O Direito de Greve no Brasil: Uma Luta Histórica pela Justiça Trabalhista

20/05/2024 10:31

 

Hanna Boassi e Laiara Serafim

Letras – Português

Bolsistas PET-Letras

 A HISTÓRIA DA GREVE NO BRASIL

O direito de greve é um dos temas mais complexos na história recente do Brasil. Até os dias atuais, ele continua a incitar debates acalorados, despertando questionamentos e indignações. A história das greves no país é um tema polêmico, e explorar essas experiências passadas pode fornecer novas perspectivas para debates presentes e futuros. Sendo assim, este breve texto tem por objetivo resumir a luta pela conquista do direito de greve e evidenciar que essa luta se deu unicamente por meio da própria greve. A concentração das massas proletárias, advinda do nascimento da indústria, associada à precariedade de sua situação socioeconômica frente aos patrões, contribuíram para a formação das associações profissionais, que exaltaram a greve como forma de reivindicar e obter melhorias das condições de trabalho

A greve como direito no Brasil perpassa por muitas camadas. Desde a Primeira República (1890), a greve era um direito do trabalhador. Tal reconhecimento formal foi feito pelos Tribunais, pelos juristas da época e até mesmo por diversas manifestações do Poder Executivo, da política e de algumas empresas. No entanto, o fato de ser um direito e não um crime, não impediu que a greve fosse brutalmente combatida neste período. Bastava que ela fosse contrária aos interesses econômicos dos donos de fábricas, empresas ou estabelecimentos comerciais, para que a força policial usualmente fosse utilizada.

“O argumento utilizado para o combate à greve de 1906, por exemplo, pôde ser visto em outros momentos também: as empresas alegavam não questionar o direito de greve do trabalhador, assim como a polícia, e justificavam a convocação desta apenas para combater os grevistas violentos, “criminosos”, e para proteger o patrimônio público ou privado em jogo. Tal justificativa servia para que a força policial fosse empregada contra todos. Além das prisões, há relatos de trabalhadores que foram mortos, expulsos de suas casas ou do país.” (Siqueira, 2015,  p. 146)

Como descrito no compilado detalhado de Siqueira (2015), tal cenário se perpetuou ainda por muito tempo. Mesmo com a construção de uma estrutura sindical vinculada ao Estado e a criação de leis trabalhistas, como a CLT, o objetivo central era de desencorajar movimentos grevistas mantendo a harmonia social por meio da eliminação dos conflitos entre o trabalho e o capital, por meio de um pacto social entre as massas trabalhadoras e o Estado. Mesmo com as manobras do Estado para aproximar os trabalhadores do governo, muitos ainda foram processados criminalmente por supostamente estarem envolvidos em movimentos grevistas. De fato, pouco importava se a greve era legal ou não: o uso da força policial contra todo o movimento grevista continuava – ou continua?

Somente mais de cinquenta anos depois, em 1946, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil consagrou o direito de greve, em seu artigo 159: “É livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo Poder Público”. Desse modo, um direito há muito tempo existente tornava-se reconhecido e assegurado por lei.

Contudo, nos anos seguintes, mediante a um novo cenário de ditadura, o direito de greve foi fortemente “regulamentado”, sendo adicionado à lei diversos empecilhos, o que, na prática, tornava criminal todas as greves. No entanto, isso não significou que as greves deixaram de existir, pelo contrário, ocorreram muitas greves no período ditatorial, o que acarretou na violência e morte de diversos trabalhadores. Com efeito, fazer greve era um sinal de atentado contra a segurança nacional e a repressão da ditadura não falhava em perseguir os trabalhadores (Siqueira, 2015).

Somente vinte anos depois, com o fim da ditadura militar, uma nova constituição era promulgada, assegurando todos os direitos violados no antigo período, inclusive o da greve. O direito de greve, no entanto, veio com mudanças. A partir de então, competia à classe trabalhadora a decisão da prática de greve, os interesses e as justificativas.

Descrição de imagem: Foto tirada da assembleia geral de 28 de fevereiro de 2024, em frente a reitoria da UFSC.

Fonte: SINTUFSC (2024)

CENÁRIO ATUAL DAS GREVES NA EDUCAÇÃO

Em 2024, a educação no Brasil tem enfrentado diversas paralisações e manifestações tanto em nível nacional quanto estadual. Essas greves são motivadas por uma combinação de fatores, incluindo salários defasados, condições precárias de trabalho e descontentamento com políticas educacionais. Os profissionais da educação, incluindo docentes, auxiliares e técnicos administrativos têm exposto que seus salários não acompanham a inflação e o aumento do custo de vida. A falta de reajustes adequados ao longo dos anos tem gerado uma grande insatisfação para esses profissionais. Além dos salários, as condições de trabalho são outro ponto crítico, pois muitas instituições de ensino público enfrentam problemas graves de infraestrutura, como prédios em mau estado de conservação, laboratórios sem equipamentos adequados e falta de recursos para pesquisa (Basilio, 2024).

Os cortes no orçamento das universidades e institutos federais têm gerado grande insatisfação, essa redução de verbas afeta diretamente a qualidade do ensino e da pesquisa e compromete os projetos de extensão e programas de assistência estudantil. Apesar de causarem transtornos na rotina acadêmica e administrativa, as greves servem como uma importante forma de pressão política para negociar melhores condições de trabalho.

Na última quarta-feira (15), o governo federal apresentou uma nova proposta de negociação aos docentes de instituições federais, que deflagraram greve há um mês. “O plano continua a não prever reajuste para a categoria em 2024, mas reformula os índices de recomposição salarial, em uma variação de 13,3% a 31% até 2026” (Basilio, 2024).

 A ausência do reajuste imediato foi recebida com descontentamento, já que a recomposição salarial deve ser mais urgente devido à defasagem acumulada durante os anos.

CONCLUSÃO

A história das greves no Brasil, então, é marcada por uma luta contínua pelo direito de melhores condições de trabalho e salários justos, os trabalhadores brasileiros têm enfrentado inúmeros desafios para garantir que suas vozes sejam ouvidas.

Atualmente, as greves na educação refletem as insatisfações dos profissionais da área. As recentes negociações com o governo federal, embora ofereçam uma recomposição salarial até 2026, não atendem à demanda urgente por reajustes imediatos, causando descontentamento entre os docentes e técnicos administrativos. A luta pelo direito de greve e pelas melhorias no setor educacional é contínua e requer compromisso e colaboração de todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

BASILIO, Ana Luiza. Greve na educação: sem reajustes em 2014, governo apresenta nova proposta para os próximos anos. sem reajustes em 2014, governo apresenta nova proposta para os próximos anos. 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/greve-na-educacao-sem-reajustes-em-2024-governo-apresenta-nova-proposta-para-os-proximos-anos/. Acesso em: 18 maio 2024.

SIQUEIRA, Gustavo Silveira. História do direito de greve no Brasil: Relatos de um projeto de pesquisa. In: SILVEIRA, Gustavo (org.). Teoria e Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Direito Uerj, 2015. p. 145-161

Fanfictions: uma jornada de descoberta literária e criativa

14/05/2024 12:38

 

Por Daniely de la Vega

Bolsista PET-Letras

Letras Português

 

Dentro do vasto cenário da literatura, as fanfictions se destacam como um fenômeno cativante, proporcionando um portal multifacetado para a expressão criativa e o intercâmbio cultural. Mais do que simples manifestações de fanatismo, essas criações derivativas evoluíram para uma forma de arte popular entre os jovens, convidando leitores e autores a explorarem novas fronteiras narrativas e a mergulharem nas profundezas da imaginação humana.

