Trupe da Aurora: a arte como ferramenta de cura
Laiara Serafim,
Bolsista PET-Letras
Letras Português
Na canção “Comida”, lançada em 1987, a banda Titãs já cantava que “a gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte”. Originada do latim ars, que significa literalmente “técnica”, “habilidade natural ou adquirida” ou “capacidade de fazer alguma coisa” (Origem da palavra arte, 2016), a palavra arte é multifacetada, desde a “Arte poética” de Aristóteles até seus mais de 25 significados listados no dicionário de português; além de inúmeras outras possíveis combinações na língua.
No entanto, um fato imutável é de que a arte está presente no mundo desde os tempos mais primordiais da humanidade, tendo os primeiros registros artísticos conhecidos como arte pré-histórica. Desde então, é inegável que a arte tem se tornado uma ferramenta essencial na vida cotidiana. Considerando a arte no campo do teatro, é possível afirmar que sua história teve início na Grécia Antiga, em torno do século VI a.C. Nessa época, eram realizados rituais em louvor ao deus mitológico Dionísio, divindade relacionada à fertilidade, ao vinho e à diversão (Aidar, 2020).
Etimologicamente originado do Grego theatron — literalmente “lugar para olhar”: de theasthai, “olhar”, mais –tron, sufixo que denota “lugar” — (Teatro, 2014), o teatro estava presente em grandes momentos da história, como os clássicos teatros grego e romano, passando pelo teatro medieval com dramas litúrgicos, as renomadas obras de Shakespeare, o declínio da tragédia clássica e o nascimento drama burguês, e chegando ao Brasil pelo chamado “teatro de catequese” (Aidar, 2020), até se tornar o teatro que conhecemos hoje — com obras-primas nacionais como “o auto da compadecida” de Ariano Suassuna — e atingir os novos meios de comunicação: cinema, rádio, televisão e redes sociais.
De qualquer modo, para além de todos esses grandes momentos históricos, de artistas brilhantes e de peças atemporais, o teatro vive em nosso meio. Nas brincadeiras de criança, nos sonhos de jovens, na criatividade de adultos ou na vitalidade de idosos.
Fonte: arquivo pessoal*
E, em meio a esse complexo artístico que o teatro engloba, foi a iniciativa de Léia Batista — escritora, dramaturga, atriz, professora de teatro e mulher muito apaixonada pela arte — de fomentar a cultura em Araranguá, uma cidade no sul do estado de Santa Catarina, com menos de 70 mil habitantes, que me fez enxergar a necessidade de falar sobre o tema. Trabalhando inicialmente com o teatro infantil, Léia teve sua primeira peça, O cantador de histórias – uma volta em mil mundos, encenada nas escolas. Segundo a própria escritora, “o teatro, além de uma ferramenta de cura, é também uma ferramenta de educação”. E foi com esse pensamento que ela continuou a levar mensagens sobre bullying, sentimentos, amizade e respeito às diferenças para as crianças. Possuindo mais de vinte roteiros no palco, Léia não parou com as peças infantis e decidiu levar a arte para todas as esferas da sociedade, criando, assim, o grupo de teatro Trupe da Aurora, que conta com voluntários de todas as idades, apaixonados pela arte e dispostos a aprender. As aulas de teatro acontecem uma vez por semana. Nelas, Léia propõe dinâmicas de relaxamento, concentração, voz e expressão, nas quais os atores desenvolvem e descobrem inúmeras habilidades. Assim, Léia vai apresentando o roteiro proposto e o adaptando conforme a quantidade de voluntários.
No último dia cinco de junho, no auditório Plinio Linhares, na cidade de Araranguá, o grupo fez uma apresentação que teve a sua venda de ingressos esgotada. Intitulada “Uma peça não muito íntima”, a comédia, com roteiro escrito por Léia Batista, contou, com muito bom humor, a história da separação mal resolvida de um casal e como duas peças íntimas — uma calcinha vermelha e uma cueca — trouxeram à tona tantas questões de uma família real.
Fonte: arquivo pessoal**
Trazendo muitas questões importantes, como sexualidade, amizade, relação dos pais com os filhos e, sobretudo, o perdão, a peça contou com dez atores. Luci Alexandre, que interpretou Odette — a ex-esposa que nunca perdoou o ex-marido —, nos conta que os ensaios duraram mais de um ano, tempo aumentado por conta da pandemia. Questionada sobre como o teatro tem impactado a sua vida e como ela percebe essa cura através da arte, Luci Alexandre nos deu o seguinte relato:
O trabalho da Léia é agregar arte à nossa comunidade, falta incentivo à cultura no nosso país e isso precisa ser feito por conta. Quando estamos nas aulas, fazendo as dinâmicas, estudando o texto, aprendemos a nos autoconhecer. O teatro ajuda no desenvolvimento da memória, melhora a comunicação, tira o medo de nos expressarmos na frente das pessoas. Nós fazemos os exercícios, depois sentamos e discutimos sobre isso. Aprendemos a analisar, ouvir o próximo e desenvolvemos senso crítico também. Somos um grupo unido, a formação de uma nova família. O mundo é muito individual no dia-a-dia, mas, no teatro, é preciso que o outro vá bem para que você vá bem também e isso nos desperta o sentimento de coletividade, de união. Ficamos felizes com o sucesso do outro. (Alexandre, 2022).
