O ideal de feminilidade em “A Falência”, de Júlia Lopes de Almeida 

20/07/2022 10:38

Sofia da Silva Quarezemin,
Bolsista PET-Letras
Letras Português

No romance “A falência” (1901), Júlia Lopes de Almeida conduz a história de uma família da elite cafeeira do Rio de Janeiro, entre 1891 e 1893, documentando, com seu narrar realista, diversos aspectos da sociedade da ainda jovem República. O enredo se desenvolve principalmente no núcleo da família de Francisco Teodoro, um português que migrou para o Brasil e construiu seu negócio com a prosperidade do Brasil no mercado cafeeiro. O empresário casou-se com Camila, uma moça de família de poucos bens, com quem teve 4 filhos: Mário, único filho e primogênito; Ruth, adolescente apaixonada pelas artes; e as gêmeas Rachel e Lia, ainda crianças. 

Como eram comuns as relações extraconjugais, Camila mantém um relacionamento de longa data com o médico, amigo da família, Gervásio, em quem Francisco Teodoro deposita total confiança. Em um golpe especulativo, o patriarca da família Teodoro perde toda sua fortuna e se suicida, levando Camila, suas filhas e as agregadas da família a buscarem formas de superar o sofrimento da perda e a escassez.

Fonte: Imagem da Internet *

Nesse cenário, as principais problemáticas abordadas na história da protagonista são as demandas femininas. Aqui, quero pontuar algumas das implicações relacionadas ao papel do gênero, analisando a personagem Camila. Contudo, o enredo aborda também as tensões raciais da época, além da relação entre trabalho e dignidade.

O que acompanha Camila, ao longo de toda a trama, é o seu relacionamento com o Dr. Gervásio, enquanto está casada com Francisco Teodoro. Nessa obra, a autora expõe a contradição da opinião popular sobre o adultério, denunciando a diferença de julgamento sobre desvios de moral cometidos por homens e mulheres. Para os maridos, há sempre uma justificativa, seja ela pautada na ideia de que a infidelidade faz parte da natureza masculina, seja pautada no fato de que o homem é o maior detentor de poder dentro do matrimônio e pode quebrar o contrato social do casamento sem sofrer as consequências disso:

Quantas vezes o marido teria beijado outras mulheres, amado outros corpos… e aí estava como dele só se dizia bem! Ele amara outras pela volúpia, pelo pecado, pelo crime; ela só se desviara para um homem, depois de lutas redentoras; e porque fora arrastada nessa fascinação, e porque não sabia esconder a sua ventura, aí estava boca do filho a dizer-lhe amarguras […].  (ALMEIDA, 1901, s.p.).

Com isso, Camila justifica sua infidelidade com a de Francisco, o que, segundo Zahidé Muzart, em Um romance emblemático de Júlia Lopes de Almeida: crise e queda de um sistema, é a atitude da autora em olhar para o adultério com compreensão, uma vez que “a personagem trai o marido, mas é igualmente traída não só pelo cônjuge, como pelo próprio amante […]. E o mais grave, [o amante] separou-se da esposa por ela lhe ter sido infiel.” (MUZART, 2014, p. 140)

Além do âmbito do adultério, no que toca à relação da protagonista com Gervásio, podemos perceber uma tentativa do médico em aplicar sobre ela uma espécie de segunda socialização feminina, afirmando que ela se tornou mais bela e sofisticada com o passar dos anos em que manteve contato com ele (ALMEIDA, 1901, s.p.). Ele atua sobre a protagonista de forma a moldar o seu comportamento, julgando-a como inadequada, sem bom gosto ou bons modos, ensinando-a sobre arte e etiqueta. 

Melina Bassoli, no texto O que é socialização?, defende que “nenhum desses interesses são de nascença. Todos eles são aprendidos, são estimulados ou desestimulados, encorajados ou reprimidos” (BASSOLI, 2021, s.p.). Nesse sentido, Camila passa por um segundo momento de assimilação da feminilidade promovido por Gervásio, mais sofisticado e adequado ao ambiente do que o primeiro processo de socialização feminina, experienciado na infância, que a deveria a preparar para cumprir o papel esperado para uma esposa da elite brasileira no final do século XIX.