Descrição da imagem: mãos femininas digitando em um laptop apoiado sobre uma mesa

Fonte: Google Imagens

O atrativo das fanfictions reside em sua capacidade de expandir e reimaginar os universos ficcionais estabelecidos. Ao se apropriarem de personagens, cenários e conceitos de obras populares, os escritores de fanfictions criam uma teia complexa de narrativas alternativas, explorando possibilidades que vão além dos limites estabelecidos pelos criadores originais. Esse ato de reinterpretação não apenas homenageia o trabalho original, mas também enriquece e diversifica o tecido cultural em que essas histórias estão inseridas.

Para os leitores, as fanfictions oferecem uma experiência única de imersão em mundos familiares, porém distintos. Ao mergulhar nessas histórias paralelas e explorar novos ângulos dos personagens favoritos, os leitores são convidados a questionar e expandir sua compreensão do material original. Essa interação dinâmica entre fãs e textos cria um ciclo de retroalimentação criativa, onde as obras inspiram novas ideias e conversas, alimentando a imaginação coletiva de uma comunidade global de leitores.

Para os escritores aspirantes, as fanfictions representam uma plataforma de aprendizado e experimentação sem precedentes. Ao se aventurar em universos previamente estabelecidos, os novos autores podem explorar uma variedade de estilos narrativos, técnicas de escrita e temas sem o peso das expectativas comerciais ou editoriais. Essa liberdade criativa encoraja a exploração audaciosa e a expressão autêntica, permitindo que os escritores cultivem sua voz e habilidades em um ambiente de apoio e colaboração.

No entanto, as fanfictions não estão isentas de desafios e controvérsias. A questão dos direitos autorais e da propriedade intelectual é uma preocupação central, com muitos autores expressando preocupações em relação ao uso não autorizado de seus trabalhos. Embora muitos vejam as fanfictions como uma forma de homenagear e expandir os universos que amam, outros enxergam essas obras derivativas como uma violação de seus direitos criativos.

Além disso, a falta de supervisão editorial pode levar a uma variação significativa na qualidade das fanfictions disponíveis. Enquanto algumas obras exibem escrita talentosa e originalidade, outras podem ser mal escritas, desrespeitosas com o material original ou até mesmo ofensivas. Nesse sentido, os leitores podem enfrentar o desafio de navegar por um mar de conteúdo para encontrar histórias de qualidade.

Entre as plataformas mais conhecidas para a publicação de fanfictions, o Wattpad se destaca como a líder incontestável. Com milhões de usuários em todo o mundo, o Wattpad oferece uma plataforma acessível e fácil de usar, que permite aos escritores compartilhar suas histórias com uma audiência global. Sua interface intuitiva e recursos interativos, como comentários e votos, incentivam a interação entre autores e leitores, criando uma comunidade vibrante e engajada. Além do Wattpad, outras plataformas populares incluem o Spirit, Archive of Our Own (AO3) e Nyah!. Embora cada uma dessas plataformas tenha suas próprias características e público-alvo, é inegável que o Wattpad continua a dominar o cenário das fanfictions, proporcionando um espaço dinâmico para a criatividade florescer.

As fanfictions representam um fenômeno literário e cultural complexo. Ao abrir portas para novos horizontes de expressão criativa e comunicação cultural, essas obras derivativas nos convidam a explorar as profundezas da imaginação humana e a celebrar a riqueza e diversidade do universo literário.

O Colonialismo em Coração das trevas, de Joseph Conrad

05/05/2024 08:26

 

Por Izabel Bayerl Bonatto

Letras-Português

Bolsista PET – Letras

 

Coração das Trevas (“Heart of Darkness”), escrito por Joseph Conrad e publicado em 1902, tem como base a experiência de viagem do próprio Conrad, que vivenciou a realidade colonial em sua viagem ao rio Congo em 1890 e a expôs durante a escrita desta obra. É um romance narrado a partir do ponto de vista do marinheiro britânico Charles Marlow, o qual relata sua expedição ao longo do rio Congo, na África, território que estava sob domínio colonial belga e era propriedade pessoal do rei Leopoldo II, da Bélgica.


Descrição de imagem: o fundo da imagem é em laranja; no meio há o desenho em preto e branco de uma embarcação soltando fumaça; sobreposto, está escrito em letras grandes e brancas o título do livro “Coração das Trevas” e um pouco abaixo o nome do autor “Joseph Conrad”.

 

A obra pode ser considerada atemporal, tendo uma ideia de que o sujeito chega para desbravar e de como a mentalidade do opressor funciona. O colonialismo pode ser considerado a temática central da obra. Ela expõe uma crítica a respeito da desumanização e da corrupção do imperialismo e da crueldade colonizadora. Além disso, o fato de o autor não deixar explícito a época em que se passa a narrativa, abrange ainda mais as interpretações possíveis de seu romance.

O colonialismo é, sem sombra de dúvidas, uma prática cruel e exploradora, no qual um território exerce seu poder em cima de outro como forma de dominação para obter maiores poderes econômicos, políticos e afins. Como dito por Aimee Césaire (2010), o processo da colonização não foi um ato civilizatório, mas sim uma imposição do gesto decisivo do colonizador sob o colonizado que ocorreu de forma descivilizada. “[…] Esses fatos, provam que a colonização, repito, desumaniza o homem mesmo o mais civilizado; que a ação colonial, a empreitada colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo do homem nativo e justificada por esse desprezo, tende inevitavelmente a modificar aquele que a empreende; que o colonizador, ao habituar-se a ver no outro a besta, ao exercitar-se em tratá-lo como besta, para acalmar sua consciência, tende objetivamente em transformar-se ele próprio em besta. […]” (Césarie, 2010, p.25).

Fica clara a remissão à colonização no fato de que a Companhia de Marlow estava indo para um lugar, que estava sob domínio belga, em que ocorria a exploração de marfim. O romance gira em torno da exploração econômica de marfim, que possui alto valor econômico, destacando assim a busca incessante por recursos naturais na África, prática que era crucial para o desenvolvimento do colonialismo e afetava drasticamente o ecossistema natural e a população local.

Logo no início do romance o personagem faz uma fala para seus companheiros a respeito de como os conquistadores tinham sucesso por causa da fraqueza do outro. Com Césarie (2010, p.15), é preciso pensar nesse funcionamento “[…] como a colonização trabalha para descivilizar o colonizador, para embrutecê-lo no sentido literal da palavra, para degradá-lo, para despertar seus recônditos instintos em prol da cobiça, a violência, o ódio racial, o relativismo moral […]”.

Um trecho importante, também relacionado à fala de Marlow, nesse ponto é:

A conquista da terra, que significa basicamente tomá-la dos que possuem uma compleição diferente ou um nariz um pouco mais achatado do que o nosso, não é uma coisa bonita, se você olhar bem de perto. O que a redime é apenas a ideia. Uma ideia por detrás dela; não uma ficção sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia — algo que você pode erigir, e curvar-se diante dela, e lhe oferecer um sacrifício… (Conrad, Coração das Trevas, 1902, p.11)

É possível relacionar a citação acima com o que entendemos sobre colonialismo, e ainda com o que foi o imperialismo, visto que um aconteceu em decorrência do outro. Segundo Edward Said (2011, p.30), “[…] Num nível muito básico, o imperialismo significa pensar, colonizar, controlar terras que não são nossas, que estão distantes, que são possuídas e habitadas por outros. […]”, assim, envolvendo também uma questão moral, lógica, etc. A fala de Marlow nos faz pensar que a ideia que existe na mente do colonizador é de que isso é necessário para um bem maior em prol da “civilização”. É perceptível então, que Marlow possui essa ambiguidade moral, ele questiona ao mesmo tempo que relativiza o sistema colonial.

