Angelo Gabriel Cassariego Perusso
Letras- Português
Bolsista PET-Letras
O som do rugido da onça é um romance publicado em 2021, por Micheliny Verunschk, que foi vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário em 2022. O romance reconta a história de dois jovens indígenas, aqui chamados de Iñe-e e Juri, que foram sequestrados pelo zoólogo Johann Baptist von Spiux e pelo botânico Carl Friedrich von Martius em 1817 e levados para a Europa como uma espécie de resultado de pesquisa dos “exploradores” europeus em solo brasileiro. Além das crianças, Spiux e Martius levaram para a Europa diversas plantas, animais, pedras preciosas e seus relatos de viagem. Digo que a autora “reconta” a história porque a história foi contada originalmente através dos relatos de viagem de Martius e Spix, ou seja, sob a perspectiva dos europeus raptores, enquanto que nessa obra a história desse triste caso é contada da perspectiva dos jovens indígenas. O livro é o fruto de uma vasta pesquisa sobre o caso e sobre os povos indígenas brasileiros e levanta muitas questões importantes, dentre elas o papel da escrita na formação das “verdades” historiográficas e os horrores da colonização e seu impacto direto na atualidade, o que implica em reconhecer a importância da preservação cultural e valorização da vida dos colonizados.
Sobre esta primeira, a escrita, sabemos (e o romance deixa ainda mais claro) que o que chega aos livros de história do ocidente é diretamente atravessado pelos interesse ideológicos europeus e cada linha escrita sobre os acontecimentos nas Américas que não seja produzida pelos povos oprimidos foi cunhada pelos colonizadores, o que significa também que esses textos foram apagados, reescritos, rasurados, adaptados, moldados e ajustados de maneira a justificar ou pelo menos diminuir os horrores promovidos pela colonização europeia e, além disso, tentar defender a ideia de que bárbaro é o Outro, nunca a Europa. Bárbaro, para os cadernos de Spiux e Martius, eram os sequestrados e não os sequestradores; afinal de contas, os sequestradores eram brancos.
No capítulo XVIII da obra, a narradora questiona justamente essa ideia. Somos levados, por meio da narração, a acompanhar o processo de pensamento de Martius durante a escrita do que aconteceu com Juri e Iñe-e. Nesse contexto, Martius se vê confrontado na hora de passar o fato ao papel com uma verdade difícil de ignorar: não há como justificar o rapto de crianças indígenas cometido por ele. A autora escreve (p.33):
Martius rasura. Omite o destino do menino. Precisa apagar rastros, estabelecer o lugar de corte entre o vivido e aquilo que gostaria que tivesse acontecido. Ou dar apenas aquilo que as pessoas precisam saber, parca ração da verdade. Toda rasura é uma edição. […] Martius esquece o que escreveu. Ou não esquece, mas quer esquecer. Deliberadamente, rasura. E a rasura também é um método.
O conteúdo dos documentos escritos por Martius se encontra presente neste capítulo e o que vemos é a clara tentativa de esconder os aspectos horrorosos de suas atitudes e a utilização da clássica, atual e nefasta tática de acusar uma suposta ausência de Deus nos povos contra quem ele peca. Além disso, neste mesmo capítulo, a autora comenta sobre a crença de Martius de que a escrita permanece, supera a limitação da memória a que a fala está submetida e condenada, e que, portanto, a escrita, para ele, é superior à fala. Esse sistema de pensamento funcionou bem para os europeus, que tinham em mãos os cadernos e os lápis e puderam, tal como ele fez, contar o que quisessem dos povos que não tinham como se defender nos brancos papeis da Europa, moldando assim a maneira que se contou a história e os imaginários populares até os dias de hoje. O que quero pontuar destacando esse trecho é que a escrita é cínica e, além disso, um instrumento de dominação. A escrita permite um raciocínio longo antes da transferência do pensamento ao papel, permite o arrependimento que gera o apagamento ou a rasura, permite a reescrita. Quando Martius revela em seu relato que sequestrou um menino que era filho do líder de um povo indígena (o que para a Europa da época significaria raptar um príncipe) e então rasura, é como se isso nunca tivesse ocorrido de acordo com aquele documento. Mas, ainda assim, aconteceu e mesmo após a rasura deixou uma marca. Por isso minha defesa da fala: quando falamos, o que foi dito foi dito, não há como “desfalar”. Tapa dado é tapa dado. A escrita, por sua vez, permite essa manipulação puramente cínica que foi e ainda é uma das maneiras dos impérios sobreviverem.
Entro agora na outra questão. O livro conta a história dos dois indígenas com a seriedade que merece enquanto flerta com o mágico, o religioso e o espiritual. Tudo que acontece com os dois jovens é narrado sem tirar o peso do que significou o empreendimento colonial para os povos indígenas. A leitura dói, irrita. É difícil passar ileso pelas páginas sem se afetar com os acontecimentos. Gostaria de exemplificar, mas temo que o spoiler tire do futuro leitor a experiência de sentir a obra com a profundidade que ela merece, entretanto me atenho a duas passagens importantes. A primeira delas diz respeito a uma terceira personagem que aparece esporadicamente, mas que tem papel central na obra: Josefa. Josefa é uma personagem situada no contemporâneo que se vê confrontada com seu passado e sua história quando vê, em um museu, um retrato de Iñe-e e se considera igual a menina pintada no quadro. Josefa tem ascendência indígena e encontra nessa questão diversos dilemas internos, mas o principal deles é a falta de conhecimento sobre seus antepassados. Ainda assim, confrontada pela imagem, Josefa mostra a imagem de Iñe-e para seu namorado e o mesmo diz que elas não se parecem, ao que ela responde: “Ela está triste. E não é livre. Eu sou exatamente igual a ela” (p.99).
