturas

Segundo Alencar e Silva (2013), as palavras não possuem um significado fixo, mas, o sentido depende do contexto e grupo social em que são reproduzidas. Afinal, “Se não há significados imanentes à língua, que peso atribuir aos significados das  palavras  que  ferem,  machucam,  paralisam?” (Alencar; Silva, 2013, p. 135). Os autores também explicam que a linguagem não acontece em um vazio, como se cada conversa fosse um momento isolado no tempo. Pelo contrário, toda interação linguística está conectada a uma história maior, a relações sociais e a práticas culturais.

Essa perspectiva dialoga com a análise de boyd (2010) sobre a comunicação nas redes sociais, que funcionam apenas como uma ferramenta em que as pessoas têm a possibilidade de se mostrar e observar os outros. Ela explica também que, muitas vezes, os usuários ativos são tratados como “fantoches”, ou seja, são manipulados pelas mudanças nas informações, e pela forma como interagem uns com os outros nas redes. Ou seja,  se como argumentam Alencar e Silva, as palavras carregam sentidos que nascem das relações sociais e culturais, então, no ambiente digital, essa construção de significados é dobrada pela forma como a tecnologia organiza e filtra as interações. Pensando no cenário tecnológico, para a antropóloga Abidin (2021), o ponto se refere a teoria dos “públicos refratados”, um grupo formado por usuários que ajudam a esconder suas próprias ações, criando uma “cortina de fumaça”. Isso facilita a circulação de mensagens de forma ampla e acessível, utilizando grupos privados e plataformas fechadas. Visando exemplificar esses conceitos, observamos abaixo uma publicação retirada da mídia social “X”.

Título da imagem: Tweet do humorista Júlio Cocielo
Descrição da imagem: A imagem é uma captura de tela da rede social X, com um tweet publicado pelo usuário Júlio Cocielo, que diz “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein” em 30 de junho de 2018. A publicação teve 2.722 retweets e 5.139 curtidas.

 

Na captura apresentada, vemos uma publicação feita por Júlio Cocielo, conhecido como uma das maiores figuras humoristas em âmbito nacional atualmente, acumulando mais de 8 milhões de seguidores na rede.

Para compreendermos melhor o conteúdo, é necessário uma contextualização dos eventos ocorridos no ano de 2018, tratando-se de uma comemoração global relacionada a copa do mundo. Durante os jogos futebolísticos, o influenciador direciona-se ao profissional em campo denominado: “Mbappé’’, empregando em suas palavras a tonalidade humorística em conjunto da linguagem internauta, e de certa forma, ocultando a violência presente e dirigida ao indivíduo afrodescendente.

 

Algumas horas após a publicação, Cocielo, que mantinha seu conteúdo humorístico destinado ao público-alvo, tornou-se vulnerável diante do desaparecimento da cortina de fumaça. Ou seja, a publicação tomou proporções mundiais, alcançando diversas camadas da redes, e claro, dividindo opiniões. Por um lado, enquanto o público já consumidor das pautas desenvolvidas pelo humorista; afirma que a conotação da publicação é relacionada à “velocidade’’ e à “corrida rápida’’ de Mbappé, o público refratado contra-argumenta e expõe pontos históricos de racismo, dos quais, as figuras negras sempre são vinculadas ao crime e à violência. No meio digital, somos bombardeados por inúmeros episódios de violência linguística, que acabam sendo ocultados pela tonalidade humorística. Nesse sentido, vejamos outro exemplo semelhante ao de Julio Cocielo:

Titulo da imagem: Tweet do humorista Rodrigo Fernandes
Descrição da imagem: A imagem é uma edição que utiliza no fundo a foto de Will Smith e Jaden Smith em um estádio lotado, junto com um tweet de Rodrigo Fernandes, que diz: “Tenho quase certeza que o filho do Will Smith me pediu dinheiro ontem na esquina da Rua Haddock Lobo dizendo que tava olhando meu carro.”.

 

 

Algumas semanas depois, a imagem dos atores Will Smith e seu filho Jaden Smith repercutiram nas redes sociais, pela aparência “cansada e abatida” da figura mais jovem em meio às comemorações esportivas. Diante do cenário, temos a inserção do comediante Rodrigo Fernandes — que atualmente, acumula mais de 400 mil seguidores na rede social twitter. Após a publicação relacionada aos atores, a figura conhecida como Jacaré Banguela chegou a ficar entre os assuntos mais comentados nas mídias.

 

Novamente, como manobra para ocultar a violência, o comediante utiliza da linguagem humorística. No texto, o ator Jaden Smith é associado aos trabalhadores popularmente conhecidos como ‘flanelinhas’, que frequentemente se encontram em situações de fragilidade econômica ao oferecerem ajuda em estacionamentos em troca de remuneração. Porém, diferente do episódio citado nos parágrafos anteriores, o influenciador é recebido por discussões centralizadas no teor preconceituoso e racista explícito no texto. Segundo os usuários, ambas situações direcionadas a Mbappé e Jaden – renomadas estrelas mundiais, só reforçam que o preconceito racial não é atrelado ao financeiro.

Por fim, com as análises apresentadas, é relevante lembrar novamente dos conceitos de Abidin (2021), quando mostra que o universo online (dentro das redes) e offline (fora das redes) não podem mais ser separados, destacando como as interações digitais têm impacto no mundo concreto. Essa visão se alinha também com os estudos de Silva e Alencar (2013), quando afirmam que a linguagem não é apenas uma comunicação ou representação de eventos, mas uma ação com efeitos reais. No digital, a linguagem pode ser utilizada como um mecanismo de controle e poder, capaz de causar danos físicos e emocionais, como qualquer outro tipo de violência.

REFERÊNCIAS

ABIDIN, Crystal. De “públicos em rede” a “públicos refratados”: uma estrutura complementar para pesquisar estudos “abaixo do radar”. Social Media + Society, v. 7, n. 1, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1177/2056305120984458. Acesso em: 01 abr. 2025.

BOYD, Danah. Sites de redes sociais como públicos em rede: possibilidades, dinâmicas e implicações. In: PAPACHARISSI, Zizi (org.). Networked self: identity, community, and culture on social network sites. Nova York: Routledge, 2010. p. 39-58.

SILVA, Daniel do Nascimento e; ALENCAR, Claudiana Nogueira de. A propósito da violência na linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 55, n. 2, p. 129-141, jul./dez. 2013. Disponível em: https://doi.org/10.20396/cel.v55i2.8637294. Acesso em: 01 abr. 2025.

Hostels: espaço de intercâmbio linguístico e cultural acessíveis

20/03/2025 08:19

Por Paula Scalvin da Costa

Bolsista PET Letras

Letras-Inglês

Viajar consegue ser comumente associado à descoberta de novos lugares, culturas e formas de ver o mundo. A prática de viajar, ao longo do tempo, foi se distanciando do simples turismo e transformando-se em uma experiência mais profunda de aprendizado, crescimento pessoal e expansão de horizontes. Para muitos, a viagem tornou-se uma oportunidade de imersão total, em que o contato direto com diferentes culturas e idiomas se traduz em experiências enriquecedoras. Nesse contexto, os hostels surgem como espaços privilegiados para vivências culturais e linguísticas, oferecendo não apenas hospedagem acessível, mas também um ambiente dinâmico e multicultural, onde as interações entre viajantes de diferentes origens promovem um verdadeiro intercâmbio linguístico e cultural.

