-
DE FÉRIAS COM O PET | O que nos acomoda ao mediano?
Por Mahara Soares
Bolsista PET-Letras
Letras – Português
Dos inúmeros assuntos que permeiam os questionamentos humanos, poucos parecem interessar mais à arte do que a ânsia de ser – ser diferente, ser em breve, ser mais. É uma obsessão que nos atinge desde cedo, ela se instala discretamente quando os adultos questionam às crianças: o que você quer ser? A partir de então, o conceito deixa o posto de realidade e toma o de objetivo. Mas o que nos faz diminuir a intensidade de nossas ânsias? Em que ponto paramos de almejar ser astronautas, vampiros, presidentes, super-heróis, rock stars, piratas, cientistas e todas-as-respostas-que-as-crianças-sempre-têm-na-ponta-da-língua, e começamos a nos conformar em apenas existir?
Calma. Não quero dizer que você deveria vestir uma capa vermelha e levantar voo. Quero dizer que tirar a máscara e parar de fingir estar satisfeito pode ser interessante. E, claro, isso se aplica a um âmbito extremamente individual. Afinal, é óbvio que foram o trabalho, a fome, as contas a pagar, o currículo a construir, a rotina acelerada, a produção em massa, o bombardeio de informações e o resto que envolve a vida moderna capitalista que nos colocaram o cabresto e firmaram nossos pés ao chão. Enquanto isso, os milhares de coachs que existem por aí nos dizem que tudo não passa de força de vontade e meritocracia. Sua vida não está dando certo porque você não tenta o suficiente. Não acorda mais cedo o suficiente, não trabalha até a exaustão o suficiente, não economiza o dinheiro do almoço o suficiente. A mídia nos prova que todas as celebridades, subcelebridades e influencers de Instagram conseguem muito mais. Porque você não consegue? É desse jeito que você e eu – e grande parte da população – passamos a acreditar que não merecemos ser.
“Messages keeps getting clearer
Radio’s on and I’m moving ‘round my place
I check my look in the mirror
I wanna change my clothes, my hair, my face
Man, I ain’t getting nowhere
I’m just living in a dump like this
There’s something happening somewhere
Baby, I just know that there is” (Springsteen, 1984)
Ainda assim, sei que a vontade permanece em você e em mim, sucateada na turbulência do existir. Sei porque a sinto. Sei porque é o que a arte me conta. Eu a leio nos romances escritos por alguém que sonhou com amores arrebatadores, eu a escuto nas músicas compostas por alguém que desejou ser ouvido, eu a vejo nos filmes dirigidos por alguém que fantasiou um mundo inteiro e a vejo nas pinturas de alguém que buscou tocar o público. Essa vontade é o que nos permite sobreviver à experiência da condição humana. Querer ser é resistir, é ir contra a crença de que não o merecemos.
Imagem: homem morando numa pequena e desconfortável ideia de si mesmo
Fonte: Susano Correia (2021, p. 96)
Descrição de imagem: desenho em grafite, fundo branco. Um corpo humano, retratado da cintura para cima. Um dos braços está posicionado atrás das costas e tem a mão apoiada no outro, este está esticado ao lado do torso. No lugar da cabeça há uma casa de madeira com telhado, chaminé e varanda. De dentro da casa, pelas janelas e portas, pendem os membros de outro corpo humano, este está deitado no chão da casa, ocupando todo o espaço.
Deixemos de ser Macabéas e nos contentar com o pouco porque ele é tudo que conhecemos. Tenhamos a coragem de ansiar enquanto capazes. Em A redoma de vidro, originalmente publicada em 1963, Sylvia Plath nos alerta a urgência: como seres efêmeros estamos eternamente sujeitos à passagem do tempo.
Eu vi minha vida estendendo seus galhos em minha frente como a figueira verde da história. Da ponta de cada ramo, como um figo roxo e grande, um maravilhoso futuro acenava e piscava. Um figo era um marido e um lar feliz e filhos, e outro figo era uma famosa poetisa e outro figo era uma brilhante professora, e outro figo era E Gê, a editora incrível, e outro figo era Europa e África e América do Sul, e outro figo era Constantin e Sócrates e Attila e um pacote de outros amores com nomes esquisitos e profissões incomuns, e outro figo era a campeã da equipe olímpica, e além e acima desses figos haviam muitos outros figos que eu não podia distinguir bem. Eu me vi sentada na bifurcação dos galhos desta figueira, morrendo de fome, só porque eu não conseguia me decidir de qual figo escolher. Eu queria cada um deles, mas escolher um significaria perder todo o resto, e, enquanto eu estava sentada ali, incapaz de me decidir, os figos começaram a se enrugar e ficarem pretos, e, um por um, eles caíram ao chão, aos meus pés. (Plath, 1991, p. 96-97).
Desesperados, repetidas vezes nos esquecemos da possibilidade de recomeçar, de transformar, de tentar novamente, e a angústia de nos sentirmos presos às nossas carcaças nos assola de tempos em tempos. Reconheço que me soa quase hipócrita incentivar a mudança sabendo das circunstâncias que nos prendem, mas, se não essa, qual a outra opção? Repito: querer é resistir. Arte é fagulha.
REFERÊNCIAS
CORREIA, Susano. Fim dos tempos nos corações, isolados. Palíndromo, Florianópolis, v. 13, n. 29, p. 90-101, 2021. DOI: https://doi.org/10.5965/2175234613292021090. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/19170. Acesso em: 5 fev. 2025. [il. p. 96, desenho, 29,7 x 21 cm].
DANCING in the dark. [Compositor e intérprete]: Bruce Springsteen. In: BORN in the U.S.A. Intérprete: Bruce Springsteen. New York City: Columbia Records, 4 jun. 1984. 1 canção. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/track/7FwBtcecmlpc1sLySPXeGE. Acesso em: 6 fev. 2025.
PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1991.
-
DE FÉRIAS COM O PET | Um loureio sem salvação
Débora Klug
Bolsista PET-Letras
Letras Português
As Metamorfoses foram escritas pelo poeta romano Ovídio, por volta do ano 8 d.C. O livro é uma coletânea de mitos e lendas da mitologia greco-romana, organizada de maneira que traça a história do mundo desde sua criação até a deificação de Júlio César. O principal tema da obra é a metamorfose, isto é, a transformação das pessoas, deuses e até mesmo de objetos, em algo diferente – seja por vontade própria ou por punição divina.
A obra também oferece uma visão cultural e religiosa do mundo antigo, mostrando como as crenças e os mitos influenciaram as pessoas daquela época. É possível observar uma série de padrões, elementos simbólicos, estruturas sociais e comportamentos que, dada a grande influência da cultura greco-romana na nossa cultura ocidental até os dias de hoje, torna o estudo das obras clássicas muito interessante e substancial para compreender a nossa sociedade atual.
