Primeiro Ensaio

27/07/2024 13:24

Por Mahara Soares

Voluntária | PET-Letras

Letras-Português

Ana Martins Marques, poeta, redatora e revisora, publicou “O Livro das Semelhanças”, no ano de 2015. Sendo parte do projeto poético da autora, reconhecida por relacionar o processo de escrita com a experiência do existir, tem como base um sistema metalinguístico utilizado para refletir as diferenças e semelhanças entre o real e a literatura. O livro cria um jogo metapoético que vai além de seu conteúdo, envolvendo os próprios títulos dos poemas numa espécie de construção estrutural. “Livro”, primeira das quatro seções em que a obra se divide, é introduzida com os seguintes textos: Capa, Nome do Autor, Título, Dedicatória, Epígrafe, Primeiro Poema e Segundo Poema. Os poemas têm um sentido de continuação entre si, arquitetam o livro ao mesmo tempo em questionam sua respectiva estrutura e função.

Descrição da Imagem: capa do livro. Fundo azul claro, com manchas pretas. No centro, um quadrado (virado), em branco, traz o título do livro e o nome da autora em fonte fina.

 

Primeiro poema

O primeiro verso é o mais difícil

o leitor está à porta

não sabe ainda se entra

ou só espia

se se lança ao livro

ou finalmente encara

o dia

o dia: contas a pagar

correspondência atrasada

congestionamentos

xícaras sujas

aqui ao menos não encontrarás,

leitor,

xícaras sujas

(Marques, 2015, p. 18)

 

No que diz respeito ao aspecto temático, o “Primeiro Poema” aborda a poesia como algo a parte do cotidiano, do mundo do “dia” em que cabem as coisas rotineiras. Assim, entrar no poema seria como abrir uma porta para um mundo que não o real, como (se deixar) ser transportado a outro lugar que não o comum, fugir.  Ao mesmo tempo, ironicamente, o leitor encontra elementos corriqueiros ao fazer a leitura, e o eu-lírico escreve enquanto reflete sobre a dificuldade da escrita, explorando a metalinguagem. Vejamos como a autora procede com o “Segundo Poema”:

 

Segundo poema

Agora supostamente é mais fácil

o pior já passou; já começamos

basta manter a máquina girando

pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe

preso ao anzol, arrastando consigo

a embarcação que é este livro

torcendo para que ele não o deixe

para isso só contamos com palavras

estas mesmas que usamos todo dia

como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora

aqui elas são tudo o que nos resta

e só com elas contamos agora

(Marques, 2015, p. 19)

 

O poema acima está estruturado em um soneto decassílabo, contendo dois quartetos e dois tercetos, símbolo de uma literatura clássica considerada rebuscada. Apesar disso, a inspiração se encontra apenas parcialmente no aspecto formal, já que o poema não segue à risca o padrão da métrica característica dos sonetos. É possível identificar alguns esquemas de rimas que variam entre rimas internas, enlaçadas, emparelhadas e cruzadas. Há ainda a presença de alguns versos brancos, que não compõem rimas. Nota-se, assim, o esforço da autora em romper o padrão com o padrão, uma estratégia irônica e bem articulada.

A quebra se estende à expectativa do leitor que, ao reconhecer um esquema de rimas, presume que o mesmo se repita, que haja uma sonoridade contínua, mas é surpreendido pela alternância constante e pela “dessonorização” que marca a literatura moderna. Além de não contar com rimas previsíveis, o leitor se depara com a escassez de pontuação, estes fatores o tornam diretamente responsável pela fluência da leitura do poema, ou seja, pelo ritmo, que se adere ao pensamento e vice-versa. Cria-se, assim, o movimento sonoro do poema.

A poesia coloca-se como uma tentativa de preenchimento da realidade por meio da linguagem. A ambiguidade, presente nas comparações e metáforas, explora a confusão entre os elementos reais e os imaginários, conciliando ainda mais os dois mundos, vivido e literário. Ana Martins Marques utiliza de imagens baseadas em analogias, como em “manter a máquina girando” e em “a embarcação que é este livro”, para criar relações subjetivas entre objetos diferentes.

Logo no primeiro verso de “Primeiro Poema”, o eu-lírico expressa sua preocupação com o processo de escrita que enfrenta: “O primeiro verso é o mais difícil”. Entre o bloqueio criativo e a pressão de despertar o interesse de um possível leitor, são infindas as possibilidades e escolhas de construções frasais. Já o “Segundo Poema” tem um início bem contrastante com o do texto anterior: “Agora supostamente é mais fácil / o pior já passou”. Agora a questão deixou de ser sobre como começar e tornou-se sobre como manter, como assegurar a continuidade, como garantir que o leitor seguirá nas páginas. A poeta reflete, então, sobre o material da poesia.

Ao observar os tercetos, encontra-se um tipo de espelhamento do primeiro verso da terceira estrofe e do terceiro verso da quarta: “para isso só contamos com palavras” e “e só com elas contamos agora”. Está exposta, finalmente, a fragilidade da literatura. Seu material são as palavras. Estas, que são usadas para falar de todas as coisas, das importantes e das banais, das úteis e das inúteis, das simples e das complexas. A substância da poesia é a linguagem e, principalmente neste caso, a linguagem usual do cotidiano, “estas mesmas que usamos todo dia”.

Ao mesclar os aspectos formais clássicos da métrica com o conteúdo moderno e a linguagem simples, a autora aproxima seu leitor da poesia, resgatando elementos com os quais ele está familiarizado, experiências pelas quais ele já passou. Esta concepção aumenta a eficácia poética e a fruição do texto literário, pois permite que o leitor se conecte com o livro, desperte suas memórias e preencha as lacunas deixadas pelo escritor.

A obra de Ana Martins Marques imerge o leitor em seu processo de escrita, reflete a literatura enquanto a constrói, brinca com as relações extralinguísticas que estabelece. As característica presentes em seus textos vão muito além das que foram aqui citadas, têm a capacidade de suscitar discussões variadas e profundas sobre diversos assuntos, de deixar  registrada a potencialidade de estudos futuros. Entretanto, pode-se dizer que os pontos destacados já são suficientes para afirmar a relevância da referida autora para a literatura brasileira contemporânea.

 

REFERÊNCIA

MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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