Diferentemente dos hotéis convencionais, que geralmente priorizam a privacidade e os serviços personalizados, os hostels incentivam a socialização e o contato entre os hóspedes. Isso ocorre principalmente pela estrutura do local, com dormitórios compartilhados, áreas comuns e atividades coletivas, que favorecem o encontro de pessoas de diversas partes do mundo. Esse ambiente propício à interação faz dos hostels um terreno fértil para a prática de idiomas, já que os viajantes se veem imersos em situações reais de comunicação, onde precisam utilizar diversas línguas para se fazer entender.

O aprendizado de uma língua estrangeira depende não só da teoria, mas também da prática constante em contextos autênticos. Nos hostels, essa prática ocorre de forma espontânea e natural, seja durante um café da manhã compartilhado, em passeios em grupo ou até mesmo na troca de receitas culinárias na cozinha comum. Nesse cenário, o viajante é desafiado a se comunicar em uma língua que talvez ainda não domine completamente, forçando-o a ouvir, falar e se expressar de maneira prática. Muitos relatam que a experiência de convivência diária nesses espaços é uma das formas mais eficazes de aprendizagem linguística, comparável a um intercâmbio formal.

Além do intercâmbio linguístico, os hostels desempenham um papel vital na promoção da troca cultural entre seus hóspedes. Ao reunir pessoas de diferentes países, os hostels oferecem uma oportunidade única para os viajantes se conectarem com costumes, tradições e pontos de vista diversos. Cada conversa, cada interação, carrega consigo uma experiência cultural única, revelando desde pequenas nuances do cotidiano, como os diferentes modos de cumprimento, hábitos alimentares ou gestos de hospitalidade, até discussões mais profundas sobre valores e tradições que formam a base da identidade de cada um.

Em um hostel, a diversidade cultural é vivenciada em sua forma mais autêntica e acessível. As amizades que surgem nesses ambientes frequentemente ultrapassam as barreiras geográficas e temporais, criando redes de contato que podem resultar em reencontros em diferentes partes do mundo ou até mesmo em parcerias profissionais e pessoais. As interações no hostel ajudam a construir um ambiente de respeito e troca, onde as barreiras culturais vão sendo suavizadas à medida que as pessoas compartilham suas histórias e suas realidades.

Outro aspecto fundamental que torna os hostels um excelente ambiente para o intercâmbio linguístico e cultural é a possibilidade de trabalho voluntário. Muitos hostels oferecem a oportunidade de trocar horas de trabalho por hospedagem e alimentação, criando uma experiência de imersão mais profunda e prolongada. Essa modalidade de trabalho voluntário oferece aos viajantes não só uma economia significativa, mas também a chance de praticar idiomas e desenvolver habilidades valiosas, como a resolução de problemas, a adaptabilidade e a comunicação interpessoal.

O trabalho voluntário em hostels pode envolver diversas atividades, como recepção de hóspedes, organização de eventos, limpeza, cozinha e marketing. Essas experiências proporcionam aos viajantes uma vivência direta e prática da língua e da cultura local, além de contribuírem para a criação de uma rede de amizades e contatos profissionais. Além disso, o trabalho voluntário permite aos viajantes uma sensação de pertencimento e contribuição para a comunidade, o que fortalece ainda mais o caráter social da experiência.

Nos últimos anos, a tecnologia tem se mostrado uma grande aliada na promoção do intercâmbio linguístico e cultural, e isso também se reflete no cenário dos hostels. Plataformas digitais como Worldpackers, Workaway e Hostelworld são excelentes exemplos de como a tecnologia pode facilitar a conexão entre viajantes e hostels que oferecem oportunidades de voluntariado e troca cultural. Essas plataformas permitem que os viajantes encontrem hostels em diversos lugares do mundo que oferecem desde acomodações até a oportunidade de realizar trabalho voluntário em troca de hospedagem, alimentação ou até experiências culturais imersivas.

O Worldpackers, por exemplo, conecta viajantes com mais de 2.000 hostels ao redor do mundo que oferecem programas de voluntariado em diferentes áreas, desde educação até conservação ambiental. O uso dessas plataformas possibilita uma abordagem mais organizada e acessível para quem deseja se engajar em experiências de intercâmbio, tanto linguístico quanto cultural. Os usuários podem avaliar as experiências de outros viajantes, o que ajuda a garantir a transparência e a qualidade das experiências oferecidas.

Além disso, plataformas de redes sociais, como Instagram e YouTube, têm sido utilizadas por influenciadores para compartilhar suas experiências em hostels ao redor do mundo. Influenciadores de viagens frequentemente documentam sua vivência em hostels, proporcionando aos seguidores uma visão autêntica e realista do que esperar. Muitos deles, ao compartilharem suas histórias, oferecem dicas e conselhos valiosos sobre como aproveitar ao máximo essas experiências, seja para aprender um novo idioma ou para se envolver em projetos culturais. O conteúdo gerado por influenciadores também ajuda a divulgar hostels menos conhecidos, mas que oferecem experiências enriquecedoras.

Além da troca presencial de idiomas e culturas, a tecnologia também tem facilitado a criação de experiências linguísticas no ambiente virtual. Plataformas como Duolingo, Babbel e Tandem oferecem aos usuários a oportunidade de praticar idiomas com falantes nativos por meio de trocas linguísticas online. Embora não substituam totalmente a imersão física em um ambiente multicultural, essas ferramentas podem ser complementares, permitindo que os viajantes se preparem para suas experiências em hostels, aprendendo o básico do idioma antes da viagem.

Ao escolher um hostel como opção de hospedagem ou de trabalho, o viajante não só economiza, mas também investe em uma experiência transformadora e autêntica, que ultrapassa as barreiras do turismo tradicional. O verdadeiro intercâmbio acontece nas interações cotidianas, nas trocas culturais espontâneas e nas amizades formadas em espaços que, embora simples, têm o poder de transformar a maneira como vemos o mundo e nos relacionamos com ele.

Crescendo entre línguas: a experiência dos CODAs

09/03/2025 10:22

Por Franciane Ataide Rodrigues

Letras Libras

Bolsista PET-Letras

 

As pessoas ouvintes filhas de pais surdos são chamadas de CODAs, sigla para Children of Deaf Adults. A composição familiar pode se dar de três maneiras: mãe surda e pai ouvinte, pai surdo e mãe ouvinte ou ambos, pai e mãe surdos. O CODA, geralmente, cresce em meio a duas culturas, duas línguas, e no contato com muitas experiências visuais. As pesquisas acadêmicas em torno de filhos de pais surdos ainda são recentes no Brasil, pois grande parte desses estudos encontram-se na América do Norte e na Europa (Souza, 2014, p.35).

