“Véspera”, de Carla Madeira
Por Angelo Perusso
Bolsista do PET Letras UFSC
Letras-Português
MADEIRA, Carla. Véspera 10.ed. Rio de janeiro: Record, 2023.
O que pode florescer da tragédia? De certa forma, sinto que essa é a pergunta que é colocada já no começo do livro Véspera, terceiro romance da escritora Carla Madeira, que alcançou renome nacional nos últimos anos. A autora, formada em jornalismo, tem uma prosa que, embora seja bastante poética e reflexiva, flui em um ritmo fácil e que instiga a ler mais e mais. A escrita de Carla Madeira é daquelas feitas para ser devorada em um domingo chuvoso, e com Véspera não é diferente. Lembro que decidi começar a ler pela manhã em um dia de praia e de certa forma me arrependi, pois o mar azul, o sol e a areia ao meu redor acabaram deixando de ser o foco do meu interesse, que se direcionou para a história de Abel e Caim.
O título já sugere o que a obra está colocando, tudo que acontece Hoje é produto do Ontem, cada decisão que tomamos acarreta acontecimentos que acarretam novas decisões e assim por diante, nos tornando reféns do que fomos na véspera, não importa o quanto tentemos caminhar livres dessas amarras. Pois bem, o livro inicia com uma cena profundamente marcante: uma mulher para o carro em meio a uma avenida de mão dupla, desce, abre a porta traseira, pega uma criança pequena e deixa na rua, volta para o volante e acelera. É automático se questionar: quem é essa mulher? O que a levou a isso? Quem é essa criança? Por que? A partir daqui, tudo é spoiler.
O que o livro vai nos mostrar a seguir é que o porquê de tudo começa no antes. O foco narrativo logo deixa a mulher e se volta para um casal em crise, com uma relação muito complicada e atravessada por crenças religiosas, alcoolismo e desamor. Deste combinado complicado surgem duas crianças gêmeas. Após o nascimento dos meninos, o pai, ressentido da esposa, vai ao cartório escondido e batiza os dois gêmeos: Caim e Abel. A mulher, muito temente ao Deus cristão e apegada aos ensinamentos da Bíblia, não pode perdoar o marido por nomear os filhos com o nome do primeiro assassinato da humanidade. A mãe então decide que não irá permitir que o mesmo destino ocorresse com os seus filhos, Caim não mataria Abel nessa história. O primeiro passo para que isso não acontecesse, para ela, foi igualar os dois em tudo. Já eram iguais fisicamente, então seriam iguais também nas roupas, nos horários, no tratamento, nas regras e também no nome: Abel e Caim se tornaram Abel e Abelzinho, e então nem os pais souberam quem era quem.
Tudo isso acontece logo no começo do livro, que constrói uma trama complexa entre passado e presente e se aprofunda dedicadamente nas dores dos personagens e em como elas se manifestam em suas relações. Todo mundo que já sangrou nessa vida há de sangrar junto dos personagens deste livro.
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