Conrad utiliza da viagem dessa Companhia para exemplificar a visão do europeu colonizador sobre uma terra desconhecida e selvagem. O personagem Marlow descreve, ao longo da navegação pelo rio, qual a sua perspectiva ao visitar naquele território estranho, obscuro e exótico, e de como tem efeitos psicológicos na mente de quem veio explorá-la e colonizá-la. É uma relação de medo e fascínio, e Marlow confirma que todos da Companhia viajavam por uma “Terra pré-histórica”, e que tinha uma aparência de um “planeta desconhecido”. Já o personagem Kurtz tem como papel salientar que até o homem branco é corruptível, portanto, o que ocorre com ele é exatamente a questão da influência desse ambiente obscuro e desconhecido, somado ao contato com os nativos, fazendo-o enlouquecer. Kurtz, por passar muito tempo na colônia exploradora de marfim e tendo contato direto com a crueldade humana por parte do colonizador, fica horrorizado, tanto que suas últimas palavras antes da morte foram “‘O horror! O horror!’” (CONRAD, Coração das Trevas, 1902, p.120). Essa frase representa tanto o horror de viver na selva em um território desconhecido quanto o horror de um homem que volta à civilização.

Conrad utiliza a psique do colonizador e o seu medo de se tornar um nativo para criar uma narrativa que descreve uma técnica:  a dos meios de como se dá o processo de colonização, neste caso do império Belga no Congo. O autor ainda fala de uma “devastação habitada”, ou seja, de como os estrangeiros vieram devastar um lugar que eles achavam que estava inabitado, mas é claro, acabam sempre se deparando com os nativos daquela terra.

A narrativa traz uma visão simbólica e sombria, o que causa um estranhamento ao leitor, principalmente àqueles que não estão a par das consequências do colonialismo europeu na África, ou mesmo de um modo geral, assim não entendendo todo o contexto histórico de exploração e dominação dos colonizadores sob os colonizados. Como afirmado por Edward Said (2011, p. 47) a respeito de Coração das Trevas, “[…] funciona tão bem porque sua política e sua estética são, por assim dizer, imperialistas, as quais, nos últimos anos do século XIX, pareciam ser uma política e uma estética, e até uma epistemologia, inevitáveis e inescapáveis. […]”.

***Em tempo: o filme Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, foi inspirado em Coração das Trevas e propõe uma narrativa similar: o capitão norte-americano Benjamin Willard  é mandado para a selva do Camboja durante a guerra do Vietnã para matar o enlouquecido coronel Walter Kurtz.  Tal como o livro de Conrad, o cenário é desenvolvido em uma embarcação ao longo do curso de um rio e demonstra um ambiente similar de loura e horror com objetivo de evidenciar não apenas a guerra que acontecia na época, como também uma guerra entre a lucidez e a loucura dentro da mente do personagem principal.

 

REFERÊNCIAS

CÉSARIE, Aimee. Discurso Sobre O Colonialismo. 2010. 84 p.

CONRAD, Joseph. Coração das Trevas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. 184 p.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. p. 22-102

TAVARES, Enéas Farias. O coração das trevas, de Joseph Conrad: defesa de uma utopia colonialista ou crítica ao sistema imperial de seu tempo? Literatura e Autoritarismo: Contextos Históricos e Produção Literária (UFSM), n. 12, 2008. Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num12/art_04.php

Interpretando na faculdade, e agora?

28/04/2024 14:59

 

Por Lara Malafaia Vieira

Bacharelado em Letras-Libras

Bolsista Acessibilidade PET-Letras

 

 

Desde que entrei na faculdade de Letras-Libras tive oportunidades incríveis de interpretação. Ao entrar no PET-Letras, tive minha primeira interpretação no Slam Estrela D’Alva, que consiste em uma batalha de poesia falada onde os poetas demonstram com todo seu coração: seus gritos, denúncias, experiências e lutas. Sempre tive muito medo de interpretar na área artística, pois durante a faculdade não temos práticas dessa natureza.

Na hora de interpretar tive muito medo, pois não sabia como seria, qual o tema seria abordado ou se os surdos conseguiriam entender minha interpretação. Uma aluna surda, durante os vídeos de abertura, me encorajou a praticar para ir “aquecendo”. Então eu e os outros intérpretes fomos “aquecendo” e entrando no clima. No momento que o Slam começou, um pico de adrenalina correu pelo meu corpo dos pés até a cabeça. Minhas mãos sinalizavam de modo frenético. Ao finalizar a competição olhei para meus colegas intérpretes e sorri realizada por ter conseguido interpretar nessa área nova e que tinha tanto receio. Atualmente, fico animada e muito ansiosa para interpretar o Slam.

Descrição de imagem: fundo preto; sobre p fundo, uma mão segurando uma flor.  Levemente à esquerda, a frase “Slam Estrela D’Alva” na cor branca. Abaixo, a frase “Competição de poesia falada”.

Outro contexto em que tive a oportunidade de atuar no final do ano de 2023 foi a interpretação na área esportiva. Fui convidada para participar do Inter Atléticas (IA), que é um evento onde ocorrem competições de esportes entre atléticas da UFSC. Esportes como futsal, handebol, basquete, vôlei,  atletismo, natação, judô, tênis, xadrez, vôlei de praia e futevôlei, estão presentes nesta disputa. Dois surdos participavam do time de futsal, vôlei e atletismo da Atleticale, a atlética de Letras da UFSC. Com a presença desses alunos nos times eram necessários intérpretes para acompanhamento nas competições e eu fui convidada para ser uma dessas profissionais.

Chegando no dia e no local marcado para a disputa, nos encontramos (toda a equipe) no ginásio da UFSC. Nos reunimos com os surdos para combinar alguns sinais, pois, não tínhamos conhecimento ou formação específicos sobre a prática. Deu-se o início da partida e nós, as intérpretes, ficamos no banco junto com os jogadores reserva. Sempre que o treinador/capitão pedia “tempo”, corríamos para reunir com os jogadores e sinalizar toda a reunião. Sempre ficávamos de frente para os surdos e do lado do capitão que, no momento de adrenalina do jogo, falava muito rápido, fazendo com que nós interpretássemos de modo rápido também. Foi adrenalina pura. Além disso, implantamos, juntamente com a equipe organizadora, panos de sinalização para os juízes balançarem assim que apitassem durante a partida, pois por se tratarem de surdos conhecedores das regras dos esportes era importante a visualização de alertas durante a partida.

Outra experiência: recentemente, recebemos a visita de uma professora da Lituânia, que veio passar algumas semanas em Florianópolis acompanhando uma professora do curso de Letras-Libras. A professora lituana pediu para participar da disciplina Estudos Linguísticos II, que tem como tema a morfossintaxe da Libras e do Português, porém, como a professora só sabia a língua de sinais internacionais, língua de sinais lituana e inglês, a professora da disciplina me pediu, como monitora, para que interpretasse para inglês a aula, já que a mesma seria ministrada em Libras.