Descrição de imagem: a imagem é um cartaz do  filme “CODA”.  De plano de fundo no canto superior esquerdo um farol com um céu dourado pelo pôr do sol. No centro da imagem uma família de 4 pessoas sentadas na traseira de uma caminhonete azul. Da direita para a esquerda, uma jovem que apoia a cabeça no ombro de um homem barbudo de boné, que sorri para uma mulher loira ao seu lado; ela também sorri. Na direita, um rapaz jovem de jaqueta jeans que está olhando feliz  para o grupo. Em caixa alta, no canto inferior esquerdo, o título “Coda”.

 

Na comunidade surda, existe uma crença de que todos os CODAs possuem fluência em Libras e uma grande predisposição para se comunicar nessa língua. No entanto, isso nem sempre corresponde à realidade. Como destacado por Quadros e Cruz (2020), apesar de CODAs crescerem em casas onde a língua de sinais é usada, eles variam consideravelmente na fluência desta língua. Em alguns casos, dentro do ambiente doméstico, há uma maior exposição a sinais caseiros, especialmente quando os próprios pais não possuem grande fluência em Libras – no caso do Brasil. Nessas situações, a comunicação familiar acaba ocorrendo por meio de convenções criadas dentro da própria família. Por outro lado, em lares onde os pais se comunicam fluentemente em Libras, os filhos tendem a ter uma predisposição maior para aprender a língua. Entretanto, é fundamental considerar os diversos contextos culturais e familiares para evitar generalizações que desconsiderem ou apaguem as diferentes realidades vividas por essa população.

Pensando no contexto de aquisição da linguagem, a literatura nos diz que a convivência com outros falantes da língua a ser adquirida e o recebimento de estímulos de comunicação durante o período crítico de aquisição da linguagem são fatores importantíssimos para que a criança se desenvolva na língua. Como afirmado por Quadros e Karnopp (2004), a aquisição da língua oral pela criança CODA está intimamente ligada ao nível de exposição e estímulo que recebe, bem como à fluência dos pais e familiares na língua majoritária.  Dito isso, é possível ver diferentes níveis de desenvolvimento de linguagem nessas crianças, a depender do nível de estímulo que recebem, a fluência e contato dos pais e da família na língua portuguesa e, sobretudo, a idade em que entrou na escola.

Pensando no contexto do crescimento e dinâmicas da vida, a realidade do CODA pode ter algumas diferenças em relação às crianças ouvintes, pois desde muito novas assumem, em algumas situações, o papel de ponte de comunicação entre o adulto surdo e o mundo ouvinte. Isso não ocorre apenas em situações com estranhos, como em consultas médicas, lojas, etc., mas também no contexto familiar, na relação com tios, sobrinhos e avós, quando estes são ouvintes, pois muitas vezes a família não é capaz de se comunicar com o surdo. Como é observado por Preston (1994), desde cedo, muitos filhos ouvintes de pais surdos assumem o papel de intérpretes informais, mediando a comunicação entre seus pais e o mundo ouvinte, o que pode impactar seu desenvolvimento e identidade.

Por fim, a contribuição dos surdos pais de crianças ouvintes na sociedade passa por algumas responsabilidades semelhantes às dos pais ouvintes, como a criação de um ser humano ético, responsável e que contribua positivamente para a sociedade, dar suporte e segurança para a criança. Além disso, há especificidades que surgem a partir da dinâmica familiar como apontam Quadros e Massutti (2007) quando descrevem os conflitos gerados pela convivência do CODA com dois grupos distintos e representações linguísticas díspares – ouvintes, representados pela Língua Portuguesa, e surdos, pela Libras.

Diante desse contexto, é importante reconhecer que muitas crianças CODAs acabam sendo tratadas como “mini adultos”, assumindo precocemente responsabilidades que vão além do que seria esperado para sua idade. Ao desempenharem o papel de intérpretes informais para seus pais em situações complexas, como consultas médicas, delegacias ou serviços bancários, essas crianças são expostas a informações sensíveis e, muitas vezes, emocionalmente desafiadoras. Esse acúmulo precoce de responsabilidades pode impactar seu desenvolvimento emocional e psicológico, gerando sobrecarga e ansiedade. Por isso, é fundamental que espaços públicos contem com intérpretes de Libras profissionais, garantindo que a comunicação entre surdos e ouvintes ocorra de maneira adequada, sem que as crianças precisem assumir um papel que não lhes cabe. O reconhecimento dessa necessidade é um passo essencial para assegurar os direitos linguísticos da comunidade surda e preservar a infância dos CODAs.

 

 

REFERÊNCIAS

SOUZA, J. C. F. Intérpretes CODAs: construção de identidades. 2014. Dissertação (Mestrado em Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.

QUADROS, R. M. de; CRUZ, M. R. G. Estudos experimentais com bilíngues bimodais: aspectos metodológicos e implicações para a pesquisa. Revista Linguíʃtica, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 1-25, 2020.

QUADROS, R. M. de; KARNOPP, L. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: ArtMed, 2004.

PRESTON, P. Mother Father Deaf: living between sound and silence. Cambridge: Harvard University Press, 1994.

QUADROS, R. M. de; MASSUTTI, R. Codas: uma ponte entre dois mundos. O Som dos Sinais, 2007. Disponível em: https://osomdossinais.blogspot.com/2013/07/codas-uma-ponte-entre-dois-mundos.ht. Acesso em: 7 mar. 2025.

O papel da memória como ato político

05/03/2025 13:10

 

Por Hanna Boassi

Bolsista PET – Letras | CNPq

Letras – Português

 

O que não foi dito também tem significado.

-Eni Orlandi

 

O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional nesse último domingo (2). A narrativa acompanha a história de Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, durante o período da Ditadura Militar no Brasil. A construção de memória no filme pode ser analisada a partir da relação entre o discurso, a narrativa cinematográfica e o contexto histórico em que a história se insere. A memória, no contexto do filme, não é apenas um resgate do passado, mas uma reconstrução subjetiva que se dá na interseção entre os testemunhos, os documentos e as marcas discursivas deixadas pelo período ditatorial.

Ainda Estou Aqui não apenas relata a dor e a luta de Eunice, mas evidência como a ausência se manifesta na memória individual e coletiva. O desaparecimento de Rubens Paiva não é apenas um evento trágico pessoal, mas uma lacuna histórica que reverbera até os tempos atuais, revelando as tensões entre o esquecimento imposto e a resistência em manter viva a lembrança de pessoas, que como Rubens, foram silenciadas.  A estética do filme reforça essa construção ao utilizar uma narrativa fragmentada, intercalando cenas de arquivo, depoimentos e reconstruções ficcionais para dar forma à memória de Eunice. É nesta materialidade que podemos pensar uma memória discursiva:

Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador. […] Não é de se admirar, nessas condições, que a ideia de uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que desempenhou o papel de ponto de referência” (Pêcheux, p. 50, 1999).

No caso de Eunice, essa disputa adquire uma dimensão mais complexa diante do Alzheimer; ao ser abordada essa condição no filme, reforça-se a fragilidade de uma memória individual e a necessidade da construção de uma memória coletiva que resista ao esquecimento. Sua luta não desaparece junto de sua memória, pois sua trajetória se inscreve na memória coletiva e no discurso público, que mantém viva a recordação de Rubens Paiva e de tantas outras vítimas da Ditadura. Em sua cena final, Fernanda Montenegro, ao interpretar Eunice já em estado avançado do Alzheimer, diante de uma televisão onde se passa uma reportagem sobre seu marido desaparecido, não pronuncia uma palavra, mas no seu olhar observamos a recuperação de uma memória que, embora fragmentada e instável, ainda resiste – ainda está ali. O silêncio de Eunice não é vazio, mas carrega significado.

