O Humano e a Terra: uma relação abusiva

03/12/2021 12:36

Débora Klug,
Bolsista PET-Letras
Letras Português

Recentemente ganharam espaço, nas ruas, alguns movimentos de jovens e de estudantes que se preocupam com seu futuro: se terão uma Terra habitável para viver. Movimentos inspirados na liderança de Greta Thunberg — que organizou e fundou o Fridays For The Future, conhecido no Brasil como Greve pelo Clima — foram às ruas protestar contra as mudanças climáticas, e exigir alguma posição decisiva dos governantes em relação à contenção do aquecimento global.

Foto de um protesto pelo clima.
Fonte: OutrasPalavras*

Sobre as formas de ver e de interpretar o contato conturbado que se mantém com a Natureza, Ailton Krenak, indígena brasileiro, faz, em “Ideias para adiar o fim do mundo” (2020), críticas ao senso comum de que as culturas indígenas não teriam nada para contribuir ao pensamento e à filosofia contemporâneos. Essa forma de ver a cultura é uma herança direta dos séculos de colonização e extermínio dos povos nativos de Pindorama — nome em Tupi que se dava ao Brasil —, ações que foram motivadas pela noção de uma humanidade esclarecida que teria o dever de ir ao encontro de e civilizar outra sub-humanidade, mostrando-a o caminho para o jeito certo de estar na Terra. Hoje, com pesquisas e estudos sobre a cultura no século XX e XXI, percebemos como essas ideias são perigosas e como motivaram ações maléficas para com seres humanos de culturas apenas distintas do seio europeu, e não inferiores ou erradas.

Entretanto, a ideia de uma humanidade ainda é consenso na atualidade, e é aqui que reside uma das principais críticas de Krenak: à noção de humanidade como um grupo seleto e unitário, que se distingue essencialmente do que não faz parte dele. Tudo o que não é humanidade é coisa, e se colocarmos a Natureza na equação, além de coisa, ela é ainda recurso, que abertamente se explora para fins do progresso desse grupo distinto chamado humanidade. E bem sabemos que essa exploração desenfreada tem afetado, de maneira bruta e irreversível, diversos âmbitos do ecossistema terrestre.

Krenak atenta, em seu livro, para essa relação alienada do homem com a Terra, que acarreta uma série de abusos praticados contra a Natureza. Para o autor, é absurda a ideia de um homem descolado da Terra, sem relação direta com o ambiente que o envolve, e que é o que, única e exclusivamente, permite a existência do ser humano; essa noção de separação, e de desrespeito com a Natureza, é absurda para diversas culturas indígenas: como para os Krenak, povo da região do Vale do Rio Doce, que sempre viram o Humano e a Natureza integrados, com relações familiares. O rio é seu avô, as montanhas e pedras são suas irmãs. Essa forma de pensar subverte a lógica da coisificação do não humano e, por consequência, não permite a relação abusiva do homem com a Terra. Sendo assim, a extração desenfreada dos recursos naturais seria uma afronta grave. Percebe o quanto isso bate de frente com as lógicas de produção e desenvolvimento capitalistas? E esse é só mais um motivo para alimentar o desprezo pelas culturas indígenas. A humanidade, a personalização que essas culturas dão à natureza não é interessante para manter um status quo de desenvolvimento. E, por isso, o que se mantém é o extermínio: de culturas, de pessoas e da Terra.

“Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos.” (Ideias para adiar o fim do mundo, 2020, p. 49-50)

Krenak apresenta como as culturas indígenas contribuem para as novas formas de pensar a relação com a Natureza e diz o quanto isso é urgente. A preocupação de jovens, como a Greta, não é coisa pouca, mas, na verdade, uma preocupação de sobrevivência. Quanto tempo a Terra vai aguentar os nossos abusos? E o que será de nós quando essa relação chegar ao fim?

Foto de Ailton Krenak
Fonte: Valkirias**

Referência
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

*Descrição da Imagem: Em um espaço aberto, na rua, um grupo muito grande de pessoas reunidas segurando cartazes com diversas escritas. Em primeiro plano, cerca de dez pessoas, seguram, em frente ao corpo, um grande banner na horizontal escrito em letras pretas e verdes: #capitalismo não é verde. Nos outros planos é possível ver mais cartazes coloridos e feitos à mão com escritas em português e em inglês como: faz pelo clima; save the earth; go vegan; there´s no planet B.

**Descrição da Imagem: A foto, em preto e branco, de um homem indígena (Ailton Krenak) com o rosto voltado para a esquerda. Ele tem na cabeça um cocar que possui ao redor da testa uma tira fina de desenhos em linhas geométricas e, acima disso, retângulos brancos  e pequenos enfileirados um do lado do outro. Ao redor da orelha e na nuca vê-se cabelos curtos e escuros. O rosto não possui barba. O fundo é laranja, na direita tem um semicírculo de cor laranja mais escura, e na esquerda um semicírculo menor com o contorno pontilhado em branco. Saindo de trás do ombro esquerdo do homem tem uma flor e folhagem em rosa e branco. No ombro esquerdo tem uma folhagem, também em rosa e branco.

 

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