Ao chegar na sala, sentei ao lado da professora lituana. A aula começou e eu comecei a interpretar para o inglês. Os alunos iam perguntando em Libras e a professora respondendo em Libras, e eu continuei no meu papel de intérprete. Os exemplos dados sobre derivação e flexão do português eram interpretados para exemplos equiparados no inglês. “Feliz+mente” foi explicado como “Happ+ily”; “instalar” foi traduzido para “install”; e a diferença entre “instalando” e “instalado” foi explicada pela continuidade ou não da ação do verbo, respectivamente. Foi uma experiência única! Me senti extremamente feliz ao final, quando a aula se encerrou, e a professora lituana falou que, sem a interpretação para  inglês, ela não conseguiria entender a aula e ficaria somente no “sorria e acene”. Senti-me muito feliz, ainda, feliz, pois havia sido minha primeira interpretação Libras-Inglês.

Essas experiências irei levar para a vida toda e que com certeza me farão uma profissional tradutora-intérprete preparada para atuar em qualquer contexto.

Projeto RedaPET – mais que gêneros textuais

26/04/2024 10:30

 

Por Anna Letícia de Abreu

Voluntária PET-Letras

Letras – Português

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem.”

Paulo Freire

 

Imagem 1: Ilustração do RedaPET com fundo laranja, no centro uma forma oval em azul claro e dentro lê-se “RedaPET” em letras brancas; abaixo há um retângulo roxo e dentro lê-se “GÊNERO TEXTUAIS E REDAÇÃO”; à direita, há a ilustração de uma flor com caule verde, centro amarelo com dois olhos e um pequeno sorriso e flores vermelha; acima, a letra “A” com olhos e um sorriso e uma letra “O” com olhos e um sorriso. No canto esquerdo, dentro de um retângulo branco, lê-se “UM PROJETO PET-LETRAS UFSC” em letras na cor preta; abaixo há a ilustração da letra “Q” em amarelo com olhos e um sorriso e um pássaro vermelho acima dela; ainda abaixo, há uma letra “B” em tom verde com olhos e um sorriso, seguido da logo do PET.

A citação do mestre educador Freire foi uma das luzes para o nascimento e é a principal motivação do RedaPET, projeto feito de alunos para alunos e que teve sua aula inaugural na última terça-feira, dia 23 de maio de 2024. Esse projeto é uma iniciativa de cinco mulheres estudantes de Letras Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina, todas participantes do PET Letras; Anna Letícia de Abreu (voluntária), Débora Klug (bolsista), Laiara Serafim (bolsista), Luísa Wierenicz (bolsista) e Maysa Monteiro (voluntária).

Nossa história é linda! Tudo começou com debates entre Anna, Débora, Laiara e Luísa – que já integravam o PET Letras, sobre a precarização do acesso à educação no Ensino Médio e do método de ensino usado nas escolas públicas, que, algumas vezes, pouco preparam e incentivam os alunos a dar continuidade nos estudos, além dos custos altíssimos para ingressar em cursinhos pré-vestibular. Essas questões desmotivam e afastam cada vez mais  os adolescentes em relação à Universidade Pública.

Nesse meio tempo entre discussões, com o último edital lançado para novos voluntários no PET Letras, conhecemos a Maysa Monteiro! Não é possível descrevê-la sem usar o adjetivo radiante: ela chegou muito entusiasmada, espalhando alegria e com um histórico fantástico, trouxe consigo a bagagem de dois anos sendo professora no Einstein, que é um curso pré-vestibular gratuito e sem fins lucrativos, voltado para pessoas de baixa renda da região da Grande Florianópolis, com o intuito aumentar a democracia no cenário educacional brasileiro. Maysa entrou em 2022 como monitora de redação e após um semestre estava ministrando aulas de literatura; no ano seguinte, tornou-se professora de redação. Assim, unindo os extensos debates das antigas Petianas com a coragem e toda a experiência da colega nova, nasceu a vontade de criar o RedaPET.

Imagem 2: sala branca com a projeção da imagem do RedaPET; em frente, vê-se quatro mulheres com as camisetas iguais em tom preto, da esquerda para direita: Anna, cabelos cacheados pele clara, sorrindo, usando uma calça bege; ao lado, Débora, cabelos loiros pele clara, sorrindo, usando uma bermuda jeans; ao lado, Luísa, cabelos escuros e lisos amarrados em um coque, pele morena, sorrindo, usando uma calça preta; depois, Maysa, cabelos escuros pele clara, sorrindo, usando uma calça preta. 

Comprometidas com a promoção do acesso da comunidade à universidade pública e a intenção de transformar o processo de aprendizagem prazeroso e acolhedor, a proposta do Projeto RedaPET é tornar o conhecimento sobre redação mais acessível, destrinchar os demais gêneros discursivo-textuais presente nos Vestibulares e criar um diálogo direto com os estudantes para torná-los proficientes no processo da escrita!

Com plano de aula até o início de dezembro, a programação terá um foco em um gênero específico por aula, passando desde as competências e dissertação no Vestibular UFSC, das leituras obrigatórias e a sua importância. Teremos cartas, crônicas, contos, manifesto. Além disso, a interpretação de texto na redação e o entendimento e planejamento da sua proposta, visando preparar os alunos para as provas da UFSC que ocorrem no meio de agosto. Seguindo o cronograma, será exposto também o processo da redação no ENEM, suas competências, eixos temáticos, construção da tese e argumentação. E vários momentos irão acontecer dinâmicas de escrita e correção de uns para os outros estarão presentes.

Imagem 3: foto tirada da sala branca com a projeção da imagem do RedaPET.

Para além da teoria em si, a proposta do projeto é ser um curso onde os alunos tenham autonomia e criatividade, se desenvolvam como leitores e escritores críticos. A missão do RedaPET é mostrar que o vestibulando é mais que um aluno sentado em uma cadeira, e sim que é um ser humano de uma sociedade ativa, cheia de ideias e problemáticas. E que na escrita, no estudo e nas instituições públicas de ensino há espaço para sonhar, analisar e expressar-se.

O inominável em “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, e em “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes: distanciamentos e aproximações

18/04/2024 10:55

Por Maysa da Silva Monteiro 

Voluntária – PET-Letras

Letras Português

 

Violência. Palavra com nove letras que retrata os horrores de coisas tantas. Coisas, absurdos, injustiças e a perpetuação dessas injustiças. Infelizmente, esses vocábulos retratam ela: a realidade. A realidade que foi escancarada em duas obras de autores portugueses: em “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago; e em “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes. Cada um à sua maneira, ambos abordaram os horrores infindáveis da natureza humana. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (Saramago, 2017, p. 262), diz uma personagem no livro de Saramago, que, por sua vez, pode se estender para a obra de Lobo Antunes. Ambos trabalham com a dualidade do ser humano, as controvérsias e com o paradoxo da própria existência. O que é o ser humano, afinal?

Em “Ensaio sobre a cegueira”, é um ser lutando pela sobrevivência em meio ao caos, a fome e a violência – de todas as formas. Em “Os cus de Judas”, também. A trama da primeira história retrata uma sociedade assolada por uma “cegueira branca”, como se estivessem mergulhados em um mar de leite. A partir de então, os atingidos por essa epidemia são isolados e mantidos em um manicômio para minimizar a contaminação e, principalmente – conforme o pensamento do exército que cuidava do local – matarem um aos outros na tentativa de sobrevivência. Já na segunda história, Lobo Antunes escreve sobre suas experiências na guerra em Angola, enquanto auxiliava as tropas portuguesas. Então, ele começa a contar suas histórias no aguardo de sua refeição em um restaurante, relatando o horror da guerra e as atrocidades lá cometidas.