Em Maio de 68, Eni Orlandi aponta que a forma sujeito-histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso (Orlando, 1999, p. 61); essa forma dialoga com o fato de que, Eunice Paiva, tanto em sua vida quanto em sua representação no filme, encarna essa contradição. Se, por um lado, sua identidade pessoal se dissolve devido à doença, por outro, sua história se mantém como parte de um coletivo que resiste ao apagamento. Ainda Estou Aqui transcende a história pessoal de Eunice e Rubens Paiva e se insere em um debate mais amplo sobre como lembrar é um ato político. O filme reafirma que a memória não é apenas um resgate do passado, mas um campo de disputa no presente, onde diferentes narrativas se confrontam para garantir que o que for perdido não se torne definitivo.

 

REFERÊNCIAS

PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da Memória. Tradução e Introdução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.

ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999, p.59-71.

DE FÉRIAS COM O PET | Visitando o Isabella Stewart Gardner Museum

18/02/2025 08:20

Por Laiara Machado Serafim

Letras- Português

Bolsista PET-Letras

 

Em meio às ruas geladas de Boston, MA, encontra-se o Isabella Stewart Gardner Museum. Essa mansão transformada em museu é um portal para outra época, um espaço onde arte, história e um dos maiores roubos da história se cruzam.

O museu, que abriga uma coleção de arte europeia, asiática e americana, incluindo pinturas, esculturas, tapeçarias e objetos decorativos, foi construído entre 1898 e 1901, por Isabella Stewart Gardner (1840-1924), uma colecionadora e patrona das artes. Inspirado nos palácios venezianos do século XV, o edifício é uma obra de arte em si, com colunas renascentistas, tapeçarias e varandas ornamentadas. Ao atravessar suas portas, a sensação é de entrar em um espaço vivo, onde cada objeto parece contar uma história. No centro do museu, um jardim interno iluminado por luz natural se revela como um refúgio silencioso, com esculturas e vegetação.

 

Fonte: arquivo pessoal. Jardim interno do museu.

Descrição da foto: A imagem é uma foto do jardim interno do museu, tirada do terceiro andar. O jardim é repleto de vegetação e circulado por altas paredes e janelas da estrutura antiga do casarão. 

 

Antes mesmo da fama do museu, Isabella Stewart Gardner já era uma figura marcante. Rica e apaixonada por arte, desafiou as convenções sociais ao viajar sozinha e adquirir obras com um olhar singular. Com o tempo, e após herdar a fortuna do pai, ela acumulou uma coleção de mais de 7.500 pinturas e objetos que abrangem a antiguidade até a década de 1920. Sua coleção inclui trabalhos de Rembrandt, Vermeer, Ticiano e Sargent.

O museu foi projetado por ela para proporcionar uma experiência sensorial completa. Depois que o edifício foi concluído em 1902, Gardner passou um ano cuidadosamente curando e instalando sua coleção em meio aos três andares de espaços de galeria intimistas. O museu homônimo foi inaugurado em 1903. Gardner viveu nos aposentos privados do quarto andar até sua morte, em 1924. Seu testamento determinava que nada no espaço poderia ser alterado, mantendo a disposição das obras exatamente como estava no dia de sua morte. Caso essa condição fosse violada, toda a coleção seria doada para Harvard.

Fonte: arquivo pessoal. Pintura de Gardner de John Singer Sargent

Descrição da foto: A imagem é uma foto do quadro pintado por Sargent. A pintura retrata Isabella Gardner, com um longo vestido preto e um grande decote.

 

O museu segue a visão estética de Gardner, com iluminação reduzida para preservar as obras e disposição intimista das peças. A disposição das pinturas e esculturas é um tanto aleatória e superlotada. E não há rótulos de identificação. Essa parecia ser exatamente a intenção estética de Gardner: um museu pessoal íntimo. Ela não queria uma aula de história da arte, era preciso que os espectadores encontrassem seu próprio significado.

Fonte: arquivo pessoal

Descrição da foto: A imagem é uma foto de uma das salas do museu, repleta de poltronas e mesas. Além de paredes verdes cheia de detalhes e ornamentadas.

 

Na madrugada de 18 de março de 1990, dois homens disfarçados de policiais entraram no museu e realizaram um dos maiores roubos de arte da história. Em apenas 81 minutos, levaram 13 obras, incluindo O Concerto de Vermeer, Cristo no Mar da Galileia de Rembrandt e esboços de Degas. Após renderem os guardas e prendê-los no porão, os homens tiveram tempo para escolher e retirar as peças. O critério de seleção sempre gerou dúvidas: algumas pinturas valiosas foram ignoradas, enquanto itens menos previsíveis, como um botão de bandeira napoleônica, foram levados.

O mais intrigante? Até hoje, nenhuma das obras foi recuperada. O mistério continua sem solução, alimentando teorias sobre mafiosos, colecionadores secretos e traições internas. Em 2013, autoridades afirmaram estar próximas de recuperá-las, mas o mistério persiste. No museu, as molduras vazias seguem expostas, um lembrete constante do crime e um convite à imaginação.

 

 

Fonte: arquivo pessoal. Moldura vazia no local em que ficava uma das obras roubadas

Descrição da foto: A imagem mostra uma das molduras vazias do museu, representando uma das obras roubadas. Ao lado, estão dispostos outras pinturas e objetos da casa.

 

O Isabella Stewart Gardner Museum não é apenas um repositório de arte, mas um espaço onde as histórias continuam a ecoar. O legado de Isabella, sua personalidade excêntrica e seu olhar visionário se fazem presentes em cada sala, em cada obra e, paradoxalmente, nas ausências deixadas pelo roubo de 1990. Mais de um século após sua inauguração, o museu permanece como um enigma aberto, desafiando o tempo e a curiosidade daqueles que cruzam seus portões. Ao sair, fica a sensação de que Isabella, com seu espírito irreverente, ainda observa os visitantes pelos corredores, satisfeita por ver sua criação continuar a intrigar e encantar.

 

REFERÊNCIAS

GARDNER MUSEUM. Home. Disponível em: https://www.gardnermuseum.org/. Acesso em: 10 fev. 2025.

GARDNER MUSEUM. The theft story. Disponível em: https://www.gardnermuseum.org/about/theft-story. Acesso em: 10 fev. 2025.

DE FÉRIAS COM O PET | ELON MUSK: ENTRE A INOVAÇÃO E A CONTROVÉRSIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

13/02/2025 07:34

Por Daniely Karolaine de Lavega

Bolsista PET Letras – CNPq

Letras Português

Elon Musk é um dos nomes mais comentados atualmente, tanto pelas inovações que promove quanto pelas controvérsias que causa. À frente de empresas como Tesla, SpaceX e Neuralink, ele se tornou uma referência no mundo da tecnologia. Porém, suas atitudes e declarações geram discussões polêmicas, principalmente sobre os limites da liberdade de expressão e como sua influência financeira impacta a política e a sociedade.