Apesar de mais de dois mil anos terem se passado desde que os mitos foram escritos, um dos padrões que se repete nos dias de hoje, e que se mostra em diversas passagens da obra, em vários mitos e várias metamorfoses, é a condição subalternizada da mulher, do seu desejo e da sua autonomia, que apresentarei através de uma leitura crítica do mito de Dafne e Apolo.
Em geral, as mutações são concedidas por deuses. No caso das mulheres, as mutações são colocadas, à primeira vista, como atos misericordiosos dos deuses, como uma alternativa de salvá-las da própria condição de ser mulher. Porém, entendemos que através de um olhar mais atento e crítico, percebe-se que essas metamorfoses se dão sempre em contextos de crueldade, abuso e privação, a exemplo da metamorfose de Dafne (livro I), que se dá pois Febo ridiculariza o ofício do Cupido; como castigo o deus do amor acerta Febo com a flecha da aljava do desejo e acerta Dafne com a flecha da aljava da repulsa. Logo, o castigo: Febo se atraí irracionalmente por Dafne, e a uma ninfa o recusa veementemente.
Dafne era uma virgem da deusa Ártemis, e é conhecida por sua grande beleza, por isso é cobiçada por vários homens. Entretanto, sempre os recusa, e, apesar de seu pai, o deus Pneu, lhe pedir um genro e netos, ela implora ao deus que possa se manter virgem para sempre, pois sente asco pelo matrimônio e deseja caçar e correr pelas florestas. O pai concede o desejo da filha, nos versos 488 e 489 do primeiro livro: “Ele de fato, lá consentiu – mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos.” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489).
Nesses versos fica ambíguo qual seria o proferidor da afirmação final, após meia risca, se é o pai de Dafne, ou o poeta que escreve. Observa-se o uso da terceira pessoa singular no início do verso, onde é clara a afirmação pela voz do poeta “Ele [o pai, Pneu] de fato, lá consentiu [o desejo de ser virgem]”. Entretanto, há uma mudança de pessoa para a segunda do singular após a meia risca, no trecho ambíguo “mas o teu encanto não permite o que queres, e a tua formosura rechaça os teus desejos” (Ovídio, 2007, livro I, 488 – 489 grifos nossos); essa mudança de pessoa pode sugerir uma mudança também na voz que profere a afirmação, não mais a voz do poeta, como no início do verso, mas agora a voz é do próprio pai de Dafne, que afirma a beleza da filha ser tanta, que não é permitido à ela realizar o desejo de ser virgem. Independente da ambiguidade, fica claro aqui que a condição de permanecer virgem, a condição de escolher sobre o próprio corpo e a própria vida, não pode ser uma escolha única e exclusiva da mulher.
Nos versos seguintes, Febo persegue Dafne para tentar conquistá-la, entretanto, ela foge correndo pela floresta. A ninfa começa a se cansar e Febo chega cada vez mais perto de agarrá-la, e quando ele consegue, ela implora ao pai que acabe com a sua beleza atraente. Os versos finais dessa metamorfose são:
‘Ajuda, pai’, gritou, “se vós, os rios, tender poder divino!
Extingue e transforma esta figura, demasiado atraente!’
Mal terminara a prece, e um pesado torpor lhe invade o corpo.
O macio peito da jovem é envolto por uma fina casca,(Ovídio, 2007, livro I, 546-557)

Imagem: “Apolo e Dafne”, escultura em mármore de Gian Lorenzo Bernini, esculpida entre os anos 1622 e 1625.
Fonte da imagem: Internet – Postposmo
Descrição da imagem: a imagem é composta por três fotos em ângulos distintos da mesma escultura. A escultura é a figura de um homem, Apolo, agarrando pela cintura uma mulher, Dafne, que está com os braços erguidos e com expressão no rosto de desespero. As mãos da mulher possuem dedos que são galhos e folhas, assim como uma de suas pernas é em partes um tronco de uma árvore. Nas duas primeiras fotografias os ângulos permitem observar o rosto de Dafne, e a terceira fotografia mostra o peito dela e o lado direito de sua face se transformando em árvore. A expressão dos corpos das duas figuras sugere que a mulher tenta se esquivar do homem, enquanto ele tenta alcançá-la. Ambos estão seminus, e Apolo tem apenas um pano lhe cobrindo parte do corpo.
O deus Pneu atende o pedido da filha, e imediatamente a transforma em um loureiro. Febo, ao perceber a transformação abraça e beija a árvore, “mas o lenho aos beijos se esquiva”. Percebe-se que desde o início a ninfa recusou o deus do sol. Ainda implorou ao pai que lhe livrasse de sua beleza para que cessasse a perseguição, e após a metamorfose, Dafne já sendo uma árvore tenta escapar do toque de Febo. Apesar disso, no final do mito ele nomeia o loureiro como a sua árvore, que estará sempre em seus cabelos, em sua cítara e em sua aljava, que guardará os umbrais das portas e terá a honra perpétua. A situação toda se contrói de maneira a romantizar como um grande ato de amor as atitudes de Febo. Porém, considerando uma leitura crítica atual a partir de valores e crenças que se distanciam daqueles da Grécia Antiga, pode-se afirmar que é evidente nos versos que o expresso desejo de Dafne, sua repulsa e asco, não apenas por Febo, mas também pelo matrimônio e as relações conjugais, foi ignorado pelo deus do sol. Ao final, de maneira muito estranha, a ninfa, agora árvore, aceita as honras dadas à ela por Febo, abanando a copa. Fica o questionamento do por que Dafne, que recusou o deus até o fim de sua existência humana, no final concordaria com ele, como se no fim cedesse à sua vontade, já desprovida de autonomia para negar os caprichos de Febo. Essa passagem condensa em si a condição da mulher e de seu desejo na época, que em últimas instâncias é sempre subordinado ao desejo do homem, e também ilustra como era idealizada e romantizada toda a trajetória da conquista entre homem e mulher, desconsiderando o querer da mulher. Mesmo após ser transformada em loureiro, Dafne ainda é beijada e ainda tenta se esquivar com o corpo que agora é tronco. Depois de toda a recusa inflexível, Febo ainda a nomeia como sua. Ou seja, a vontade da mulher foi contrafeita até o último segundo de sua existência humana, e também durante sua existência como loureiro.
PS: Essa reflexão se deu durante a realização do trabalho final da disciplina de Estudos Literários IV – Literatura Latina e Textos Fundacionais, feito em parceria com Ariadne Toledo, a quem o mito de Dafne e Apolo primeiramente chamou a atenção para o estudo.
REFERÊNCIA
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução: Paulo Farmhouse. Lisboa: Cotovia, 2007.
