Por que ler Terra Sonâmbula?

19/07/2021 13:06

Ananda Gomes Henn,
Graduanda em Letras – Português
Bolsista PET-Letras UFSC

            No livro Terra Sonâmbula (1992), do moçambicano Mia Couto, temos contato com um mundo de sonhos que se mistura a uma realidade caótica, de guerras e devastação. Ambientada no Moçambique pós-independência, arrasado pela guerra civil que se estendeu por dez anos, a narrativa começa com o velho Tuahir e o menino Muindinga, que, depois de deixarem o campo de refugiados onde se encontraram, empreendem uma longa caminhada por uma “estrada morta”, onde “[…] o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte” (COUTO, p. 9).

Fonte: Woo! Magazine*

            Essa estrada se faz presente durante todo o livro, infinito caminho do qual os dois personagens não escapam, embora se transfigure no decorrer da história, com sua paisagem mudando toda noite enquanto velho e menino dormem — no fim, percebem que não são eles que passam por ela, mas ela que passa por eles: “(e)ra o país que desfilava por ali, sonhambulante” (COUTO, p. 133).

            Uma das características do livro que mais chama atenção é a circularidade da narrativa. Esse é um elemento estrutural do livro, remetendo às narrativas orais da tradição africana. Outro elemento estrutural interessante é a divisão do livro entre dois percursos narrativos, que eventualmente se conectam através da circularidade da história — há dois narradores: um, em terceira pessoa, que narra de forma onisciente a história das personagens Tuahir e Muidinga; e outro, Kindzu, que em primeira pessoa conta a própria história. Nas duas narrativas esses narradores cedem o poder da palavra a outras personagens que expõem seus pontos de vista, provocando o efeito da polifonia — tão cara à modernidade, mas tradicional das narrativas orais africanas.

Fonte: Companhia das Letras**

            Outro elemento central é, certamente, o imaginário africano, moçambicano, que se faz presente no livro. Esse é um imaginário de convívio com os mortos, de magias, de referências da natureza que não são estáticas, de comportamentos atribuídos à terra, à água, aos animais, que têm uma relação intrínseca com a oralidade, com as crenças populares que perpassam todo dia a dia das pessoas. Existe, portanto, atrás do “mágico” do livro, toda uma tradução cultural de elementos mágicos que não são fantasia, algo que está sendo transposto para a realidade, mas, sim, algo real que está presente no cotidiano daquelas pessoas, que pertencem a uma cultura popular.

            O romance se destaca, portanto, como uma obra prima singular do século XX — e de todos os séculos — sobre personagens que se encontram dando voltas sem chegar a lugar nenhum porque não há aonde chegar, em uma terra esgotada pela guerra e pela violência gratuita. Fazendo uso do português colonizador em seu estado mais belo e poético, Mia Couto escreve uma história Moçambicana sobre uma terra e sobre um povo que carrega — em sua persistente caminhada — a esperança e o desejo por um final onde “[…] restará uma manhã como esta, cheia de luz nova [em que] se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. […] Essa voz nos dará força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingênuo entusiasmo dos namorados” (COUTO, p. 194). Um final-começo.

            Leia este livro!! Além disso, o filme que adapta o livro, lançado em 2007, está disponível na íntegra no Youtube.

 

Referências:

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia de Bolso, 2015.

*Descrição 1: Desenho reproduzindo uma cena do filme Terra Sonâmbula, retratando o menino Muindinga e o velho Tuahir em pé, cara-a-cara, olhando um para o outro. No fundo o céu em tinta azul se contrasta com a terra, amarela, e entre eles algumas árvores estão representadas de forma abstrata. O menino e o velho são negros, sendo que Tauhir apresenta uma barba espessa e cinzenta. Ambos estão vestindo camisas em tons terrosos; o velho também utiliza um boné estilo cap militar e carrega duas bolsas de ombro.

**Descrição 2: Imagem da capa do livro Terra Sonâmbula. A imagem retrata o desenho de um ônibus ao lado de uma árvore, ambos em preto, como se a cena fosse à noite, e ao fundo um azul profundo representando o céu ao anoitecer. Os troncos da árvore contêm bolas laranja, como se representando luzinhas, e no mesmo tom de laranja está o nome do autor, Mia Couto, no centro inferior da capa. Acima, no tronco da árvore, lê-se “Terra Sonâmbula” em letras garrafais em branco. Abaixo do título, a logomarca da editora Companhia das Letras.

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