Foto: Patrick T. Fallon (2015)

Descrição da foto: Elon Musk vestindo um paletó cinza e uma camisa preta, enquanto gesticula com as mãos durante uma apresentação

 

Recentemente, Musk fez parte de um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), criticando publicamente o ministro Alexandre de Moraes. De acordo com Pelicciolli (2024), esse acontecimento pode ser interpretado como uma atualização da lógica colonial, na qual o capital transnacional afeta diretamente a soberania dos países. Esse conflito também revela como grandes empresários, especialmente os do setor tecnológico, têm desafiado a função reguladora do Estado e questionado instituições democráticas.

Além disso, a forma como Musk vem dirigindo a plataforma X levanta questões sobre liberdade de expressão e discurso de ódio. No Brasil, o debate sobre a regulação de conteúdo nas redes sociais é muito intenso, sobretudo em relação às decisões judiciais sobre fake news e discursos extremistas. Conforme Teixeira et al. (2022, p. 69), “a liberdade de expressão em seu processo criativo não pode ter limites, mas a exibição pública do resultado dessa liberdade tem que respeitar os limites da lei”. Assim, a visão de Musk sobre uma liberdade sem limites pode colidir com a necessidade de preservar a integridade moral das pessoas e manter a ordem pública.

As ações de Musk também podem ser compreendidas a partir da teoria do capitalismo desterritorializado, proposta por Deleuze e Guattari. Sob essa perspectiva, os grandes empresários da era digital operam além das fronteiras nacionais, desafiando as legislações locais e estabelecendo suas próprias normas. Nesse sentido, segundo Pelicciolli (2024), a atuação de Musk pode ser vista como uma diminuição do papel regulador do Estado no capitalismo globalizado, permitindo que empresários confrontem autoridades políticas e jurídicas sem considerar a estrutura legal existente.

Apesar dos projetos de Musk em áreas como inteligência artificial, exploração espacial e veículos elétricos serem considerados inovações que podem trazer benefícios para a humanidade, ele ainda é o centro de discussões políticas delicadas. No Brasil, sua postura acerca da “liberdade absoluta” nas redes sociais entra em desacordo com a visão jurídica de que esse direito deve ser equilibrado com a proteção à dignidade humana e o combate ao discurso de ódio (Neto, 2024).

Elon Musk demonstra ser uma ameaça à democracia e aos direitos fundamentais ao promover uma visão de liberdade de expressão sem restrições. Ao ignorar leis e permitir discursos extremistas em suas plataformas, Musk age de forma autoritária e usa a ideia de liberdade como pretexto, mas, na prática, isso favorece apenas seus próprios interesses como empresário.

REFERÊNCIAS

 

PELICCIOLLI, Patrick Deconto. Elon Musk e capitalismo desterritorializado. Jornal da Universidade. Porto Alegre. jul. 2024. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/elon-musk-e-capitalismo-desterritorializado/. Acesso em: 10 fev. 2025.

NETO, José Niones Correia. Liberdade de expressão, humor e discurso de ódio nas redes sociais: limites jurídicos e análise de casos no Brasil. 2024. 90 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2024. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/79005. Acesso em: 10 fev. 2025.

TEIXEIRA, Beatriz Caixeta Alves et al. Os limites da liberdade de expressão na sociedade do conhecimento. In: SEMANA DA PESQUISA JURÍDICA, 13., 2022, Patos de Minas. Anais […]. Patos de Minas: UNIPAM, 2023. p. 69-69. Disponível em: https://anais.unipam.edu.br/index.php/pesquisajuridica/article/view/2021. Acesso em: 10 fev. 2025.

DE FÉRIAS COM O PET | O que nos acomoda ao mediano?

07/02/2025 08:43

Por Mahara Soares

Bolsista PET-Letras

Letras – Português

 

Dos inúmeros assuntos que permeiam os questionamentos humanos, poucos parecem interessar mais à arte do que a ânsia de ser – ser diferente, ser em breve, ser mais. É uma obsessão que nos atinge desde cedo, ela se instala discretamente quando os adultos questionam às crianças: o que você quer ser? A partir de então, o conceito deixa o posto de realidade e toma o de objetivo. Mas o que nos faz diminuir a intensidade de nossas ânsias? Em que ponto paramos de almejar ser astronautas, vampiros, presidentes, super-heróis, rock stars, piratas, cientistas e todas-as-respostas-que-as-crianças-sempre-têm-na-ponta-da-língua, e começamos a nos conformar em apenas existir?

Calma. Não quero dizer que você deveria vestir uma capa vermelha e levantar voo. Quero dizer que tirar a máscara e parar de fingir estar satisfeito pode ser interessante. E, claro, isso se aplica a um âmbito extremamente individual. Afinal, é óbvio que foram o trabalho, a fome, as contas a pagar, o currículo a construir, a rotina acelerada, a produção em massa, o bombardeio de informações e o resto que envolve a vida moderna capitalista que nos colocaram o cabresto e firmaram nossos pés ao chão. Enquanto isso, os milhares de coachs que existem por aí nos dizem que tudo não passa de força de vontade e meritocracia. Sua vida não está dando certo porque você não tenta o suficiente. Não acorda mais cedo o suficiente, não trabalha até a exaustão o suficiente, não economiza o dinheiro do almoço o suficiente. A mídia nos prova que todas as celebridades, subcelebridades e influencers de Instagram conseguem muito mais. Porque você não consegue? É desse jeito que você e eu – e grande parte da população – passamos a acreditar que não merecemos ser.

 

“Messages keeps getting clearer

Radio’s on and I’m moving ‘round my place

I check my look in the mirror

I wanna change my clothes, my hair, my face

Man, I ain’t getting nowhere

I’m just living in a dump like this

There’s something happening somewhere

Baby, I just know that there is” (Springsteen, 1984)

 

Ainda assim, sei que a vontade permanece em você e em mim, sucateada na turbulência do existir. Sei porque a sinto. Sei porque é o que a arte me conta. Eu a leio nos romances escritos por alguém que sonhou com amores arrebatadores, eu a escuto nas músicas compostas por alguém que desejou ser ouvido, eu a vejo nos filmes dirigidos por alguém que fantasiou um mundo inteiro e a vejo nas pinturas de alguém que buscou tocar o público. Essa vontade é o que nos permite sobreviver à experiência da condição humana. Querer ser é resistir, é ir contra a crença de que não o merecemos.

 

Imagem: homem morando numa pequena e desconfortável ideia de si mesmo

Fonte: Susano Correia (2021, p. 96)

Descrição de imagem: desenho em grafite, fundo branco. Um corpo humano, retratado da cintura para cima. Um dos braços está posicionado atrás das costas e tem a mão apoiada no outro, este está esticado ao lado do torso. No lugar da cabeça há uma casa de madeira com telhado, chaminé e varanda. De dentro da casa, pelas janelas e portas, pendem os membros de outro corpo humano, este está deitado no chão da casa, ocupando todo o espaço.