Mesmo as duas obras relatando o inominável que existe dentro do ser humano, elas abordam histórias distintas. A história de Saramago acontece em uma sociedade sem denominação, sem tempo, sem espaço. Suas próprias personagens não têm nomes: são chamadas conforme suas características, demonstrando a representação do homem pós-moderno e a fragilidade das identidades nos romances de Saramago. Essa narrativa pode ter acontecido em qualquer lugar, em qualquer tempo, com quaisquer pessoas. Lobo Antunes, por sua vez, narra também as barbáries, mas agora das guerras. Especificamente, ele retrata a guerra angolana – que durou 13 anos, de 1961 até 1974. É um livro sobre alienação, memória, identidade, guerra, solidão e traumas profundos da guerra colonial.

No entanto, apesar de possuírem histórias distintas, as duas narrativas aproximam-se ao expor o mais íntimo da vida: o inominável que escorre pelas palavras e concretiza-se – ou não – em cada ser humano. Na peça teatral “Ficções”, Vera Holtz ironiza o homo sapiens que “não sabe”. Esse “não saber” é a face escancarada das duas ficções aqui apresentadas que são cada vez mais reais: “Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes” (Antunes, 2014, p. 13) – esse trecho da obra de Antunes reflete a solidão e a insignificância da humanidade, que, a partir do encontro com o próprio eu, espanta-se. Relacionado com Saramago, esse é o inominável.

Quanto às convergências, pode-se pensar na época em que as obras foram lançadas. “Ensaio sobre a cegueira”, 1995; “Os cus de Judas”, 1979. Porém, algo os aproxima mais: a escrita. Em Saramago é usada de uma forma não canônica; falta no texto o travessão para identificar a fala das personagens, havendo uma multiplicidade de vozes ao decorrer da história sem identificação exata e marcação da troca de vozes, começando a fala com letra maiúscula, apenas. Quase sem pontos finais, a trama é cadenciada por vírgulas, evidenciando a reinvenção da pontuação pelo escritor, que adapta a grafia de acordo o ritmo prosódico. Saramago descobre sentidos ocultos e desconhecidos na palavra, na frase, no livro, fazendo o leitor também descobrir novos sentidos ocultos dentro de si. Isso evidencia também a forma que a obra é estruturada: sem capítulos. O enredo desenvolve-se de maneira única e não há nomes nos capítulos que se desenrolam por mais de 300 páginas: que chocam, espantam e comovem.

A escrita em “Os cus de Judas” contém parágrafos intermináveis, compostos por períodos longos e com uma pontuação “extravagante”. O narrador-personagem utiliza muitas figuras de linguagem e utiliza muitos adjetivos. Cada capítulo é intitulado por uma letra do alfabeto: de A a Z, no entanto, a narrativa não demonstra-se tão linear assim. As memórias do narrador misturam-se entre passado e presente na voz de alguém que esteve no epicentro do confronto e experimentou os atravessamentos causados por ele, assim como a História (essa com H maiúsculo) de Lobo Antunes. O autor foi um médico psiquiatra que realmente foi para as batalhas em África, beirando, assim, a uma espécie de “autoficção” – embora haja percepção de que ao criar-se a si mesmo, cria-se <<outro>>. A história transita pelo tempo presente – esse que o narrador encontra-se -, pelo tempo da guerra e pelo tempo da infância, numa fusão que depende das memórias do narrador.

Ademais, essa semelhança entre a escrita de Saramago e Lobo Antunes gerou certo estranhamento entre eles, mas a verdade é que, ambos com suas peculiaridades, marcaram a literatura portuguesa. Em questões ideológicas, José Saramago se uniu ao Partido Comunista Português em 1969 e sempre foi mais engajado. Em sua obra aqui estudada, lança uma crítica e uma reflexão sobre a pós-modernidade e como a sociedade está perdendo cada vez mais a capacidade de realmente observar a realidade. Nas palavras do autor, “Será que, neste tempo de violência e frivolidade, as ‘grandes questões’ continuam a roer a alma, ou o espírito, ou a inteligência (‘moer o juízo’ é uma expressão com muito mais força) daqueles que não querem conformar-se?”, trazendo à tona sua crítica. Lobo Antunes não era tão engajado politicamente quanto o escrito anterior. Sua família, inclusive, apoiava o governo de Salazar. Em meio a esse paradoxo em que viveu, refletiu suas indagações e questionamentos sobre a época da guerra em sua escrita.

Entre diferenças, semelhanças, temáticas, assuntos, escritas e abordagens, esses dois autores concretizam-se e fazem o leitor pensar. Seria esse o grande objetivo da Literatura? Por fim, nas palavras de Lobo Antunes, “O que seria de nós, não é, se fôssemos, de fato, felizes?” (Antunes, 2014, p. 85). Essa literatura parece dilacerar, com a indagação, todas as veias e vísceras humanas, assim como essas obras dilaceraram.

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, A. L. Os cus de judas. Ed. 1. Rio de Janeiro: Alfaguara2014.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

Projeto “A poesia caminha pela cidade”

15/04/2024 16:59

Por Paula Scalvin da Costa

Bolsista PET-Letras

Letras-Inglês

Onde vive a poesia? Onde encontramos passos, traços e registros poéticos ao longo de nossa vida? Entre nossos afetos, talvez. E quais são eles? As pessoas, os lugares, os caminhos…Quais são os personagens do nosso cotidiano que tomam nossa atenção e na narrativa do dia a dia seriam reescritos no mínimo em um parágrafo ou em um verso? Por onde a poesia caminha? Pela escola, nas ruas, nos muros…Na cidade.

Entrelaçando histórias que tinham – têm – sede pela arte, a criação e oportunidade da realização do projeto “A Poesia Caminha Pela Cidade” é apresentado à mim por Luísa Evangelista, partir de conversas sobre poesia e educação, dentro e fora dos intervalos da escola que trabalhava no ano passado, percebendo e refletindo sobre as experiências dos alunos e funcionários através da literatura em qualquer forma que seja. Individualmente e coletivamente, dentro ou além dos muros da instituição.  Nessas trocas conversadas, simples e subjetivas, foram evidenciadas inquietações e a necessidade de apresentar e trabalhar a poesia como uma ferramenta de expressão para a juventude. Vem de perceber a não-priorização da expressão por meio da linguagem artística, da literatura…

Descrição da imagem: Descrição de imagem: Cartaz de divulgação do projeto “A Poesia Caminha Pela Cidade”. O cartaz é preenchido principalmente pela cor verde claro. No fundo, tem a foto de um ônibus com algumas pessoas andando. Alguns detalhes em formato de quadrados constam aleatoriamente na imagem. No centro do cartaz tem o nome do projeto escrito em branco: “A Poesia Caminha Pela Cidade”. Na parte superior está escrito “experiências de escrita e escuta” e abaixo (no rodapé) tem os logos dos patrocinadores.

Nos questionamos então: onde é o lugar da arte, se não em todos os detalhes do dia? Há momentos próprios para ela existir? Há coisas específicas que são dignas o suficiente para serem registradas de forma que serão eternizadas, ou ao menos, externalizadas?

Digo: registrar poesia pode ser um ato político. É por meio dela – e outras formas de arte –  que expressamos vitórias e inquietações sociais. Criar arte e poesia é anterior até mesmo a escrita. Como discutido em uma aula de Literatura Surda I, em minha interpretação e do meu grupo de trabalho, entendemos que a poesia e a literatura não dependem da escrita para acontecer, uma vez que literatura acontecia muito antes de seu registro e continua existindo independente dela, de forma oral e sinalizada ..

