Literatura, Ancestralidade e Resistência

11/08/2021 00:02

Mirelle Araujo Ehrardt,
Bolsista PET-Letras
Letras – Alemão

Ao analisar brevemente a história do Brasil, é possível perceber com facilidade a exploração e perseguição a que os povos originários foram expostos, assim como ocorreu em outros países latino-americanos. Desde a chegada de expedições marítimas às terras que hoje compõem o Brasil, a invasão europeia levou uma série de flagelos para esses povos, entre os quais podemos citar rapidamente a exploração dos territórios, a violência e o extermínio de diversas etnias, bem como a exploração de mão de obra por meio de escravização, abusos sexuais e desrespeito às culturas, línguas e crenças desses povos.

Infelizmente, na atualidade, o ataque às populações indígenas ainda continua seguindo um projeto de genocídio e extermínio, que visa à aculturação desses povos. Tal projeto é permeado hoje pela invasão de garimpeiros e grileiros às terras indígenas já demarcadas, intensificando-se assim o desmatamento, e pela crença de que os povos tradicionais passam por um processo de transição até a assimilação da cultura ocidental dominante, o qual pode ser exemplificado pelo preconceito voltado aos indígenas que vivem em meios urbanos, frequentam universidades etc. Além disso, como já debatido no ComunicaPET 43, do mesmo modo que as comunidades e os povos indígenas estão diminuindo, muitas línguas indígenas também encontram-se em processo de extinção. Somado a isso, como também já explanado no ComunicaPET 31, a pandemia da Covid-19 e as dificuldades de acesso à saúde e a atendimentos médicos de qualidade contribuíram ainda mais para baixas na população indígena.

Fonte: Bicho Coletivo*

É nesse contexto de engajamento e resistência de minorias étnicas, culturais e linguísticas que a literatura indígena brasileira surge, a partir da década de 1990, alinhando-se ao movimento indígena brasileiro, na busca por visibilidade e protagonismo político que permitam o reconhecimento de suas reinvindicações. Nesse sentido, é importante destacar que a escrita de literatura pelos próprios indígenas se diferencia e se distancia muito das versões estereotipadas, e, por vezes, preconceituosas, dos povos tradicionais encontradas na literatura brasileira escrita por não indígenas, assim como nas lendas folclóricas amplamente divulgadas.

Segundo Peres (2018), “a forma como o indígena foi representado na literatura construiu e consolidou um imaginário, desdobrando, ainda nos dias de hoje, aspectos negativos: reservou-se e impôs-se o espaço da floresta e o tempo do século XVI como núcleos para a compreensão do indígena” (p. 109). Já para Daniel Munduruku (2016), precursor e importante escritor indígena de literatura infantil e infanto-juvenil, a literatura escrita por indígenas “traz um olhar sobre suas próprias sociedades e culturas” que não está contaminado pela perspectiva branca e eurocêntrica, consistindo-se em um ato de autoafirmação e autoexpressão identitária desses povos. Ele defende que esta forma de literatura não deve ser apenas adicionada à categoria de “literatura brasileira”, visto que fazer isso seria como “dividir com todos aqueles que escreveram, escrevem e escreverão coisas medíocres a respeito de nossa gente, um status que não foi construído por eles”.

Seguindo essa perspectiva, podemos destacar algumas características que diferenciam a literatura indígena de outras obras da literatura nacional. Dorrico et al. (2018) cita, como uma dessas características, a correlação entre literatura e política, que pode ser lida como crítica social e ao presente e como instrumento político para resistência desses povos. Fora isso, podemos perceber também, através de textos que misturam crenças e mitos ancestrais com ficção e relatos bibliográficos dos próprios escritores, as marcas da Ancestralidade, de uma poética que se constrói por meio da relação do indivíduo com a coletividade e as histórias passadas de geração em geração por meio da oralidade, a qual recebe o nome de “poética do eu-nós” (PERES, 2018). Dessa forma, a literatura escrita por indígenas também tem forte relação com a transmissão da Tradição ancestral desses povos, pois, ao ler o texto, o leitor tem a sensação de escutar um grande sábio (Ancião) narrando a história. Assim, as crenças e personagens míticos fazem-se presentes promovendo a preservação da Memória ancestral e cultural dos povos originários.

Fonte: Arte Lunetas **

Ficou interessado? Então aqui vai uma pequena lista com recomendações de alguns autores indígenas: Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Ely Macuxi,  Olívio Jekupé, Yaguarê Yamã, Kaká Werá e Márcia Kambeba. Ao clicar nos links inseridos nos nomes, você pode assistir a algumas entrevistas desses escritores no evento Mekukradjá – Círculo de Saberes de Escritores e Realizadores Indígenas. Não deixe de conferir!

Referências

DORRICO, J. et al. Literatura Indígena Brasileira Contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

MUNDURUKU, Daniel. Literatura x Literatura Indígena: consenso? A produção de literatura dos indígenas brasileiros. Blog Daniel Munduruku, 2016. Disponível em: http://danielmunduruku.blogspot.com/2016/02/literatura-x-literatura-indigena.html

PERES, Julie S. D. A Leitura da Literatura Indígena: para uma cartografia contemporânea. Revista Igarapé, Porto Velho (RO), v.5, n.2, p. 107-137, 2018.

*Fotodescrição 1: ilustração em fundo bege de um jovem com um livro aberto nas mãos, do qual partem ramificações e folhas. O rapaz tem cabelo preto e liso na altura dos ombros, veste uma roupa verde clara que deixa seu peito exposto, mostrando pinturas corporais pretas típicas de povos indígenas. No rosto também aparecem pinturas, com destaque para a pintura vermelha na região dos olhos e lateral do rosto.

** Fotodescrição 2: foto de Daniel Munduruku. Ao fundo, vê-se uma estante branca com vários livros. Ele veste uma blusa rosa, usa um colar indígena com pedras pretas redondas e pedras brancas, com o formato mais longo e pontudo, além de portar uma faixa vermelha e bege na testa. Ele está sorrindo e segura um livro aberto nas mãos. Seu cabelo liso e preto fica na altura dos ombros.

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