 

Deixemos de ser Macabéas e nos contentar com o pouco porque ele é tudo que conhecemos. Tenhamos a coragem de ansiar enquanto capazes. Em A redoma de vidro, originalmente publicada em 1963, Sylvia Plath nos alerta a urgência: como seres efêmeros estamos eternamente sujeitos à passagem do tempo.

Eu vi minha vida estendendo seus galhos em minha frente como a figueira verde da história. Da ponta de cada ramo, como um figo roxo e grande, um maravilhoso futuro acenava e piscava. Um figo era um marido e um lar feliz e filhos, e outro figo era uma famosa poetisa e outro figo era uma brilhante professora, e outro figo era E Gê, a editora incrível, e outro figo era Europa e África e América do Sul, e outro figo era Constantin e Sócrates e Attila e um pacote de outros amores com nomes esquisitos e profissões incomuns, e outro figo era a campeã da equipe olímpica, e além e acima desses figos haviam muitos outros figos que eu não podia distinguir bem. Eu me vi sentada na bifurcação dos galhos desta figueira, morrendo de fome, só porque eu não conseguia me decidir de qual figo escolher. Eu queria cada um deles, mas escolher um significaria perder todo o resto, e, enquanto eu estava sentada ali, incapaz de me decidir, os figos começaram a se enrugar e ficarem pretos, e, um por um, eles caíram ao chão, aos meus pés. (Plath, 1991, p. 96-97).

Desesperados, repetidas vezes nos esquecemos da possibilidade de recomeçar, de transformar, de tentar novamente, e a angústia de nos sentirmos presos às nossas carcaças nos assola de tempos em tempos. Reconheço que me soa quase hipócrita incentivar a mudança sabendo das circunstâncias que nos prendem, mas, se não essa, qual a outra opção? Repito: querer é resistir. Arte é fagulha.

 

REFERÊNCIAS

CORREIA, Susano. Fim dos tempos nos corações, isolados. Palíndromo, Florianópolis, v. 13, n. 29, p. 90-101, 2021. DOI: https://doi.org/10.5965/2175234613292021090. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/19170. Acesso em: 5 fev. 2025. [il. p. 96, desenho, 29,7 x 21 cm].

DANCING in the dark. [Compositor e intérprete]: Bruce Springsteen. In: BORN in the U.S.A. Intérprete: Bruce Springsteen. New York City: Columbia Records, 4 jun. 1984. 1 canção. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/track/7FwBtcecmlpc1sLySPXeGE. Acesso em: 6 fev. 2025.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1991.

DE FÉRIAS COM O PET | Um loureio sem salvação

30/01/2025 15:46

Débora Klug

Bolsista PET-Letras

Letras Português

 

As Metamorfoses foram escritas pelo poeta romano Ovídio, por volta do ano 8 d.C. O livro é uma coletânea de mitos e lendas da mitologia greco-romana, organizada de maneira que traça a história do mundo desde sua criação até a deificação de Júlio César. O principal tema da obra é a metamorfose, isto é, a transformação das pessoas, deuses e até mesmo de objetos, em algo diferente – seja por vontade própria ou por punição divina.

A obra também oferece uma visão cultural e religiosa do mundo antigo, mostrando como as crenças e os mitos influenciaram as pessoas daquela época. É possível observar uma série de padrões, elementos simbólicos, estruturas sociais e comportamentos que, dada a grande influência da cultura greco-romana na nossa cultura ocidental até os dias de hoje, torna o estudo das obras clássicas muito interessante e substancial para compreender a nossa sociedade atual.

Apesar de mais de dois mil anos terem se passado desde que os mitos foram escritos, um dos padrões que se  repete nos dias de hoje, e que se mostra em diversas passagens da obra, em vários mitos e várias metamorfoses, é a condição subalternizada da mulher, do seu desejo e da sua autonomia, que apresentarei através de uma leitura crítica do mito de Dafne e Apolo.

Em geral, as mutações são concedidas por deuses. No caso das mulheres, as mutações são colocadas, à primeira vista, como atos misericordiosos dos deuses, como uma alternativa de salvá-las da própria condição de ser mulher. Porém, entendemos que através de um olhar mais atento e crítico, percebe-se que essas metamorfoses se dão sempre em contextos de crueldade, abuso e privação, a exemplo da metamorfose de Dafne (livro I), que se dá pois Febo ridiculariza o ofício do Cupido; como castigo o deus do amor acerta Febo com a flecha da aljava do desejo e acerta Dafne com a flecha da aljava da repulsa. Logo, o castigo: Febo se atraí irracionalmente por Dafne, e a uma ninfa o recusa veementemente.

Dafne era uma virgem da deusa Ártemis, e é conhecida por sua grande beleza, por isso é cobiçada por vários homens. Entretanto, sempre os recusa, e, apesar de seu pai, o deus Pneu, lhe pedir um genro e netos, ela implora ao deus que possa se manter virgem para sempre, pois sente asco pelo matrimônio e deseja caçar e correr pelas florestas. O pai concede o desejo da filha, nos versos 488 e 489 do primeiro livro: “Ele de fato, lá consentiu – mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos.” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489).

Nesses versos fica ambíguo qual seria o proferidor da afirmação final, após meia risca, se é o pai de Dafne, ou o poeta que escreve. Observa-se o uso da terceira pessoa singular no início do verso, onde é clara a afirmação pela voz do poeta “Ele [o pai, Pneu] de fato, lá consentiu [o desejo de ser virgem]”. Entretanto, há uma mudança de pessoa para a segunda do singular após a meia risca, no trecho ambíguo “mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489 grifos nossos); essa mudança de pessoa pode sugerir uma mudança também na voz que profere a afirmação, não mais a voz do poeta, como no início do verso, mas agora a voz é do próprio pai de Dafne, que afirma a beleza da filha ser tanta, que não é permitido à ela realizar o desejo de ser virgem. Independente da ambiguidade, fica claro aqui que a condição de permanecer virgem, a condição de escolher sobre o próprio corpo e a própria vida, não pode ser uma escolha única e exclusiva da mulher.

Nos versos seguintes, Febo persegue Dafne para tentar conquistá-la, entretanto, ela foge correndo pela floresta. A ninfa começa a se cansar e Febo chega cada vez mais perto de agarrá-la, e quando ele consegue, ela implora ao pai que acabe com a sua beleza atraente. Os versos finais dessa metamorfose são:

 

‘Ajuda, pai’, gritou, “se vós, os rios, tender poder divino!
Extingue e transforma esta figura, demasiado atraente!’
Mal terminara a prece, e um pesado torpor lhe invade o corpo.
O macio peito da jovem é envolto por uma fina casca,

(Ovídio, 2007, livro I, 546-557)

 

Imagem: “Apolo e Dafne”, escultura em mármore de Gian Lorenzo Bernini, esculpida entre os anos 1622 e 1625.