Algo que notei com a experiência com estudantes é que, por vezes, a escrita é reconhecida apenas como ferramentas de registro e possibilidade de expressão apenas para os que “sabem usá-la de verdade”. Quem ensinou as pessoas a usarem as palavras? A linguagem é anterior ao seu registro e a noção de registro. E isso precisa ser apresentado à juventude.

Juntando então, as conversas anteriores, sobre poesia escrita, falada, registrada e o entendimento de que a poesia – e arte –  pode ser um ato político quando usada, por exemplo, em movimentos sociais como o Slam (competição de poesia falada) onde, eu e Eduardo Silveira (professor e poeta de Slam com livros publicados), juntamente com Luísa Evangelista (psicóloga, poeta e idealizadora do projeto) e Bárbara Vieira (artista na área de teatro e dança e proponente do projeto) nos conhecemos. Resolvemos pensar nesse projeto – “A Poesia Caminha Pela Cidade” – com o objetivo de transmitir a ideia de que a poesia, a escrita, a escuta e a educação, estão interligadas e não há um jeito único de se fazer ou discutir isso.

A ideia do projeto, vem, enfim, direcionado para estudantes e educadores da Rede Pública do Estado de Santa Catarina, nas escolas de Florianópolis. Tendo seu recorte para vozes por vezes excluídas socialmente, busca criar uma relação entre a expressão da voz, do corpo e da palavra.  O projeto então, é escrito e inscrito por minha colega Luísa, no concurso Elisabete Anderle pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC) em 2023 e bem… passou. Ele é composto por oficinas – ou encontros – que buscam estreitar o contato entre a poesia e a escrita com os adolescentes, trabalhando o conceito do “o que é poesia?” seja: visual, escrita, sensorial e outras… ou conceitos individuais “o que é poesia para você?”. No projeto estão:  cidade,  como o corpo se relaciona com esse lugar do cotidiano, os afetos familiares, as paixões íntimas e por fim, a expressão coletiva sendo enfatizada na escuta e no respeito mútuo, como pilar de exploração.

No momento, o projeto encontra-se na sua fase que chamamos de “produção”, quando estamos de fato em ação nas escolas e não organizando burocracias e lendo e procurando referências para as oficinas (não que seja ruim sentar em uma roda com leitores e discutir literatura). Através das oficinas que estão acontecendo, os participantes têm contato com referências de autores e autoras da poesia, dispositivos de criação (como vídeos e áudios), espaço para exercitar a leitura, a escrita, a escuta e a voz…

Por fim, a poesia caminha pois não se encontra apenas nos livros, mas sim nas ruas, nos passos, nas calçadas e/ou logo ali na esquina. Se encontra nas pessoas, nos muros, nas paredes, nas cadeiras… A poesia se encontra nos olhares, nas palavras… E poesia é nômade, e ela caminha em todos os espaços.

Não podendo escancarar todos os detalhes de nossas atividades mas, se caso quiser acompanhar, o projeto será/está sendo divulgado pelo Instagram @apoesiacaminha.

A poesia salva. E ela também caminha.

 

 

 

Ser não-mulher, uma breve andança pela crítica de bell hooks e Monique Wittig

04/04/2024 07:54

 

Por Sofia Quarezemin

Letras Português

Bolsista Pet Letras

Esta pequena trilha (ou andança) se aventura a explorar a negação da noção de mulher. Por um lado, como política de desumanização forjada para fortalecer o Estado racista e misógino. Por outro, como pressuposto radical e deliberado para um feminismo materialista. A incipiente reflexão surgiu com a leitura combinada do livro E eu não sou uma mulher?, de bell hooks, com o ensaio Não se nasce mulher, de Monique Wittig, que se encontra no livro O pensamento hétero e outros ensaios. Ambos os objetos foram publicados pela primeira vez em 1981, e a contemporaneidade das análises chama atenção pela gritante diferença das perspectivas desenvolvidas.

Wittig abre seu argumento com a premissa beauvoiriana de que ninguém nasce mulher, mas se torna, é forjada. Nas palavras de Beauvoir, “[…] nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.” (p.42).  Ou seja, a mulher (ideal de feminilidade) que a sociedade ocidental produziu é formada a partir da lógica de dominação masculina e essencialmente ocupa o lugar de “outro” em oposição ao ser humano universal, que é o homem. Isso coloca as mulheres (grupo que se constitui nas relações sociais materiais) em constante e alucinante submissão às normas de comportamento prescritas para que possam ocupar o lugar de mulher que foram induzidas a almejar.

Wittig revoluciona sua própria escrita quando afirma que lésbicas não são mulheres. Se a mulher existe numa relação de servidão com o homem, a lésbica não é uma mulher, na medida em que nega o homem e nega a ele seu trabalho, bem como seu corpo, seu cuidado, seu sexo, e, principalmente, seu poder reprodutivo. A autora ainda evidencia que o que está em jogo, aqui, é uma definição de indivíduo e também uma definição de classe, na qual o lesbianismo é uma alternativa crítica à ideia de que existe uma “mulher verdadeira”, pois a lésbica coloca  em xeque o caráter natural da sociedade e, assim, das cisões produzidas pelo corpo masculino hetero.

*Descrição da imagem: “I can’t see you without me”, de Mickalene Thomas. Trata-se de uma obra de arte que combina fotografia, pintura e colagens para formar o rosto de uma mulher fragmentada e recortada. Ela tem cabelos cacheados, usa argolas grandes e está olhando para baixo. Seu olho esquerdo e sua boca são desenhos em preto e branco.

 

No mesmo ano, bell hooks publicava uma de suas obras mais célebres e que a consagrou no campo do pensamento feminista, com o título original Ain’t I a Woman?.  O título do livro remonta à fala de Sojourner Truth, uma das mais famosas abolicionistas negras do século XIX nos Estados Unidos, no tocante à desumanização das mulheres negras:

 

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? […] Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari cinco filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?  (p.253)

O discurso de Truth expõe as engrenagens hipócritas e nada ingênuas da ideologia da supremacia branca estadunidense, dos patriarcas brancos, de suas esposas donas de casa e suas famílias de classe média.  Nesse âmbito, hooks discute a formação da mulheridade branca e negra: as mulheres brancas foram desumanizadas no nível sobre-humano, sendo imposto a elas o ideal de castidade, pureza moral, inocência e virtuosidade (postura que elas prontamente abraçaram, pois as resguardava, em certo nível, da violência masculina); enquanto isso, as mulheres negras foram desumanizadas no nível sub-humano, uma vez que se criaram em torno da mulheridade negra uma série de estereótipos, sendo os principais: o da mulher má, o da mulher sexualmente depravada e o mito da matriarca negra, que cuida de todos e suporta sozinha o peso das estruturas do mundo.

Esse cenário foi deliberadamente construído para dividir as mulheres em duas frentes na sua busca pela mulher ideal (retomando o conceito de Wittig). Esse fator é responsável por criar competição e rivalidade entre mulheres e, em seu livro, hooks volta sua atenção para o fato de que as mulheres negras estadunidenses buscavam se livrar dos estereótipos negativos ligados à sua negritude para abraçar o ideal de feminilidade que era reservado apenas às mulheres brancas. Ela elucida que às mulheres negras, foi negada não só sua mulheridade, mas sobretudo sua humanidade e seu direito de subjetivação.