-
De férias com o PET: “O Som do Rugido da Onça”
Angelo Gabriel Cassariego Perusso
Letras- Português
Bolsista PET-Letras
O som do rugido da onça é um romance publicado em 2021, por Micheliny Verunschk, que foi vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário em 2022. O romance reconta a história de dois jovens indígenas, aqui chamados de Iñe-e e Juri, que foram sequestrados pelo zoólogo Johann Baptist von Spiux e pelo botânico Carl Friedrich von Martius em 1817 e levados para a Europa como uma espécie de resultado de pesquisa dos “exploradores” europeus em solo brasileiro. Além das crianças, Spiux e Martius levaram para a Europa diversas plantas, animais, pedras preciosas e seus relatos de viagem. Digo que a autora “reconta” a história porque a história foi contada originalmente através dos relatos de viagem de Martius e Spix, ou seja, sob a perspectiva dos europeus raptores, enquanto que nessa obra a história desse triste caso é contada da perspectiva dos jovens indígenas. O livro é o fruto de uma vasta pesquisa sobre o caso e sobre os povos indígenas brasileiros e levanta muitas questões importantes, dentre elas o papel da escrita na formação das “verdades” historiográficas e os horrores da colonização e seu impacto direto na atualidade, o que implica em reconhecer a importância da preservação cultural e valorização da vida dos colonizados.
Sobre esta primeira, a escrita, sabemos (e o romance deixa ainda mais claro) que o que chega aos livros de história do ocidente é diretamente atravessado pelos interesse ideológicos europeus e cada linha escrita sobre os acontecimentos nas Américas que não seja produzida pelos povos oprimidos foi cunhada pelos colonizadores, o que significa também que esses textos foram apagados, reescritos, rasurados, adaptados, moldados e ajustados de maneira a justificar ou pelo menos diminuir os horrores promovidos pela colonização europeia e, além disso, tentar defender a ideia de que bárbaro é o Outro, nunca a Europa. Bárbaro, para os cadernos de Spiux e Martius, eram os sequestrados e não os sequestradores; afinal de contas, os sequestradores eram brancos.
No capítulo XVIII da obra, a narradora questiona justamente essa ideia. Somos levados, por meio da narração, a acompanhar o processo de pensamento de Martius durante a escrita do que aconteceu com Juri e Iñe-e. Nesse contexto, Martius se vê confrontado na hora de passar o fato ao papel com uma verdade difícil de ignorar: não há como justificar o rapto de crianças indígenas cometido por ele. A autora escreve (p.33):
Martius rasura. Omite o destino do menino. Precisa apagar rastros, estabelecer o lugar de corte entre o vivido e aquilo que gostaria que tivesse acontecido. Ou dar apenas aquilo que as pessoas precisam saber, parca ração da verdade. Toda rasura é uma edição. […] Martius esquece o que escreveu. Ou não esquece, mas quer esquecer. Deliberadamente, rasura. E a rasura também é um método.
O conteúdo dos documentos escritos por Martius se encontra presente neste capítulo e o que vemos é a clara tentativa de esconder os aspectos horrorosos de suas atitudes e a utilização da clássica, atual e nefasta tática de acusar uma suposta ausência de Deus nos povos contra quem ele peca. Além disso, neste mesmo capítulo, a autora comenta sobre a crença de Martius de que a escrita permanece, supera a limitação da memória a que a fala está submetida e condenada, e que, portanto, a escrita, para ele, é superior à fala. Esse sistema de pensamento funcionou bem para os europeus, que tinham em mãos os cadernos e os lápis e puderam, tal como ele fez, contar o que quisessem dos povos que não tinham como se defender nos brancos papeis da Europa, moldando assim a maneira que se contou a história e os imaginários populares até os dias de hoje. O que quero pontuar destacando esse trecho é que a escrita é cínica e, além disso, um instrumento de dominação. A escrita permite um raciocínio longo antes da transferência do pensamento ao papel, permite o arrependimento que gera o apagamento ou a rasura, permite a reescrita. Quando Martius revela em seu relato que sequestrou um menino que era filho do líder de um povo indígena (o que para a Europa da época significaria raptar um príncipe) e então rasura, é como se isso nunca tivesse ocorrido de acordo com aquele documento. Mas, ainda assim, aconteceu e mesmo após a rasura deixou uma marca. Por isso minha defesa da fala: quando falamos, o que foi dito foi dito, não há como “desfalar”. Tapa dado é tapa dado. A escrita, por sua vez, permite essa manipulação puramente cínica que foi e ainda é uma das maneiras dos impérios sobreviverem.
Entro agora na outra questão. O livro conta a história dos dois indígenas com a seriedade que merece enquanto flerta com o mágico, o religioso e o espiritual. Tudo que acontece com os dois jovens é narrado sem tirar o peso do que significou o empreendimento colonial para os povos indígenas. A leitura dói, irrita. É difícil passar ileso pelas páginas sem se afetar com os acontecimentos. Gostaria de exemplificar, mas temo que o spoiler tire do futuro leitor a experiência de sentir a obra com a profundidade que ela merece, entretanto me atenho a duas passagens importantes. A primeira delas diz respeito a uma terceira personagem que aparece esporadicamente, mas que tem papel central na obra: Josefa. Josefa é uma personagem situada no contemporâneo que se vê confrontada com seu passado e sua história quando vê, em um museu, um retrato de Iñe-e e se considera igual a menina pintada no quadro. Josefa tem ascendência indígena e encontra nessa questão diversos dilemas internos, mas o principal deles é a falta de conhecimento sobre seus antepassados. Ainda assim, confrontada pela imagem, Josefa mostra a imagem de Iñe-e para seu namorado e o mesmo diz que elas não se parecem, ao que ela responde: “Ela está triste. E não é livre. Eu sou exatamente igual a ela” (p.99).
A mulher então parte em uma jornada em busca desse casal indígena e essa relação entre o passado e o presente permite perceber que os efeitos da colonização atuam de muitas maneiras nos dias de hoje e que os filhos daqueles como Iñe-e e Juri trazem literalmente na pele esses traumas consigo. Justamente nessa lógica, ressalto outra passagem bastante marcante, com o cuidado de não revelar exatamente o teor da cena: em dado momento, um personagem pôde ver o Brasil todo e então descreveu o país como “uma criatura feita de despedaçamentos e esperanças sendo ajuntada por meio de um trançado muito intrincado sob o nome de um país” (p.139) e então vê o mar e vê nele todo o “sangue dos pobres do mundo” (p.139) que ali existe, e então vê o passar dos tempos e é confrontada com a realidade de que o terrível vivido por Iñe-e e Juri não foi o começo nem o fim, mas sim que essa máquina de moer gente que só muda de nome segue operando até os dias atuais. Logo em seguida, a autora faz um movimento pouco usual para romances em prosa: ela coloca uma espécie de colagens de trechos de textos históricos e manchetes jornalísticas que retratam a maneira com que os povos indígenas foram tratados através dos tempos até chegar na contemporaneidade, de maneira a demonstrar que histórias como a dos jovens raptados, no máximo foram mascaradas sob outras nuances, mas ainda acontecem.
O livro se desenrola com o pesar e a tristeza que o conteúdo da história exige, mas o faz de maneira exemplar e permite ao leitor que se encante com os personagens, que aprenda com Iñe-e e Juri e que, mesmo sabendo o desfecho, torça por eles. Ao meu ver, a obra se consolida como um manifesto de defesa da vida e, em um viés decolonial levanta o questionamento: e se as vítimas contassem as histórias ao invés dos algozes, o que seria diferente?