Fonte da imagem: Internet – Postposmo

Descrição da imagem: a imagem é composta por três fotos em ângulos distintos da mesma escultura. A escultura é a figura de um homem, Apolo, agarrando pela cintura uma mulher, Dafne, que está com os braços erguidos e com expressão no rosto de desespero. As mãos da mulher possuem dedos que são galhos e folhas, assim como uma de suas pernas é em partes um tronco de uma árvore. Nas duas primeiras fotografias os ângulos permitem observar o rosto de Dafne, e a terceira fotografia mostra o peito dela e o lado direito de sua face se transformando em árvore. A expressão dos corpos das duas figuras sugere que a mulher tenta se esquivar do homem, enquanto ele tenta alcançá-la. Ambos estão seminus, e Apolo tem apenas um pano lhe cobrindo parte do corpo.

O deus Pneu atende o pedido da filha, e imediatamente a transforma em um loureiro. Febo, ao perceber a transformação abraça e beija a árvore, “mas o lenho aos beijos se esquiva”. Percebe-se que desde o início a ninfa recusou o deus do sol. Ainda implorou ao pai que lhe livrasse de sua beleza para que cessasse a perseguição, e após a metamorfose, Dafne já sendo uma árvore tenta escapar do toque de Febo. Apesar disso, no final do mito ele nomeia o loureiro como a sua árvore, que estará sempre em seus cabelos, em sua cítara e em sua aljava, que guardará os umbrais das portas e terá a honra perpétua. A situação toda se contrói de maneira a romantizar como um grande ato de amor as atitudes de Febo. Porém, considerando uma leitura crítica atual a partir de valores e crenças que se distanciam daqueles da Grécia Antiga, pode-se afirmar que é evidente nos versos que o expresso desejo de Dafne, sua repulsa e asco, não apenas por Febo, mas também pelo matrimônio e as relações conjugais, foi ignorado pelo deus do sol. Ao final, de maneira muito estranha, a ninfa, agora árvore, aceita as honras dadas à ela por Febo, abanando a copa. Fica o questionamento do por que Dafne, que recusou o deus até o fim de sua existência humana, no final concordaria com ele, como se no fim cedesse à sua vontade, já desprovida de autonomia para negar os caprichos de Febo. Essa passagem condensa em si a condição da mulher e de seu desejo na época, que em últimas instâncias é sempre subordinado ao desejo do homem, e também ilustra como era idealizada e romantizada toda a trajetória da conquista entre homem e mulher, desconsiderando o querer da mulher. Mesmo após ser transformada em loureiro, Dafne ainda é beijada e ainda tenta se esquivar com o corpo que agora é tronco. Depois de toda a recusa inflexível, Febo ainda a nomeia como sua. Ou seja, a vontade da mulher foi contrafeita até o último segundo de sua existência humana, e também durante sua existência como loureiro.

PS: Essa reflexão se deu durante a realização do trabalho final da disciplina de Estudos Literários IV – Literatura Latina e Textos Fundacionais, feito em parceria com Ariadne Toledo, a quem o mito de Dafne e Apolo primeiramente chamou a atenção para o estudo.

REFERÊNCIA

OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução: Paulo Farmhouse. Lisboa: Cotovia, 2007.

 

De férias com o PET: “O Som do Rugido da Onça”

25/01/2025 16:58

Angelo Gabriel Cassariego Perusso

Letras- Português

Bolsista PET-Letras

O som do rugido da onça é um romance publicado em 2021, por Micheliny Verunschk, que foi vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário em 2022. O romance reconta a história de dois jovens indígenas, aqui chamados de Iñe-e e Juri, que foram sequestrados pelo zoólogo Johann Baptist von Spiux e pelo botânico Carl Friedrich von Martius em 1817 e levados para a Europa como uma espécie de resultado de pesquisa dos “exploradores” europeus em solo brasileiro. Além das crianças, Spiux e Martius levaram para a Europa diversas plantas, animais, pedras preciosas e seus relatos de viagem. Digo que a autora “reconta” a história porque a história foi contada originalmente através dos relatos de viagem de Martius e Spix, ou seja, sob a perspectiva dos europeus raptores, enquanto que nessa obra a história desse triste caso é contada da perspectiva dos jovens indígenas. O livro é o fruto de uma vasta pesquisa sobre o caso e sobre os povos indígenas brasileiros e levanta muitas questões importantes, dentre elas o papel da escrita na formação das “verdades” historiográficas e os horrores da colonização e seu impacto direto na atualidade, o que implica em reconhecer a importância da preservação cultural e valorização da vida dos colonizados.

Sobre esta primeira, a escrita, sabemos (e o romance deixa ainda mais claro) que o que chega aos livros de história do ocidente é diretamente atravessado pelos interesse ideológicos europeus e cada linha escrita sobre os acontecimentos nas Américas que não seja produzida pelos povos oprimidos foi cunhada pelos colonizadores, o que significa também que esses textos foram apagados, reescritos, rasurados, adaptados, moldados e ajustados de maneira a justificar ou pelo menos diminuir os horrores promovidos pela colonização europeia e, além disso, tentar defender a ideia de que bárbaro é o Outro, nunca a Europa. Bárbaro, para os cadernos de Spiux e Martius, eram os sequestrados e não os sequestradores; afinal de contas, os sequestradores eram brancos.

No capítulo XVIII da obra, a narradora questiona justamente essa ideia. Somos levados, por meio da narração, a acompanhar o processo de pensamento de Martius durante a escrita do que aconteceu com Juri e Iñe-e. Nesse contexto, Martius se vê confrontado na hora de passar o fato ao papel com uma verdade difícil de ignorar: não há como justificar o rapto de crianças indígenas cometido por ele. A autora escreve (p.33):

Martius rasura. Omite o destino do menino. Precisa apagar rastros, estabelecer o lugar de corte entre o vivido e aquilo que gostaria que tivesse acontecido. Ou dar apenas aquilo que as pessoas precisam saber, parca ração da verdade. Toda rasura é uma edição. […] Martius esquece o que escreveu. Ou não esquece, mas quer esquecer. Deliberadamente, rasura. E a rasura também é um método.

 

O conteúdo dos documentos escritos por Martius se encontra presente neste capítulo e o que vemos é a clara tentativa de esconder os aspectos horrorosos de suas atitudes e a utilização da clássica, atual e nefasta tática de acusar uma suposta ausência de Deus nos povos contra quem ele peca. Além disso, neste mesmo capítulo, a autora comenta sobre a crença de Martius de que a escrita permanece, supera a limitação da memória a que a fala está submetida e condenada, e que, portanto, a escrita, para ele, é superior à fala. Esse sistema de pensamento funcionou bem para os europeus, que tinham em mãos os cadernos e os lápis e puderam, tal como ele fez, contar o que quisessem dos povos que não tinham como se defender nos brancos papeis da Europa, moldando assim a maneira que se contou a história e os imaginários populares até os dias de hoje. O que quero pontuar destacando esse trecho é que a escrita é cínica e, além disso, um instrumento de dominação. A escrita permite um raciocínio longo antes da transferência do pensamento ao papel, permite o arrependimento que gera o apagamento ou a rasura, permite a reescrita. Quando Martius revela em seu relato que sequestrou um menino que era filho do líder de um povo indígena (o que para a Europa da época significaria raptar um príncipe) e então rasura, é como se isso nunca tivesse ocorrido de acordo com aquele documento. Mas, ainda assim, aconteceu e mesmo após a rasura deixou uma marca. Por isso minha defesa da fala: quando falamos, o que foi dito foi dito, não há como “desfalar”. Tapa dado é tapa dado. A escrita, por sua vez, permite essa manipulação puramente cínica que foi e ainda é uma das maneiras dos impérios sobreviverem.