[…] carregavam um ressentimento amargo por não serem consideradas “mulheres” na cultura dominante e, portanto, não receberam a consideração e os privilégios dados às mulheres brancas. Modéstia, pureza sexual, inocência e um jeito submisso eram as qualidades associadas à mulheridade e à feminilidade que mulheres negras escravizadas se empenhavam para adquirir, ainda que as condições em que moravam continuamente sabotassem seus esforços. (p.89)

Ao passo em que Wittig nega a categoria mulher, hooks a reivindica. Essa profusão de perspectivas que resultaram das análises das duas autoras aqui em foco me levou à questão: quem tem dúvidas sobre o que é uma mulher?

Quando me deparo com os casos crescentes de lesbocídio e com o fato de que as mulheres negras representam 67% das vítimas de feminicídio, ou com os números estarrecedores de assassinatos de mulheres trans ou de pessoas transfemininas, e sabendo que essas modalidades de violência quase sempre vêm acompanhadas de um grau de crueldade, eu me pergunto, de novo: por que os homens não têm dúvidas sobre o que é uma mulher? Por que a violência masculina alcança a todas as mulheres, umas mais e outras menos, sem se perguntar o que é uma mulher? Os retalhos que compõem as mulheres são frutos dos mais diversos níveis de estilhaçamento e busca por libertação, que nos levam da idealização à demonização, e mesmo assim eles não sabem dizer o que é uma mulher. Eles querem nos subjugar e nos matam quando não aceitamos, mas não têm ideia do que somos porque presumem, simplesmente, que somos o outro. E ser apenas o outro de alguém significa que nos foi roubada nossa capacidade de nos subjetivarmos por nós mesmas, mora aí a desumanização.

REFERÊNCIAS

HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? 12. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2023.

RODRIGUES, Léo. Homicídios crescem para mulheres negras e caem para não negras. É o que revela pesquisa do Ipea. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 05 dez. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/homicidios-crescem-para-mulheres-negras-e-caem-para-nao-negras#:~:text=Em%202021%2C%202.601%20mulheres%20negras,ao%20das%20mulheres%20n%C3%A3o%20negras.

WITTIG, Monique. O pensamento hétero e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.

 

 

Elaborações escorregadias sobre “Eles estão por aí”

01/04/2024 14:39

 

Por Débora Klug

 Bolsista do PET Letras

Letras Português

Este será um breve comentário-resenha que se propõe a tentar dar algum contorno interpretativo ao quadrinho brasileiro “Eles estão por aí”, lançado pela editora Todavia, em 2018, de autoria de Bianca Pinheiro e Greg Stella.

Digo tentar pois quem já conhece a obra concorda que ela pode ser descrita, no mínimo, como enigmática. É um quadrinho com muita margem interpretativa, abrindo muitos sentidos possíveis ao leitor. Tentarei indicar alguns pontos de partida.

Cabe, inicialmente, uma pequena apresentação dos eixos que conduzem a narrativa, e depois uma apresentação dos elementos estéticos do quadrinho (muitíssimo importante!).

Podemos pensar em três eixos diferentes: o primeiro é a jornada de dois seres; um deles parece uma lesma com um olho só, e o outro parece uma berinjela com um braço e duas pernas – uma delas é maior que a outra, como se fosse dobrada em um laço. Eles se acompanham, mas sem nenhuma razão aparente para tal. Apenas andam, e raras vezes trocam algumas poucas palavras, rumo a um lugar que nem o leitor e nem eles parecem saber qual. Apenas se deslocam para alguma direção. Esse já é um bom ponto para começar a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre deslocamento.

O segundo eixo é uma espécie de sociedade de outros seres; estes se parecem com sementes que têm pernas e boca, mas não tem olhos. Eles são guiados por uma espécie de líder religioso, cujas pregações são sobre seres titânicos que estão por aí, e que são como que donos de tudo por serem muito grandes, enquanto as sementes pequenas não são nada. Como eles não possuem olhos, acreditam que não foram feitos para ver. Acompanhamos então uma semente revoltada, que saí como andarilha para poder ver o mundo. E o segundo ponto para pensar a tentativa de interpretação do quadrinho pode ser isso: ver o mundo.


Descrição da imagem: um quadrinho de fundo preto possui um ser parecido com o formato de uma semente, com uma boca com poucos dentes pontudos e duas pernas, tem a seguinte fala no balão “mas é só por um tempo…”. Abaixo, há um quadro maior, também com o fundo preto, com o mesmo ser em maior evidência com outra fala distribuída em cinco balões diferentes: “eu preciso andar… eu quero… eu preciso sair… a senhora entende? Tem coisas que eu preciso fazer, coisas que eu preciso ver…”

Fonte: arquivo pessoal

Agora, por fim, o terceiro eixo são outros seres que parecem viver dentro de um gigante que não faz nada além de empilhar pedras. Não enxergamos esses pequenos seres em nenhum momento, apenas lemos seus diálogos que são as maiores das trivialidades possíveis: sonhos sobre desentendimentos entre conhecidos, fulano que ficou com ciclano e risadas desconfortáveis. Em resumo, são como os assuntos que temos com colegas distantes que encontramos sem querer no ponto e queremos preencher aquele vazio incômodo até chegar o próximo ônibus. É desconfortável de ler,  de tão trivial  que é o tom das conversas, com pausas longas e tentativas de puxar assunto falhas, uma inadequação gritante permeia todos os diálogos. Outro ponto importante para a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre vazios (e a tentativa de preenchê-los).

Uma travessia de uma dupla estranha, uma semente sem olhos que se revolta em busca de enxergar, e seres microscópicos conversando as maiores frivolidades. De maneira geral esses são os principais eixos da narrativa. O que perpassa, de uma maneira ou outra por todos os três eixos, é que todos os seres não sabem qual a função deles no mundo, se existe algo além deles, o que eles devem ou não fazer. Eles tentam dar algum rumo para o que vivem com o que têm à sua disposição, apenas andando, ou se revoltando, ou jogando conversa fora.

 

Descrição da imagem: há oito quadrinhos com o mesmo desenho, um ambiente feito de poucos traços arredondados, que lembram nuvens, e dois seres que são pontos pretos no meio dos traços. Nos dois primeiros quadrinhos não há falas, indicando silêncio. No terceiro quadrinho eles falam, juntos, “você”. O quarto quadrinho está vazio, indicando um silêncio. No quinto quadrinho eles riem juntos “hehe”. No sexto quadrinho um dos seres fala “pode falar”, o outro responde “não, não, fala você.” No sétimo quadrinho um dos seres fala “não, pode falar”. Por fim, no oitavo quadrinho não há falas, indicando silêncio.

Fonte: arquivo pessoal

Cabe aqui também apresentar a estética do quadrinho. Ele possui traços muitos orgânicos e um tanto minimalistas. É todo em preto e branco, e os quadros tem muitos momentos lentos e contemplativos, em que apenas observamos os personagens se deslocando no ambiente, sem nenhuma fala ou grandes acontecimentos (principalmente no primeiro eixo da história, da lesma de um olho e a berinjela perna-de-laço).

Além disso, o quadrinho é repleto de splash pages utilizadas de uma maneira bem inusitada. Splash pages é um recurso gráfico em que o autor se utiliza de uma página inteira para colocar uma cena, ao invés de vários quadrinhos em uma página só, é uma imagem que toma conta da página toda. Geralmente, esse recurso é usado para destacar um grande acontecimento, nos momentos clímax da narrativa, para chamar a atenção do leitor. No entanto, em “Eles estão por aí” as splash pages são, muitas vezes, os momentos de completo vazio, que causam angústia, como os personagens sentados na beira de um precipício, ou caminhando por desertos ou locais estranhos e monumentais.