No entanto, penso que cabe dizer que, em um primeiro momento, considerei que a obra, que tem um enredo muito interessante, por vezes, divaga demais. Senti que na busca por alcançar um lirismo profundo e desenvolto, a autora quebra demais o ritmo da narração para fazer digressões ou simplesmente reflexões sobre o mundo da obra que, ao meu ver, poderiam estar mais imbricadas nos acontecimentos da história. Entretanto, acho que cabe aqui uma “mea culpa”. Embora eu sinta que a história poderia ter um ritmo de maior fluidez e se ater mais à narração dos acontecimentos (o que, quando acontece, é espetacular), acho que talvez esse meu sentimento esteja calcado em um “jeito branco de ler”, explico.
Quando mais novo, ainda começando minha trajetória no mundo das palavras e imbuído do sonho de ser escritor, fiz um curso de escrita criativa em que me foi ensinado o conceito da Arma de Tchekhov. Consiste basicamente em um princípio narrativo que diz que, se no início da obra o autor descreve uma arma sobre uma lareira aparentemente sem motivo, a arma tem de ressurgir novamente na história demonstrando ser útil ao desfecho ou desenrolar da história. Ou seja, todos os elementos de uma narrativa que o autor se empenha em descrever e falar sobre precisam ser importantes para o todo da história, isto é: tudo precisa ser útil. Nesse contexto, cabe pontuar que útil é tudo aquilo que serve para alguma coisa: a pá serve para cavar, a faca para cortar, meu time de futebol para me fazer sofrer no domingo à tarde. É justamente nesse ponto que entra meu questionamento: na literatura, precisa tudo ser mesmo útil? Reconheço que na poesia esse apreço gigantesco pela utilidade já foi questionado e talvez até superado (vide Inutensílio, de Leminski), mas na prosa sinto que os moldes da escrita ainda exigem uma certa linearidade e utilidade que não faz tanto sentido quanto parece fazer. As grandes bênçãos da vida não são úteis, mas sim positivas em si mesmas. A alegria não serve para nada além de estar alegre, o amor não serve para nada além de amar. O que estou querendo dizer é que acho que precisamos amar a literatura por ela mesma.
Embora seja muito bom ser surpreendido por um desfecho inesperado de uma obra, ou se emocionar com uma cena dramática, não é por esse momento específico que lemos um livro todo (caso contrário bastaria uma breve descrição dos fatos) mas sim pela beleza de encontrar na prosa e na escrita do autor algo novo e que nos é valioso: a arte. Na obra de Airton Krenak, “a vida não é útil”. O autor argumenta que o sistema capitalista e sua visão de progresso estão diretamente sustentadas por uma visão de mundo utilitarista que acaba por destruir o meio ambiente e subjugar pessoas em prol do mercado. De certa forma, o que se estabelece aqui como um diálogo entre essas ideias e o livro é que o utilitarismo do mundo é insustentável para nossa espécie e nosso planeta. É preciso que sejamos mais que condenados à utilidade imediata, mais que a exploração do homem em favor das coisas e mais, sem dúvida, que a coisificação do homem. Nossas vidas não são mercadorias, afinal de contas, a vida não é útil, mas ainda assim é o nosso bem mais precioso. Pois bem, voltando a minha sensação inicial: ela me deixou após o final da obra. Nem todo capítulo ou passagem colocava em cena uma arma que seria disparada, mas todos os capítulos me proporcionaram uma experiência literária profundamente rica e me permitiram adentrar aquele universo, e não o fizeram porque essa era a sua função, mas porque assim é a literatura em si mesma: uma porta para novos e velhos mundos. E convenhamos que, de pautado pelo utilitarismo, já basta o mundo real.
Por fim, gostaria de reforçar que recomendo a leitura desse livro que é importante, belíssimo e poético. Por um 2025 em que a gente consiga encontrar felicidade e valor nas coisas em si mesmas, e não nas suas utilidades.
-
Uma experiência de pesquisa: materiais didáticos eletrônicos em Libras
Lara Malafaia Vieira
Bolsista de Acessibilidade PET-Letras
Letras-Libras
Na Semana de Letras Libras (SELL) de 2023, apresentei um trabalho junto com uma amiga sobre a criação de jogos didáticos para o ensino de Libras. Nos debates que tivemos, percebemos que a tecnologia desempenha um papel importante no ensino de línguas e no ensino de futuros tradutores e intérpretes. Como Mendes (2018) explica, esses avanços ajudam muito a criação e a produção de materiais didáticos, a fim de tornar as aulas mais atrativas e despertar, nos alunos, o interesse de aprendizagem.
A ideia de criar jogos para motivar os alunos a aprenderem Libras surgiu. Criamos o jogo no PowerPoint para apresentar na Feira de Cursos no mês de agosto de 2023; este jogo foi reutilizado na Feira deste ano (2024). O jogo é composto por três perguntas de sinais básicos e três contendo frases curtas. Cada um dos slides tinha um vídeo do sinal e três alternativas, por meio de hiperlink, as respostas corretas eram direcionadas a um slide com um GIF alegre para seguir o jogo. Quando clicado em respostas erradas, o jogador era direcionado a um slide com GIF triste instigando o aluno a tentar novamente. Quando o aluno acertava as perguntas dos sinais o jogo aumentava de dificuldade tornando os sinais em frases.

Descrição da imagem: slide de fundo rosa claro, com o título “Qual é o sinal?”. Logo abaixo, de forma centralizada, contém um vídeo de fundo cor nude, e uma mulher de cabelos pretos longos, óculos e camiseta de manga longa preta. Abaixo do vídeo contém três retângulos seguidos com as palavras “Oi”, “Sol” e “Nome”, respectivamente, dentro de cada um deles.
Silveira (2020) relata que a utilização de jogos associados a práticas de uma língua desafiam o exercício mental, ajudando o aluno a fixar o conteúdo. Percebemos que o jogo chamou bastante atenção dos alunos que estavam visitando o evento, despertando neles a vontade de jogar e de aprenderem Libras. Todos relataram que se divertiram bastante nos eventos em que os jogos foram apresentados.
REFERÊNCIAS
MENDES, Renata Maria Oliveira. O uso de material didático em Libras como ferramenta inclusiva para alunos surdos. 2018. 62 f. TCC (Graduação) – Curso de Ciências Naturais, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa, 2018.
SILVA, Fernando Wagner da Costa et al. O papel dos jogos eletrônicos na aquisição da língua inglesa. Revista do Gel, Fortaleza, v. 7, n. 1, p. 259-283, 04 jun. 2020.
SILVEIRA, Jéssica Maria da. O ensino da Libras na educação Infantil: O lúdico como proposta facilitadora da aprendizagem. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 7., 2020, Maceió. Anais […] . Maceió: Conedu, 2020. p. 1-12.