Entro agora na outra questão. O livro conta a história dos dois indígenas com a seriedade que merece enquanto flerta com o mágico, o religioso e o espiritual. Tudo que acontece com os dois jovens é narrado sem tirar o peso do que significou o empreendimento colonial para os povos indígenas. A leitura dói, irrita. É difícil passar ileso pelas páginas sem se afetar com os acontecimentos. Gostaria de exemplificar, mas temo que o spoiler tire do futuro leitor a experiência de sentir a obra com a profundidade que ela merece, entretanto me atenho a duas passagens importantes. A primeira delas diz respeito a uma terceira personagem que aparece esporadicamente, mas que tem papel central na obra: Josefa. Josefa é uma personagem situada no contemporâneo que se vê confrontada com seu passado e sua história quando vê, em um museu, um retrato de Iñe-e e se considera igual a menina pintada no quadro. Josefa tem ascendência indígena e encontra nessa questão diversos dilemas internos, mas o principal deles é a falta de conhecimento sobre seus antepassados. Ainda assim, confrontada pela imagem, Josefa mostra a imagem de Iñe-e para seu namorado e o mesmo diz que elas não se parecem, ao que ela responde: “Ela está triste. E não é livre. Eu sou exatamente igual a ela” (p.99).

A mulher então parte em uma jornada em busca desse casal indígena e essa relação entre o passado e o presente permite perceber que os efeitos da colonização atuam de muitas maneiras nos dias de hoje e que os filhos daqueles como Iñe-e e Juri trazem literalmente na pele esses traumas consigo. Justamente nessa lógica, ressalto outra passagem bastante marcante, com o cuidado de não revelar exatamente o teor da cena: em dado momento, um personagem pôde ver o Brasil todo e então descreveu o país como “uma criatura feita de despedaçamentos e esperanças sendo ajuntada por meio de um trançado muito intrincado sob o nome de um país” (p.139) e então vê o mar e vê nele todo o “sangue dos pobres do mundo” (p.139) que ali existe, e então vê o passar dos tempos e é confrontada com a realidade de que o terrível vivido por Iñe-e e Juri não foi o começo nem o fim, mas sim que essa máquina de moer gente que só muda de nome segue operando até os dias atuais. Logo em seguida, a autora faz um movimento pouco usual para romances em prosa: ela coloca uma espécie de colagens de trechos de textos históricos e manchetes jornalísticas que retratam a maneira com que os povos indígenas foram tratados através dos tempos até chegar na contemporaneidade, de maneira a demonstrar que histórias como a dos jovens raptados, no máximo foram mascaradas sob outras nuances, mas ainda acontecem.

O livro se desenrola com o pesar e a tristeza que o conteúdo da história exige, mas o faz de maneira exemplar e permite ao leitor que se encante com os personagens, que aprenda com Iñe-e e Juri e que, mesmo sabendo o desfecho, torça por eles. Ao meu ver, a obra se consolida como um manifesto de defesa da vida e, em um viés decolonial levanta o questionamento: e se as vítimas contassem as histórias ao invés dos algozes, o que seria diferente?

No entanto, penso que cabe dizer que, em um primeiro momento, considerei que a obra, que tem um enredo muito interessante, por vezes, divaga demais. Senti que na busca por alcançar um lirismo profundo e desenvolto, a autora quebra demais o ritmo da narração para fazer digressões ou simplesmente reflexões sobre o mundo da obra que, ao meu ver, poderiam estar mais imbricadas nos acontecimentos da história. Entretanto, acho que cabe aqui uma “mea culpa”. Embora eu sinta que a história poderia ter um ritmo de maior fluidez e se ater mais à narração dos acontecimentos (o que, quando acontece, é espetacular), acho que talvez esse meu sentimento esteja calcado em um “jeito branco de ler”, explico.

Quando mais novo, ainda começando minha trajetória no mundo das palavras e imbuído do sonho de ser escritor, fiz um curso de escrita criativa em que me foi ensinado o conceito da Arma de Tchekhov. Consiste basicamente em um princípio narrativo que diz  que, se no início da obra o autor descreve uma arma sobre uma lareira aparentemente sem motivo, a arma tem de ressurgir novamente na história demonstrando ser útil ao desfecho ou desenrolar da história. Ou seja, todos os elementos de uma narrativa que o autor se empenha em descrever e falar sobre precisam ser importantes para o todo da história, isto é: tudo precisa ser útil. Nesse contexto, cabe pontuar que útil é tudo aquilo que serve para alguma coisa: a pá serve para cavar, a faca para cortar, meu time de futebol para me fazer sofrer no domingo à tarde. É justamente nesse ponto que entra meu questionamento: na literatura, precisa tudo ser mesmo útil? Reconheço que na poesia esse apreço gigantesco pela utilidade já foi questionado e talvez até superado (vide Inutensílio, de Leminski), mas na prosa sinto que os moldes da escrita ainda exigem uma certa linearidade e utilidade que não faz tanto sentido quanto parece fazer. As grandes bênçãos da vida não são úteis, mas sim positivas em si mesmas. A alegria não serve para nada além de estar alegre, o amor não serve para nada além de amar. O que estou querendo dizer é que acho que precisamos amar a literatura por ela mesma.

Embora seja muito bom ser surpreendido por um desfecho inesperado de uma obra, ou se emocionar com uma cena dramática, não é por esse momento específico que lemos um livro todo (caso contrário bastaria uma breve descrição dos fatos) mas sim pela beleza de encontrar na prosa e na escrita do autor algo novo e que nos é valioso: a arte. Na obra de Airton Krenak, “a vida não é útil”. O autor argumenta que o sistema capitalista e sua visão de progresso estão diretamente sustentadas por uma visão de mundo utilitarista que acaba por destruir o meio ambiente e subjugar pessoas em prol do mercado. De certa forma, o que se estabelece aqui como um diálogo entre essas ideias e o livro é que o utilitarismo do mundo é insustentável para nossa espécie e nosso planeta. É preciso que sejamos mais que condenados à utilidade imediata, mais que a exploração do homem em favor das coisas e mais, sem dúvida, que a coisificação do homem. Nossas vidas não são mercadorias, afinal de contas, a vida não é útil, mas ainda assim é o nosso bem mais precioso. Pois bem, voltando a minha sensação inicial: ela me deixou após o final da obra. Nem todo capítulo ou passagem colocava em cena uma arma que seria disparada, mas todos os capítulos me proporcionaram uma experiência literária profundamente rica e me permitiram adentrar aquele universo, e não o fizeram porque essa era a sua função, mas porque assim é a literatura em si mesma: uma porta para novos e velhos mundos. E convenhamos que, de pautado pelo utilitarismo, já basta o mundo real.

Por fim, gostaria de reforçar que recomendo a leitura desse livro que é importante, belíssimo e poético. Por um 2025 em que a gente consiga encontrar felicidade e valor nas coisas em si mesmas, e não nas suas utilidades.

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