Primeiro Ensaio
Por Mahara Soares
Voluntária | PET-Letras
Letras-Português
Ana Martins Marques, poeta, redatora e revisora, publicou “O Livro das Semelhanças”, no ano de 2015. Sendo parte do projeto poético da autora, reconhecida por relacionar o processo de escrita com a experiência do existir, tem como base um sistema metalinguístico utilizado para refletir as diferenças e semelhanças entre o real e a literatura. O livro cria um jogo metapoético que vai além de seu conteúdo, envolvendo os próprios títulos dos poemas numa espécie de construção estrutural. “Livro”, primeira das quatro seções em que a obra se divide, é introduzida com os seguintes textos: Capa, Nome do Autor, Título, Dedicatória, Epígrafe, Primeiro Poema e Segundo Poema. Os poemas têm um sentido de continuação entre si, arquitetam o livro ao mesmo tempo em questionam sua respectiva estrutura e função.
Descrição da Imagem: capa do livro. Fundo azul claro, com manchas pretas. No centro, um quadrado (virado), em branco, traz o título do livro e o nome da autora em fonte fina.
Primeiro poema
O primeiro verso é o mais difícil
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia
o dia: contas a pagar
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas
aqui ao menos não encontrarás,
leitor,
xícaras sujas
(Marques, 2015, p. 18)
No que diz respeito ao aspecto temático, o “Primeiro Poema” aborda a poesia como algo a parte do cotidiano, do mundo do “dia” em que cabem as coisas rotineiras. Assim, entrar no poema seria como abrir uma porta para um mundo que não o real, como (se deixar) ser transportado a outro lugar que não o comum, fugir. Ao mesmo tempo, ironicamente, o leitor encontra elementos corriqueiros ao fazer a leitura, e o eu-lírico escreve enquanto reflete sobre a dificuldade da escrita, explorando a metalinguagem. Vejamos como a autora procede com o “Segundo Poema”:
Segundo poema
Agora supostamente é mais fácil
o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página
como botões numa camisa ou um peixe
preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo para que ele não o deixe
para isso só contamos com palavras
estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia
escada que depois deitamos fora
aqui elas são tudo o que nos resta
e só com elas contamos agora
(Marques, 2015, p. 19)
O poema acima está estruturado em um soneto decassílabo, contendo dois quartetos e dois tercetos, símbolo de uma literatura clássica considerada rebuscada. Apesar disso, a inspiração se encontra apenas parcialmente no aspecto formal, já que o poema não segue à risca o padrão da métrica característica dos sonetos. É possível identificar alguns esquemas de rimas que variam entre rimas internas, enlaçadas, emparelhadas e cruzadas. Há ainda a presença de alguns versos brancos, que não compõem rimas. Nota-se, assim, o esforço da autora em romper o padrão com o padrão, uma estratégia irônica e bem articulada.
A quebra se estende à expectativa do leitor que, ao reconhecer um esquema de rimas, presume que o mesmo se repita, que haja uma sonoridade contínua, mas é surpreendido pela alternância constante e pela “dessonorização” que marca a literatura moderna. Além de não contar com rimas previsíveis, o leitor se depara com a escassez de pontuação, estes fatores o tornam diretamente responsável pela fluência da leitura do poema, ou seja, pelo ritmo, que se adere ao pensamento e vice-versa. Cria-se, assim, o movimento sonoro do poema.
A poesia coloca-se como uma tentativa de preenchimento da realidade por meio da linguagem. A ambiguidade, presente nas comparações e metáforas, explora a confusão entre os elementos reais e os imaginários, conciliando ainda mais os dois mundos, vivido e literário. Ana Martins Marques utiliza de imagens baseadas em analogias, como em “manter a máquina girando” e em “a embarcação que é este livro”, para criar relações subjetivas entre objetos diferentes.
Logo no primeiro verso de “Primeiro Poema”, o eu-lírico expressa sua preocupação com o processo de escrita que enfrenta: “O primeiro verso é o mais difícil”. Entre o bloqueio criativo e a pressão de despertar o interesse de um possível leitor, são infindas as possibilidades e escolhas de construções frasais. Já o “Segundo Poema” tem um início bem contrastante com o do texto anterior: “Agora supostamente é mais fácil / o pior já passou”. Agora a questão deixou de ser sobre como começar e tornou-se sobre como manter, como assegurar a continuidade, como garantir que o leitor seguirá nas páginas. A poeta reflete, então, sobre o material da poesia.
Ao observar os tercetos, encontra-se um tipo de espelhamento do primeiro verso da terceira estrofe e do terceiro verso da quarta: “para isso só contamos com palavras” e “e só com elas contamos agora”. Está exposta, finalmente, a fragilidade da literatura. Seu material são as palavras. Estas, que são usadas para falar de todas as coisas, das importantes e das banais, das úteis e das inúteis, das simples e das complexas. A substância da poesia é a linguagem e, principalmente neste caso, a linguagem usual do cotidiano, “estas mesmas que usamos todo dia”.
Ao mesclar os aspectos formais clássicos da métrica com o conteúdo moderno e a linguagem simples, a autora aproxima seu leitor da poesia, resgatando elementos com os quais ele está familiarizado, experiências pelas quais ele já passou. Esta concepção aumenta a eficácia poética e a fruição do texto literário, pois permite que o leitor se conecte com o livro, desperte suas memórias e preencha as lacunas deixadas pelo escritor.
A obra de Ana Martins Marques imerge o leitor em seu processo de escrita, reflete a literatura enquanto a constrói, brinca com as relações extralinguísticas que estabelece. As característica presentes em seus textos vão muito além das que foram aqui citadas, têm a capacidade de suscitar discussões variadas e profundas sobre diversos assuntos, de deixar registrada a potencialidade de estudos futuros. Entretanto, pode-se dizer que os pontos destacados já são suficientes para afirmar a relevância da referida autora para a literatura brasileira contemporânea.
REFERÊNCIA
MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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