-
Edital | pessoa voluntária no PET-Letras
O PET-Letras da UFSC abre vagas para pessoas voluntárias.
Podem se inscrever estudantes dos Cursos de Graduação em Letras da UFSC que tenham disponibilidade de 20 (vinte) horas semanais e que atendam aos requisitos apresentados no edital.
Vejamos:
a) o período de inscrição será das 12h do dia 5 de dezembro às 12h do dia 16 de dezembro de 2024;
b) as inscrições são gratuitas e deverão ser feitas somente por meio do envio do Atestado de Matrícula e do Histórico Escolar para o e-mail petletrasufsc@gmail.com com o assunto: INSCRIÇÃO EDITAL 07/2024/PET e apenas no período indicado;
c) as inscrições enviadas fora do prazo estabelecido no Edital ou sem o envio do Atestado de Matrícula (2024.1) e do Histórico Escolar atual serão indeferidas;
d) as inscrições homologadas serão divulgadas nesta página no dia 17 de dezembro de 2024, até 19h.O edital completo pode ser lido AQUI.
Resultado Primeira etapa:
Maria Paula da Silva Moreira
Rafaela Monticelli
Resultado final
1 Rafaela Monticelli
2 Maria Paula da Silva Moreira
Tendo em vista que as duas candidatas tiraram nota máxima na entrevista, o resultado baseia-se no critério de desempate do edital, a saber, a menor quantidade de semestres cursados. As duas candidatas estão aprovadas.
-
Sula em Florianópolis – Semantics of Under-Represented Languages of the Americas
Por Laiara Machado Serafim
Bolsista PET Letras e CNPq
Letras-Português
e
Por Paula Scalvin da Costa
Bolsista PET Letras e CNPq
Letras-Inglês
O SULA é uma conferência de linguística bianual cujos objetivos são reforçar a conexão entre o trabalho de campo em semântica e a teoria semântica e promover o estudo de problemas de semântica das línguas das Américas que não receberam muita atenção nas fases iniciais da semântica teórica. O 13° SULA (Semantics of Under-represented Languages of the Americas) aconteceu no último mês, , na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Durante quatro dias, no CCE (Centro de Cultura e Expressão), reuniram-se mais de 80 pessoas, entre pesquisadores professores de língua materna, pesquisadores, e alunos de iniciação científica.
O 13° SULA teve grandes nomes como convidados: Márcia Nascimento Kaingang apresentou um grande trabalho com rastreamento ocular na língua Kaingang; Ana Müller professora titular na USP, falou sobre o caso das sentenças temporais; Luiz Fernando Ferreira apresentou um belíssimo trabalho com um guia prático de semântica e pragmática formais na educação básica; Veneeta Dayal, professora de Linguística na Universidade de Yale, apresentou sobre “o estatuto dos assim chamados marcadores plurais”; e Aronaldo Júlio Terena trouxe a apresentação talvez mais marcante e emocionante sobre as marcas de (in)defnitude na língua terena, além de compartilhar a experiência de ser um pesquisador indígena e falar da importância de continuar pesquisando e dando visibilidade às línguas indígenas. Além dos convidados, o evento também contou com a participação de outros grandes nomes da semântica, como Lisa Matthewson.
Nesta edição, o evento agregou o encontro sobre a “In)definitude em línguas sub-representadas” (Project CNPq 420314/2022-9). O projeto, coordenado por Roberta Pires de Oliveira, é uma pesquisa em ciência básica, que busca descrever e explicar a capacidade dos seres humanos de produzir significado através das línguas. Este projeto estuda o Português Brasileiro, o Espanhol RioPlatense, o Portunhol, o Terena (Aruak), o Wapishana (Aruak), o Kaiowá (Tupi Guarani) e o Rikbaktsa (Macro-Jê).
O evento contou com tradução simultânea (Português-Inglês, Inglês-Português), o que foi uma oportunidade ímpar para os alunos envolvidos, especialmente por ser uma das primeiras vezes que muitos deles assumiram essa função em um evento acadêmico de grande porte. Desde o início, o processo exigiu familiarização com os equipamentos técnicos, como fones, microfones e cabines de tradução, o que já representou um aprendizado prático significativo. Essa imersão inicial possibilitou aos alunos compreenderem melhor a dinâmica da tradução simultânea, desmistificando desafios técnicos e construindo confiança em suas habilidades.
Além do aspecto técnico, o evento foi uma plataforma para explorar a capacidade tradutória em línguas orais, exigindo adaptações criativas e rápidas durante as apresentações. Trabalhar com semântica, em particular, demandou que os tradutores mantivessem a precisão terminológica, sem perder a fluidez necessária à simultaneidade. Nesse processo, os alunos precisaram interpretar não apenas palavras, mas também conceitos complexos e abstratos, um exercício que fortaleceu sua habilidade de articulação e clareza na comunicação.
Outro aspecto enriquecedor foi a colaboração com tradutores mais experientes, o que gerou uma troca constante de estratégias e feedbacks. Esses profissionais compartilharam dicas sobre como lidar com a pressão do tempo e as nuances culturais e linguísticas dos palestrantes. Essa interação contribuiu para o aprimoramento das técnicas de tradução e ajudou os alunos a perceberem a importância da prática e da flexibilidade no campo da interpretação.
Por fim, o trabalho em duplas distintas trouxe um dinamismo especial à experiência. A necessidade de alternância e suporte mútuo exigiu dos alunos não apenas concentração, mas também sintonia com seus colegas. Essa colaboração estreita reforçou habilidades de trabalho em equipe e adaptabilidade, essenciais na tradução simultânea. A experiência no SULA não apenas ampliou o conhecimento técnico e linguístico dos envolvidos, mas também os conectou ao universo da tradução profissional, instigando o interesse por futuras oportunidades no campo.
O 13° SULA destacou-se não apenas pela excelência acadêmica, mas também pela rica troca de conhecimentos e experiências entre participantes de diferentes contextos. Reunindo pesquisadores, professores e alunos, o evento promoveu um ambiente de diálogo que foi além das apresentações formais, fomentando discussões sobre temas complexos como semântica e línguas subrepresentadas. A diversidade dos convidados, incluindo pesquisadores indígenas e internacionais, enriqueceu as perspectivas, trazendo à tona a importância da inclusão e da valorização de diferentes culturas e tradições linguísticas.
As interações durante o evento mostraram como a colaboração é essencial para a pesquisa linguística, especialmente em áreas tão específicas como a semântica de línguas pouco estudadas. A troca de ideias não apenas inspirou novos projetos, mas também reforçou a relevância de continuar investigando questões fundamentais sobre o significado e sua relação com a linguagem. Para alunos e pesquisadores iniciantes, essa foi uma oportunidade inestimável de aprender diretamente com grandes nomes da área e de estabelecer conexões que podem abrir portas para futuros estudos e colaborações.