A mulher então parte em uma jornada em busca desse casal indígena e essa relação entre o passado e o presente permite perceber que os efeitos da colonização atuam de muitas maneiras nos dias de hoje e que os filhos daqueles como Iñe-e e Juri trazem literalmente na pele esses traumas consigo. Justamente nessa lógica, ressalto outra passagem bastante marcante, com o cuidado de não revelar exatamente o teor da cena: em dado momento, um personagem pôde ver o Brasil todo e então descreveu o país como “uma criatura feita de despedaçamentos e esperanças sendo ajuntada por meio de um trançado muito intrincado sob o nome de um país” (p.139) e então vê o mar e vê nele todo o “sangue dos pobres do mundo” (p.139) que ali existe, e então vê o passar dos tempos e é confrontada com a realidade de que o terrível vivido por Iñe-e e Juri não foi o começo nem o fim, mas sim que essa máquina de moer gente que só muda de nome segue operando até os dias atuais. Logo em seguida, a autora faz um movimento pouco usual para romances em prosa: ela coloca uma espécie de colagens de trechos de textos históricos e manchetes jornalísticas que retratam a maneira com que os povos indígenas foram tratados através dos tempos até chegar na contemporaneidade, de maneira a demonstrar que histórias como a dos jovens raptados, no máximo foram mascaradas sob outras nuances, mas ainda acontecem.
O livro se desenrola com o pesar e a tristeza que o conteúdo da história exige, mas o faz de maneira exemplar e permite ao leitor que se encante com os personagens, que aprenda com Iñe-e e Juri e que, mesmo sabendo o desfecho, torça por eles. Ao meu ver, a obra se consolida como um manifesto de defesa da vida e, em um viés decolonial levanta o questionamento: e se as vítimas contassem as histórias ao invés dos algozes, o que seria diferente?
No entanto, penso que cabe dizer que, em um primeiro momento, considerei que a obra, que tem um enredo muito interessante, por vezes, divaga demais. Senti que na busca por alcançar um lirismo profundo e desenvolto, a autora quebra demais o ritmo da narração para fazer digressões ou simplesmente reflexões sobre o mundo da obra que, ao meu ver, poderiam estar mais imbricadas nos acontecimentos da história. Entretanto, acho que cabe aqui uma “mea culpa”. Embora eu sinta que a história poderia ter um ritmo de maior fluidez e se ater mais à narração dos acontecimentos (o que, quando acontece, é espetacular), acho que talvez esse meu sentimento esteja calcado em um “jeito branco de ler”, explico.
Quando mais novo, ainda começando minha trajetória no mundo das palavras e imbuído do sonho de ser escritor, fiz um curso de escrita criativa em que me foi ensinado o conceito da Arma de Tchekhov. Consiste basicamente em um princípio narrativo que diz que, se no início da obra o autor descreve uma arma sobre uma lareira aparentemente sem motivo, a arma tem de ressurgir novamente na história demonstrando ser útil ao desfecho ou desenrolar da história. Ou seja, todos os elementos de uma narrativa que o autor se empenha em descrever e falar sobre precisam ser importantes para o todo da história, isto é: tudo precisa ser útil. Nesse contexto, cabe pontuar que útil é tudo aquilo que serve para alguma coisa: a pá serve para cavar, a faca para cortar, meu time de futebol para me fazer sofrer no domingo à tarde. É justamente nesse ponto que entra meu questionamento: na literatura, precisa tudo ser mesmo útil? Reconheço que na poesia esse apreço gigantesco pela utilidade já foi questionado e talvez até superado (vide Inutensílio, de Leminski), mas na prosa sinto que os moldes da escrita ainda exigem uma certa linearidade e utilidade que não faz tanto sentido quanto parece fazer. As grandes bênçãos da vida não são úteis, mas sim positivas em si mesmas. A alegria não serve para nada além de estar alegre, o amor não serve para nada além de amar. O que estou querendo dizer é que acho que precisamos amar a literatura por ela mesma.
Embora seja muito bom ser surpreendido por um desfecho inesperado de uma obra, ou se emocionar com uma cena dramática, não é por esse momento específico que lemos um livro todo (caso contrário bastaria uma breve descrição dos fatos) mas sim pela beleza de encontrar na prosa e na escrita do autor algo novo e que nos é valioso: a arte. Na obra de Airton Krenak, “a vida não é útil”. O autor argumenta que o sistema capitalista e sua visão de progresso estão diretamente sustentadas por uma visão de mundo utilitarista que acaba por destruir o meio ambiente e subjugar pessoas em prol do mercado. De certa forma, o que se estabelece aqui como um diálogo entre essas ideias e o livro é que o utilitarismo do mundo é insustentável para nossa espécie e nosso planeta. É preciso que sejamos mais que condenados à utilidade imediata, mais que a exploração do homem em favor das coisas e mais, sem dúvida, que a coisificação do homem. Nossas vidas não são mercadorias, afinal de contas, a vida não é útil, mas ainda assim é o nosso bem mais precioso. Pois bem, voltando a minha sensação inicial: ela me deixou após o final da obra. Nem todo capítulo ou passagem colocava em cena uma arma que seria disparada, mas todos os capítulos me proporcionaram uma experiência literária profundamente rica e me permitiram adentrar aquele universo, e não o fizeram porque essa era a sua função, mas porque assim é a literatura em si mesma: uma porta para novos e velhos mundos. E convenhamos que, de pautado pelo utilitarismo, já basta o mundo real.
Por fim, gostaria de reforçar que recomendo a leitura desse livro que é importante, belíssimo e poético. Por um 2025 em que a gente consiga encontrar felicidade e valor nas coisas em si mesmas, e não nas suas utilidades.