E é nessa estética que convergem os três pontos que destaquei anteriormente: o deslocamento, ver o mundo e vazios. Todos os três pontos se interceptam, pois, cada um à sua maneira, os personagens se deslocam entre vazios (metafóricos e literais) para ver o mundo.

A história de “Eles estão por aí” é construída, essencialmente, por seus desenhos e recursos gráficos, não tanto pelo que está materializado em língua escrita. É no que não se diz que está a maior potência da narrativa.


Descrição da imagem: há uma ambientação simples, com uma longa linha no horizonte, seguida de pequenas linhas abaixo dela, criando uma textura que parece ser de um lugar deserto. Ao longe, no horizonte há duas pequenas silhuetas.

Fonte: arquivo pessoal


Descrição da imagem: essa é a continuação da imagem anterior. Ainda há uma linha longa fazendo o horizonte, no canto direito uma pequena árvore. Mais a frente, as duas silhuetas agora estão visíveis. Uma delas se parece com uma berinjela com duas pernas e um braço, e a outra parece uma lesma com um olho. Elas encaram um precipício que é preto com algumas rachaduras em branco. Os traços são simples.

Fonte: arquivo pessoal

 

Por fim, vale apontar que o quadrinho, como não tem uma estrutura narrativa convencional, também não tem um final convencional. Não há nenhuma conclusão, nenhuma mensagem final, não há qualquer tipo de ensinamento moral. A história começa de supetão do nada e termina de supetão num nada, deixando o leitor em suspenso e com dúvidas. Para de algum modo “emprestar” a estética, o presente texto assim também será.

 

Descrição da imagem: há sete quadrinhos que mostram um ser parecido com uma semente com duas pernas e uma boca, ele possui uma pequena trouxa amarrada nas costas. O ser olha de um lado pro outro, caminha um pouco, sem rumo, e para.

Fonte: arquivo pessoal

PS: leiam mais quadrinhos brasileiros!

Os símbolos no cinema: por que vilões bebem leite?

17/03/2024 14:35

Por Manoela Beatriz dos Santos Raymundo

Graduanda em Letras Inglês – Licenciatura

Bolsista PET-Letras

 

A simbologia no cinema surge de diferentes maneiras: desde coisas mais conscientes, como referências diretas a outras obras, até aspectos que atiçam o inconsciente do espectador, como, por exemplo, a comida. A comida é um símbolo que pode ser usado de diversas maneiras dentro de uma obra, mas implica, muitas vezes, em dar efeitos de mais vida e profundidade ao entendimento que temos de como o personagem age ou vive. Por exemplo, um personagem que come rápido e sempre com as mãos, como comida de rua e salgadinhos, cria um efeito de pressa, de estresse. Nesse caso, ao não se alimentar “adequadamente” mostra que está constantemente ocupado demais para se preocupar com isso.

Em algumas ocasiões, essa simbologia serve não só como ferramenta para aprofundar a personalidade do personagem, mas também para sentirmos um estranhamento pelas ações do personagem, como por exemplo, no caso do consumo de leite e sua relação com as práticas de exceção.  Já parou para pensar o por que de alguns vilões dos filmes bebem leite? O Capitão Pátria, da série The Boys, Alex DeLarge, de Laranja Mecânica, e o Coronel Hans Landa, de Bastardos Inglórios. Os três exemplos geram um sentimento de desconforto no espectador pelo sentido que nós damos ao alimento leite e ao que o associamos quando pensamos na bebida. O leite é nosso primeiro alimento, ligado à maternidade. Porém, quando bebido por adultos, gera um estranhamento quando comparamos a simbologia do leite às ações e feitos dos personagens – como por exemplo a cena de Alex DeLarge e sua gangue no filme Laranja Mecânica.

Na cena, Alex, interpretado por Malcolm McDowell, e seus comparsas bebem um copo de leite em um bar – a Leiteria. O leite, batizado com diversas substâncias, pode ser vendido a pessoas menores de idade por não ser uma bebida alcoólica e, sim, uma “bebida de crianças”, nos mostrando a natureza de Alex e seus companheiros que agem com ultraviolência no decorrer do filme.

Imagem 1: Alex DeLarge, interpretado por Malcolm McDowell, personagem do filme Laranja Mecânica, dirigido por Stanley Kubrick e lançado em 1972. A imagem mostra Alex, no centro da imagem, junto de seus dois comparsas, um em cada lateral, todos bebendo um copo de leite.

Uma sensação parecida pode ser vista na série The Boys, com o super-heroi Capitão Pátria, interpretado por Antony Starr, tendo uma relação perturbadora com a bebida. Durante a série, mostra-se o quão infantil o Capitão Pátria pode ser quando contracenando com Madelyn Stillwell, interpretada por Elisabeth Shue. Capitão Pátria inveja o relacionamento de Stillwell com seu filho recém-nascido, algo que ele, por ter sido criado em laboratório, não teve. Ele sempre aparece encarando a chefe quando ela está amamentando a criança, e, até mesmo, pega uma das garrafas de leite do neném e bebe em algum ponto da série. O sentimento de estranhamento com o Capitão Pátria bebendo leite se torna ainda mais profundo quando vemos que é realmente leite materno, intensificando toda a simbologia atribuída à bebida.

Por outro lado, além das mensagens mencionadas acima acerca da bebida, temos mais uma visão da simbologia que o leite pode nos trazer, simbologia essa que é fortemente apresentada em Bastardos Inglórios. No filme, o Coronel Hans Landa, um coronel do exército nazista, pede um copo de leite durante uma cena de interrogatório logo no início do filme. Existem duas leituras, ambas, de certa maneira, contraditórias e complementares. A primeira é que o leite, bebido por alguém de alto escalão como Hans Landa, passa uma imagem amenizada da autoridade que o Coronel implica, tentando transparecer uma postura menos rígida. A segunda, e mais presente no texto do filme e de outras obras, é a mensagem de falsa superioridade, atrelada diretamente ao nazismo e aos discursos da chamada “supremacia branca” que a bebida sugere.

Imagem 2: Coronel Hans Landa, interpretado por Christoph Waltz, personagem do filme Bastardos Inglórios, dirigido por Quentin Tarantino e lançado em 2009. A imagem mostra Hans Landa sentado em frente a uma mesa de madeira, enquanto outra pessoa, um camponês francês, serve um copo de leite para ele.

Outra cena digna de menção tratando desse tema vem do filme Corra, do diretor Jordan Peele, onde a vilã Rose Armitage, interpretada por Allison Williams, é mostrada comendo cereais e leite, porém não de maneira usual. Rose toma o leite separado dos cereais coloridos, mostrando a pureza do leite  – novamente, remetendo às práticas racistas, deixando os cereais coloridos em um pote separado, para não se misturarem ao leite.

Imagem 3: Rose Armitage, interpretada por Allison Williams, personagem do filme Corra, dirigido por Jordan Peele e lançado em 2017. A imagem mostra Rose, sentada em uma cama, em frente a um laptop, pegando um copo de leite puro a sua direita. Rose está vestida completamente de branco, cabelo preso em um rabo de cavalo e com fones de ouvido.

 

Esses exemplos mostram que leite (ou qualquer outra substância, coisa, ação) não é tão inocente e vem sendo usado como símbolo de supremacia e autoridade há um bom tempo. Essas leituras mostram o poder da comida, mas, sobretudo, dos símbolos.