-
A romantização da ânsia de ser: uma leitura do universo vampiresco
Por Mahara Soares
Bolsista PET-Letras
Letras-Português
Descrição de imagem: o ator Tom Cruise, caracterizado do personagem Lestat, inclina-se sobre uma mulher deitada num sofá vermelho. A mulher está com o colo à mostra e aparenta estar desmaiada. Fonte: Entrevista com o Vampiro (1994).
O mistério intrigante que envolve a figura folclórica do vampiro acompanha a cultura humana desde seus primórdios, mas é durante o século XVIII que o mito ganha força nas superstições da Europa Ocidental. O romance publicado em 1897 por Bram Stoker, Drácula, marca a consolidação do arquétipo vampiresco na ficção moderna. A partir do referido período, a imagem do vampiro não mais se associa majoritariamente a criaturas deformadas, corpos decompostos e feras demoníacas, mas se estabelece como um ser aprimorado, uma mutação sobrenatural do homem comum, uma versão indestrutível, inalcançável e imortal daquilo que somos e conhecemos. O próprio Conde é descrito por Harker como um anfitrião cordial, detentor de posses ostensivas, um senhor deveras culto, com extenso conhecimento acerca de variados assuntos. A peculiaridade de sua natureza, inclusive, demora a ser desvendada pelo hóspede.
O estereótipo vampírico, ao longo dos séculos, aproxima-se cada vez mais do humano e, principalmente, do elegante, passando a significar poder, luxúria e sofisticação. A obra cinematográfica Entrevista com o Vampiro, dirigida por Neil Jordan e baseada no romance de Anne Rice, lançada em 1994, é uma síntese clara da visão moderna sobre o tema. Suas personagens vivem na alta sociedade, cercadas de bens materiais e dos mais competentes funcionários, professores e serviçais. Além disso, mais do que poder monetário, possuem grande poder físico e psíquico. Já no início do filme, ao oferecer a Louis imortalidade, Lestat promete ao jovem, que fora assolado por uma enorme tristeza, curar sua dor e potencializar sua existência de uma forma inimaginável:
A vida não tem mais significado, tem? O vinho não tem gosto. A comida o deixa enjoado. Parece não haver razão para nada disso, certo? E se eu pudesse devolver para você? Arrancar a dor e lhe dar outra vida? Uma que você jamais imaginaria. E seria para sempre. E doença e morte jamais o tocariam de novo. (Entrevista…, 2008)
Apesar da prática do vampirismo representar imenso perigo, de ser motivo de horror e de temor aos humanos frágeis e sujeitos ao acaso, a ínfima possibilidade de tornar-se mais forte, capaz e potente traz à tona uma esperança completamente irracional. O que antes era um símbolo monstruoso de terror, agora é considerado um símbolo de desejo. Os leitores e espectadores da ficção vampiresca contemporânea, no fundo, torcem para que, de alguma maneira, seja possível ser mais do que são, ainda que isso lhes custe suas vidas. Chega-se, então, à busca eterna do homem por algo que preencha o vazio de sua existência.
A romantização do vampirismo também pode ser observada pelas mudanças no retrato físico das personagens: em Drácula (1897, p. 29), Harker descreve a aparência do Conde como “um velho alto, barbeado e com um longo bigode branco”, os traços faciais detalhados são fortemente marcados e montam uma imagem exótica; já em Entrevista com o Vampiro (1994), os personagens principais foram interpretados pelos atores Tom Cruise e Brad Pitt, nomes reconhecidos na mídia por sua beleza. Exemplo da estética mais recente, o filme dirigido por Catherine Hardwicke em 2008 (e adaptado dos romances de Stephenie Meyer), Crepúsculo, conta com Robert Pattinson interpretando um dos vampiros protagonistas, o ator foi eleito o homem mais bonito do mundo pela revista Vanity Fair no ano seguinte.


Descrição de imagens: na primeira foto, Gary Oldman interpreta o Conde Drácula numa releitura cinematográfica do livro de Bram Stoker, Drácula. O ator caracteriza-se como um velho de pele muito branca, com cabelos grisalhos e escassos na parte frontal da cabeça, sua boca é fina e rubra. O personagem está lambendo uma lâmina de barbear, a mão que a segura tem unhas compridas. Fonte: Drácula de Bram Stoker (1992). Na segunda foto, o ator Robert Pattinson interpreta Edward Cullen, ele tem o tom de pele claro, cabelo castanho curto e olhos amarelados.
Fonte: Eclipse (2010).
Apesar de tamanha idealização do ser vampiresco na ficção, seus criadores ainda são meros humanos, deixam escapar suas biografias em suas criaturas, e é daí que surge uma contraditória ironia: nem mesmo os vampiros estão livres do vazio. Louis, em Entrevista…, passa por um conflito interno durante seus 200 anos; depois de ter procurado por respostas pelo mundo inteiro, suas perguntas permanecem em suspenso. Stephenie Meyer permite que os leitores tenham acesso à mente de Edward Cullen em seu último livro, intitulado Sol da meia-noite, e mostra ao público as dificuldades que o vampiro enfrenta ao refletir sobre o bem e o mal; sobre a culpa; sobre a vida e a morte; e sobre a razão de sua própria existência.
Eu odiava essa garota frágil ao meu lado, odiava-a com todo o fervor com que me apeguei ao meu antigo eu, ao meu amor pela minha família, aos meus sonhos de ser algo melhor do que eu era […]. Embora a odiasse, eu estava ciente de que meu ódio era injustificável. Sabia que o que eu odiava na verdade era eu mesmo. E eu me odiaria muito mais quando ela estivesse morta (Meyer, 2020, p. 23-25).
Até o poderosíssimo Conde Drácula revela, em seus últimos momentos, o alívio de, enfim, não ter mais de ser o monstro que era. “Enquanto viver, terei a alegria de lembrar que, no momento da dissolução final, houve no rosto do Conde uma expressão de paz como jamais supus que pudesse haver” (Stoker, 2019, p. 429). Resta-nos, então, meros humanos, mortais à mercê do destino, a ânsia de ser.
REFERÊNCIAS
CREPÚSCULO. Direção de Catherine Hardwicke. S.I.: Summit Entertainment, 2008. (122 min.), son., color.
ENTREVISTA com o Vampiro. Direção de Neil Jordan. S.I.: Warner Bros. Entertainment, 1994. (123 min.), son., color.
MEYER, Stephenie. Sol da meia-noite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
ROBERT Pattinson, de ‘Crepúsculo’, é eleito o homem mais bonito do mundo por revista. O Globo. Rio de Janeiro, p. 1. jun. 2009. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/robert-pattinson-de-crepusculo-eleito-homem-mais-bonito-do-mundo-por-revista-3191553. Acesso em: 03 nov. 2024.
STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Editora Pandorga, 2019.
-
Sangria
Por Anna Letícia Abreu
Bolsista PET-Letras
Letras Português
Dissociando-se da sua realidade, após a perda de seu grande amor, Lucca é atormentado por uma versão assombrosa de si mesmo que não conhecia, confundido suas alucinações com seu próprio irmão gêmeo: Heitor.
