DE FÉRIAS COM O PET | O que nos acomoda ao mediano?

07/02/2025 08:43

Por Mahara Soares

Bolsista PET-Letras

Letras – Português

 

Dos inúmeros assuntos que permeiam os questionamentos humanos, poucos parecem interessar mais à arte do que a ânsia de ser – ser diferente, ser em breve, ser mais. É uma obsessão que nos atinge desde cedo, ela se instala discretamente quando os adultos questionam às crianças: o que você quer ser? A partir de então, o conceito deixa o posto de realidade e toma o de objetivo. Mas o que nos faz diminuir a intensidade de nossas ânsias? Em que ponto paramos de almejar ser astronautas, vampiros, presidentes, super-heróis, rock stars, piratas, cientistas e todas-as-respostas-que-as-crianças-sempre-têm-na-ponta-da-língua, e começamos a nos conformar em apenas existir?

Calma. Não quero dizer que você deveria vestir uma capa vermelha e levantar voo. Quero dizer que tirar a máscara e parar de fingir estar satisfeito pode ser interessante. E, claro, isso se aplica a um âmbito extremamente individual. Afinal, é óbvio que foram o trabalho, a fome, as contas a pagar, o currículo a construir, a rotina acelerada, a produção em massa, o bombardeio de informações e o resto que envolve a vida moderna capitalista que nos colocaram o cabresto e firmaram nossos pés ao chão. Enquanto isso, os milhares de coachs que existem por aí nos dizem que tudo não passa de força de vontade e meritocracia. Sua vida não está dando certo porque você não tenta o suficiente. Não acorda mais cedo o suficiente, não trabalha até a exaustão o suficiente, não economiza o dinheiro do almoço o suficiente. A mídia nos prova que todas as celebridades, subcelebridades e influencers de Instagram conseguem muito mais. Porque você não consegue? É desse jeito que você e eu – e grande parte da população – passamos a acreditar que não merecemos ser.

 

“Messages keeps getting clearer

Radio’s on and I’m moving ‘round my place

I check my look in the mirror

I wanna change my clothes, my hair, my face

Man, I ain’t getting nowhere

I’m just living in a dump like this

There’s something happening somewhere

Baby, I just know that there is” (Springsteen, 1984)

 

Ainda assim, sei que a vontade permanece em você e em mim, sucateada na turbulência do existir. Sei porque a sinto. Sei porque é o que a arte me conta. Eu a leio nos romances escritos por alguém que sonhou com amores arrebatadores, eu a escuto nas músicas compostas por alguém que desejou ser ouvido, eu a vejo nos filmes dirigidos por alguém que fantasiou um mundo inteiro e a vejo nas pinturas de alguém que buscou tocar o público. Essa vontade é o que nos permite sobreviver à experiência da condição humana. Querer ser é resistir, é ir contra a crença de que não o merecemos.

 

Imagem: homem morando numa pequena e desconfortável ideia de si mesmo

Fonte: Susano Correia (2021, p. 96)

Descrição de imagem: desenho em grafite, fundo branco. Um corpo humano, retratado da cintura para cima. Um dos braços está posicionado atrás das costas e tem a mão apoiada no outro, este está esticado ao lado do torso. No lugar da cabeça há uma casa de madeira com telhado, chaminé e varanda. De dentro da casa, pelas janelas e portas, pendem os membros de outro corpo humano, este está deitado no chão da casa, ocupando todo o espaço.

 

Deixemos de ser Macabéas e nos contentar com o pouco porque ele é tudo que conhecemos. Tenhamos a coragem de ansiar enquanto capazes. Em A redoma de vidro, originalmente publicada em 1963, Sylvia Plath nos alerta a urgência: como seres efêmeros estamos eternamente sujeitos à passagem do tempo.

Eu vi minha vida estendendo seus galhos em minha frente como a figueira verde da história. Da ponta de cada ramo, como um figo roxo e grande, um maravilhoso futuro acenava e piscava. Um figo era um marido e um lar feliz e filhos, e outro figo era uma famosa poetisa e outro figo era uma brilhante professora, e outro figo era E Gê, a editora incrível, e outro figo era Europa e África e América do Sul, e outro figo era Constantin e Sócrates e Attila e um pacote de outros amores com nomes esquisitos e profissões incomuns, e outro figo era a campeã da equipe olímpica, e além e acima desses figos haviam muitos outros figos que eu não podia distinguir bem. Eu me vi sentada na bifurcação dos galhos desta figueira, morrendo de fome, só porque eu não conseguia me decidir de qual figo escolher. Eu queria cada um deles, mas escolher um significaria perder todo o resto, e, enquanto eu estava sentada ali, incapaz de me decidir, os figos começaram a se enrugar e ficarem pretos, e, um por um, eles caíram ao chão, aos meus pés. (Plath, 1991, p. 96-97).

Desesperados, repetidas vezes nos esquecemos da possibilidade de recomeçar, de transformar, de tentar novamente, e a angústia de nos sentirmos presos às nossas carcaças nos assola de tempos em tempos. Reconheço que me soa quase hipócrita incentivar a mudança sabendo das circunstâncias que nos prendem, mas, se não essa, qual a outra opção? Repito: querer é resistir. Arte é fagulha.

 

REFERÊNCIAS

CORREIA, Susano. Fim dos tempos nos corações, isolados. Palíndromo, Florianópolis, v. 13, n. 29, p. 90-101, 2021. DOI: https://doi.org/10.5965/2175234613292021090. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/19170. Acesso em: 5 fev. 2025. [il. p. 96, desenho, 29,7 x 21 cm].

DANCING in the dark. [Compositor e intérprete]: Bruce Springsteen. In: BORN in the U.S.A. Intérprete: Bruce Springsteen. New York City: Columbia Records, 4 jun. 1984. 1 canção. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/track/7FwBtcecmlpc1sLySPXeGE. Acesso em: 6 fev. 2025.

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1991.

Comments