Muito do que é experienciado por Camila também se baseia na sua beleza, motivo pelo qual Francisco se casou com ela e pelo qual ela é cobiçada por outros homens. Em momentos de tensão ou sofrimento, a personagem busca validação por meio de sua aparência, como quando teve seu relacionamento extraconjugal desmascarado e questionou suas caçulas: “E se eu fosse feia… bem feia… se… por exemplo, eu tivesse bexigas e ficasse marcada, sem olhos, com a pele repuxada… ainda assim vocês gostariam de mim?” (ALMEIDA, 1901, s.p.). Em um outro momento, Camila enxerga seu corpo no espelho como um “milagre da juventude”, motivo pelo qual ela teme o envelhecimento. Para a protagonista, perder esse precioso bem, a beleza, significa deixar de ter valor para o mundo, para as pessoas com quem convive e para si mesma. Sobre essa mistificação da beleza como validadora da existência da mulher na sociedade, Naomi Wolf, no best-seller O mito da beleza, argumenta:

O envelhecimento na mulher é “feio” porque as mulheres adquirem poder com o passar do tempo e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o curso da vida de todas. E o que é mais instigante, a nossa identidade deve ter como base a nossa “beleza”, de tal forma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa. (WOLF, 1992, p.17).

Essa suscetibilidade à aprovação externa causa uma desconexão da personagem com suas qualidades intelectuais, psicológicas e sociais, transformando-a em refém da própria aparência. Isso fica mais evidente quando ela perde o que permitia a manutenção da sua beleza e dos seus luxos em geral: o dinheiro. A falência cai sobre a família como um choque social, e recai sobre Camila como uma crise da própria imagem. Ela se submete às vontades do filho Mário e busca a salvação em Gervásio porque não consegue encontrar forma de sobreviver à situação por conta própria, uma vez que as únicas coisas que está habituada a fazer são ser bela e amar

Fonte: Imagem da Internet **

Com as demais personagens femininas do conto, Camila, num ímpeto de acabar com a tradição dos homens comandando sua vida e das filhas, decide retomar o ofício que desempenhava antes de se casar com Francisco Teodoro e de ingressar na elite. Nas palavras de Muzart, ela “revê a própria vida, conscientizando-se da realidade e volta-se para a comunidade de mulheres (Nina, Noca, Ruth), traz as gêmeas que foram para a casa da baronesa […] e planeja alfabetizá-las e educá-las, ela mesma” (2014, p. 140).

Esse fortalecimento individual da personagem na conclusão do romance se dá, também, pelo fortalecimento do grupo a que pertence e do qual tira motivações para empreender a tomada de poder sobre sua própria vida. A que nível isso se estende, não nos fica claro, mas nos permite pensar nas intenções da autora em demonstrar e afirmar a educação e o trabalho como via de libertação e independência feminina, olhar esse que perdura na contemporaneidade e que alavancou movimentos organizados de mulheres ao longo do século XX.

Referências

ALMEIDA, J. L. A falência. Leitura realizada no DLNotes. Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística: Universidade Federal de Santa Catarina, s.a.

BASSOLI, M. O que é socialização? 2021. Disponível em: <https://medium.com/qg-feminista/o-que-%C3%A9-socializa%C3%A7%C3%A3o-781835d07281#0107> . Acesso em: 10 jul. 2022.

MUZART, Z. L. Um romance emblemático de Júlia Lopes de Almeida: crise e queda de um sistema. Navegações, v. 7, p. 134-141, 2014. Disponível em: <https://doi.org/10.15448/1983-4276.2014.2.21026>. Acesso em: 10 jul. 2022.

WOLF, N. O mito da beleza. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

__________________________________________________________________

* Foto descrição 01: Se trata de uma fotografia antiga, em preto e branco ou sépia, da estação ferroviária do Rio de Janeiro no final do século XIX. A construção é bastante grande, com estilo colonial, e a foto é tirada durante o dia, com diversas pessoas, cavalos e carruagens circulando pelo pátio em frente à estação.

** Foto descrição 02: Fotografia em preto e branco da escritora Júlia Lopes de Almeida, em que ela se encontra sentada em uma cadeira, ao lado de uma mesa, virada para a câmera. Ela é uma mulher branca, tem cabelos longos em um coque, usa um vestido longo e escuro e tem uma expressão facial séria, talvez de desagrado. Sobre a mesa, uma toalha, alguns livros e um vaso com flores. 

Comments

Tags: comunicaPET