Magnéticos, almas que verdadeiramente transbordam arte, a dupla de atores Winicius Michels e Vinicius Colla são estudantes de arte cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e carinhosamente responderam às questões sobre o ofício e as emoções de estrearem nas telas do cinema. Eles são os protagonistas de Sangria, um curta-metragem cujo roteiro e direção foram de Henrique Schlickmann. O curta teve sua estreia no dia 09 setembro 2024, na 28ª edição do Festival Internacional de Cinema Florianópolis Audiovisual Mercosul – FAM 2024.
Em uma conversa com os protagonistas, além do foco da entrevista sobre o processo de trabalhar em um curta, os temas sobre o ato de dar vida à um personagem, o cinema do horror, as perdas da vida e seus reflexos e a possibilidade de viabilizar cada vez mais as diversas formas de arte, foram recorrentes.
Para início de conversa, pedi que Winicius Michels apresentasse o curta e a descrição misteriosa desperta imediato interesse ao leitor: “O curta Sangria acompanha o processo de aceitação do luto do personagem Lucca, que recém perdeu seu namorado, e essas questões com o luto são tão profundas para o personagem que ele começa a projetar no próprio irmão gêmeo, Heitor, uma segunda versão do próprio irmão que assombra ele, até que ele consegue se libertar dessa dor e finalmente aceitar o luto.”

Descrição de imagem: a imagem é o pôster do filme Sangria, de Henrique Schlickmann. Na parte superior, há uma fotografia de três homens brancos correndo em direção à água do mar em uma praia. Eles estão de calção de banho e parecem estar brincando. A cena é capturada em um momento descontraído, com o oceano e as ondas ao fundo. Logo abaixo da imagem, há uma gota de sangue estilizada que desce verticalmente até o centro da página, onde o título do filme aparece escrito com uma tipografia que lembra sangue escorrendo: Sangria. Na parte inferior do pôster, os créditos do filme aparecem com nomes de atores, equipe técnica e a menção ao diretor Henrique Schlickmann. Os atores principais listados abaixo da fotografia incluem Winícius Michels, Vinícius Colla, Eduardo Jaques, Nenê Borges e Cíntia Glock.
Irmãos de alma e melhores amigos, W. Michels e V. Colla atuaram ao lado de Eduardo Jaques, Nenê Borges, Cintia Glock. Ao longo da conversa, compartilharam suas experiências:
Anna: Vocês abraçaram a ideia de “Sangria” à primeira vista ou tiveram alguma questão com a temática?
Colla: Quando eu soube do projeto, eu já fiquei super animado, porque era um curta de horror, então isso já bastava! Desde criança era meu sonho fazer um filme de terror, e quando eu tive essa oportunidade foi, acho que, um dos melhores momentos da minha vida. Eu pude colocar em prática o que eu sempre sonhei desde criança. Ainda mais com o meu personagem, por ele ser uma coisa mais diferentona, meio monstruosa, acho que não tive nenhum problema com a temática, inclusive amo e tem que ser mais falado e mais feita.
Michels: Até o início das gravações de Sangria, eu só tinha participado de um projeto no audiovisual. Então, receber a proposta de ser o protagonista de um curta de terror, fazendo o papel de irmão gêmeo do meu melhor amigo, foi uma proposta incrível. Desde que o Henrique apresentou as ideias pro curta pra gente, foi meio amor à primeira vista. Parece que tinha juntado todas as coisas que a gente tem vontade de fazer e do que a gente gosta, e transformado numa coisa só, então foi uma junção enorme de interesses, foi feito para dar certo.
Anna: Como vocês se conectaram com seus personagens no curta? Houve algum aspecto pessoal que ajudou na construção da atuação?
Colla: Então, o Heitor e o duplo são duas coisas bem diferentes, inclusive bem diferentes de mim, né? É um personagem bem mais fechado e bem normativo e diferente do que eu sou normalmente. E pra mim isso sempre é um desafio, porque é difícil eu conseguir sentir que eu tô sendo natural fazendo um personagem desses, mas eu acho que funcionou. Já pro duplo, eu acho que é um lugar mais de conforto, porque eu me senti fazendo minhas brincadeiras de criança. E eu acho que, como eu assisto muitos filmes, eu tenho bastante referência. E aí eu acho que foi mais nesse sentido de procurar referência e imaginar, porque o duplo não tinha nem… Porque nem o duplo em si tinha tantas diferenças de atuação. Então foi algo mais na minha cabeça e coisas que eu gosto de fazer.
Michels: Acho que a questão principal de conexão pessoal, minha como ator e da história do personagem, é eu estar num relacionamento e o personagem tá passando pelo luto do seu namorado. Acho que isso acabou me dando muita base para ter uma referência na atuação.
Anna: Como foi o processo de preparação para os papeis?
Resposta em conjunto na voz de V. Colla: A nossa preparação foi feita pela Laute Gamarra. No início, a gente focava mais nas relações das personagens. A relação entre os irmãos, a relação dos namorados, a relação da sogra e do genro… E aí, depois, conforme foram passando os dias, a gente foi indo. A gente ensaiava cena por cena com a Laut, e além disso, a gente também tinha um caderno, que era meio que um diário de cada personagem, que a Laut mandava meio que umas tarefinhas para a gente escrever quando a gente não estava ensaiando. Então, a gente colocava algumas sensações do personagem vivido naquele dia da cena, o que aconteceu naquela cena e como foi que o personagem lidou com aquilo.
Anna: Quais desafios vocês enfrentaram durante as filmagens, especialmente em cenas emocionalmente intensas?
Resposta em conjunto na voz de V. Colla: Acho que durante todos os set, as gravações foram bem tranquilas, porque os atores e a direção, a produção, todo mundo fazia de tudo para que tudo fosse muito tranquilo e confortável, assim. Então, cenas muito pesadas eram super divertidas de fazer, no final. A única cena mais tensa, entre aspas, foi a cena da banheira, porque era um líquido para remeter a sangue e que tinha corante. E que provavelmente podia ser que manchasse tanto o corpo do Vinny quanto a roupa que eu usava de duplo. E aí a gente só tinha uma chance para gravar ela, então ela tinha que sair a cena perfeita. E estava um momento de tensão, assim, nos set, porque tinha que ser perfeita a cena e foi o que aconteceu. No final ficou uma cena linda e emocionante.
Anna: Vocês acreditam que a interpretação de um personagem pode transformar a percepção de si mesmos ou da realidade? Algo se transformou em vocês após dar vida aos personagens de “Sangria”?
Resposta em conjunto na voz de W. Michels e V. Colla:
Michels: Essa eu respondo por mim e pelo Vini, que a técnica de atuação que a gente estuda tem um foco maior em que a gente produza estados e sensações e que isso proporciona a gente a viver essas experiências que o personagem tem que viver do que realmente tipo viver uma vida dupla.
Colla: E que o que é ficcional fica na ficção, a gente sempre tem essa diferença em não trazer coisas da ficção para a vida real também.Michels: Então para a gente foi uma experiência muito boa para os “Vinícius” lá como atores e ter vivido todas essas coisas do set e essas cenas pesadas, essas coisas difíceis que os personagens passaram, passaram pela gente, mas a gente não carrega para fora.
Vinicius Colla fecha nossa entrevista com sua mensagem final, pensando no curta para além do seu enredo: “Eu acho que o Sangria, apesar de ser um curta de terror, ele também tem tantas outras camadas, trata de temas difíceis de serem falados, mas que eles são colocados de formas sensíveis e que tem momentos de horror, tem momentos de medo, de suspense, mas que também tem momentos singelos que geram empatia no público, de se colocar no lugar do outro. Enfim, é um curta bonito, tem uma mensagem bonita que tem a sua dualidade, apesar de ser um filme de horror, tem uma mensagem bonita no fim.”
Como afirma Rosália Duarte (2002, p.17), autora do livro Cinema & Educação, “[…] ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais”. O cinema, nesse sentido, carrega um peso cultural significativo. Nele, encontramos uma linguagem própria, a junção de movimentos, elementos visuais, sonoros e outros aspectos que compõem o mundo cinematográfico. Esses elementos proporcionam ao espectador uma experiência de interação e, muitas vezes, de identificação, seja em termos psicológicos ou circunstanciais, que podem influenciar sua vida.
Contudo, o acesso a curtas, como o caso Sangria, pode ser restrito enquanto participam de festivais nacionais e internacionais, seguindo regras do circuito audiovisual que priorizam a exclusividade em competições. Esse contexto acaba limitando o público, restringindo o alcance cultural dessas produções ao longo desse período; porém, elas ficam guardadas as memórias daqueles que já tiveram a oportunidade de assisti-las, enquanto outros aguardam por sua disponibilidade futura.
A arte, em suas diversas formas, deve ser um direito a ser ofertado a todos. Portanto, devemos valorizá-la, promovê-la e trabalhar para garantir seu acesso e disseminação ampla na sociedade: que vejamos Sangria!
Por fim, agradeço aos meus grandes colegas e atores, Vinicius Colla e Winicius Michels. Vida longa à arte que se perpetua pelas vias do amor, do terror e da emoção.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. In: DUARTE, Rosália. A pedagogia do cinema. Belo Horizonte. Autêntica. 2002. p. 13-21.
SANGRIA. FAM de Todos Brasil. 2023. Disponível em: https://www.famdetodos.com.br/filme/9798/Sangria. Acesso em: 24 out. 2024.
-
Uma leitura de “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, de Nísia Floresta
Por Maysa Monteiro
Voluntária – PET-LETRAS
Letras Português
Por que a ciência nos é inútil?
Porque somos excluídas dos cargos públicos;
e por que somos excluídas dos cargos públicos?
Porque não temos ciência.
Com a epígrafe que dá início ao texto Direito das mulheres e injustiça dos homens, publicado primeiramente em 1832, Nísia Floresta – escritora, educadora e poetisa – debate sobre o papel da mulher, começando, logo nas primeiras linhas, a escancarar algumas das verdades que, infelizmente, ainda se fazem presentes nos dias atuais. Ela diz “Encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não somos próprias senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer, e aprazer a nossos amos, isto é, a eles homens” (Floresta, 2010, p. 81).

Descrição da Imagem: Nísia Floresta, em imagem preto e branco, apenas de seu rosto. Ela tem os cabelos presos com coque e uma franja, pretos, ao modo do século XIX. É uma mulher branca, de olhos pretos.
Esse é um bom resumo de como a sociedade enxerga a mulher: obediente, dócil, submissa e sempre a serviço do homem. No entanto, esses predicados não são a essência do feminino, eles foram atribuídos à mulher, como diz Simone de Beauvoir. Em O Segundo Sexo (2016), Beauvoir afirma que as propriedades da mulher foram atribuídas pela cultura e pela história, e é essa cultura e essa história que Nísia Floresta contesta em seu ensaio.
Nísia Floresta foi pioneira na educação para meninas no Brasil, o que é muito relevante, pois historicamente o ensino para mulheres destinava-se a ensiná-las afazeres domésticos, enquanto Floresta ensinava diversas línguas e geografia, por exemplo. Em 1832, a autora afirmava que “Se não nos veem nas cadeiras das universidades, não se pode dizer que seja por incapacidade, mas sim por efeito da violência com que os homens se sustentam nesses lugares em nosso prejuízo” (Floresta, 2010, p. 96). Essa violência epistêmica pode ser aproximada ao que Beauvoir explicita ao debater sobre transcendência e imanência. Para a filósofa e escritora francesa, ao homem foi atribuído o lugar de transcendência, ou seja, o ser que representa o espírito, o pensamento e a intelectualidade. Por conta disso, poderia viver para seus projetos. Por outro lado, para a mulher tem-se o conceito da imanência, que a atribui ao natural, ao corpo: fadada a uma vida repetitiva em prol de outros. Quando Nísia Floresta questiona o papel das mulheres em seu texto e ensina geografia para meninas, ela está questionando a naturalização dessas atribuições.
Após os questionamentos de Nísia Floresta ao longo de suas linhas, tem-se um final, no mínimo, intrigante e passível de análise. A escritora e educadora finaliza seu texto assim:
De quanto tenho dito até o presente não tem sido com a intenção de revoltar pessoa alguma de meu sexo contra os homens, nem de transformar a ordem presente das coisas, relativamente ao governo e autoridade. Não, fiquem as coisas no seu mesmo estado (Floresta, 2010, p. 103).
Esse trecho, especificamente, me intriga e me incomoda. Após Nísia Floresta debater sobre o quanto as mulheres são competentes, que elas podem e devem entrar nas ciências, ela exclama que não tem a intenção de “transformar a ordem presente das coisas”. Seria um recuo? Uma estratégia? Um pensamento da época? Um pensamento da autora? Ao meu ver, parece como uma estratégia para que o texto pudesse circular e pelo menos ter suas ideias difundidas. Ou seja, para que as palavras do texto atingissem mais pessoas sem sofrer censura, ou que, pelo menos, ela pudesse continuar com seus trabalhos. Acredito que seja difícil decifrar qual o seu verdadeiro objetivo em tal trecho da conclusão – mas que incomoda, incomoda.
Mesmo assim, é impossível negar a relevância do ensaio e de Nísia Floresta. Ela foi pioneira em muitos sentidos e nos cabe, então, analisar criticamente essa conclusão, guardando as proporções da época e dizendo, hoje, que sim: queremos transformar a ordem presente das coisas. É necessária a revolução.
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. In: DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010. p. 81-107.
-
História da educação de surdos
Por Gustavo Flores
Bolsista de Acessibilidade PET-Letras
Letra-Libras
[Interpretação , tradução e legendagem de Taynara Muller]