Já em conversa com Léia Batista, a escritora nos deu o seguinte depoimento:
Estamos curando um paradigma de que a arte não sobrevive em cidade pequena, mostrando que com um grupo nós conseguimos. Teatro é ferramenta de cura no sentido em que ele começou a cura em mim primeiro. Cura para mim como artista, que tinha o desejo de viver da arte e também para as crianças que eu tocava através das palavras e das peças. Quando estamos no palco fazendo as pessoas rirem, ou até chorarem, nós estamos transformando vidas, dos outros e a nossa. (Batista, 2022).
Em uma perspectiva pessoal, posso afirmar que o grupo Trupe da Aurora me tocou de diversas formas. Primeiro, com as boas risadas arrancadas pelos roteiros excepcionais da Léia e interpretações divertidíssimas dos atores. Segundo, por reconhecer temas tão importantes na sociedade e entender a arte como essa ferramenta de transformação social. Foi uma experiência incrível assistir ao vivo a apresentação de “Uma peça não muito íntima”, vibrar e rir junto com todo o público presente, além de me encantar com os traços da história que me lembraram grandes obras da nossa literatura, como “O auto da compadecida”, já mencionado anteriormente. Mas, sobretudo, por encontrar pessoas tão apaixonadas pelo que fazem, perceber que a arte (sobre)vive em todos os lugares e continua curando vidas: a de Léia Batista, a dos atores, a minha e, se você se render à arte, a sua também.
Descrição de imagem*: fotografia de um palco de teatro, onde seis pessoas estão atuando. No canto direito, uma mulher está sentada em uma poltrona cor de rosa claro. Mais ao lado, outras duas mulheres que vestem roupas coloridas conversam com um homem que está em cima de uma escada de aço. No canto esquerdo, dois jovens — um garoto e uma garota — conversam entre si. Um pouco mais à frente, há uma mesa coberta com tecido vermelho e, ao fundo, uma parede de tijolos encerra a decoração da cena.
Descrição de imagens**: da esquerda para a direita. Na primeira linha: imagem 01: fotografia de cinco atores do grupo de mímica. No canto superior esquerdo, aparece um jovem usando um chapéu preto, maquiagem e roupa de palhaço preto e branco, ele tem uma expressão séria no rosto. Ao centro da imagem, aparece um outro jovem de pé com expressão emotiva, usando uma boina vermelha, maquiagem de palhaço e uma camisa listrada em preto e branco. No lado direito da imagem, aparece uma jovem de pé e expressão sorridente, usando um chapéu de bobo da corte, um jaleco branco, gravata colorida e maquiagem de palhaço. No canto inferior esquerdo, uma jovem está abaixada, ela veste uma saia listrada em preto e branco, usa maquiagem de palhaço e uma flor branca no peito. Ao lado esquerdo, também abaixada, aparece uma outra jovem, com maquiagem de palhaço, vestindo uma saia de bolinhas preto e branco e um lenço vermelho no pescoço. Imagem 02: fotografia de uma peça do pequeno príncipe. Ao lado esquerdo, uma mulher veste peruca laranja com orelhas marrons, representando a raposa. Ao lado direito, um garotinho veste uma peruca loira e um sobretudo azul, representando o pequeno príncipe. Ao fundo, aparecem várias estrelas de papel amarelo. Na linha de baixo: imagem 03: Fotografia de duas pessoas sobre um palco, encenando a peça Romeu e Julieta. No fundo, aparecem cortinas vermelhas e pretas. Mais a frente, no centro, aparece uma jovem de braços abertos, usando um vestido vermelho de mangas brancas. Atrás dela, um jovem também de braços abertos, usa uma túnica vermelha. Imagem 04: fotografia de oito atores sobre o palco na peça “Uma peça não muito íntima”. Da esquerda para a direita, aparece uma mulher vestindo um sobretudo vermelho, ao lado aparece uma garotinha. Em seguida, aparecem duas mulheres com roupas coloridas. Ao lado delas, aparece um homem de camisa listrada, ao lado dele, há uma outra mulher de casaco rosa e saia.No fundo, no canto direito, aparece um garoto vestindo uma camiseta azul. Na frente de todos eles aparece Léia Batista, escritora das peças, usando um longo vestido verde. Ela está com os braços abertos e um sorriso no rosto.
Referências:
DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO. Origem da palavra arte. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/arte/. Acesso em: 21 jun. 2022.
ORIGEM DA PALAVRA. TEATRO [Edição 69]. Disponível em: https://origemdapalavra.com.br/artigo/teatro/. Acesso em: 21 jun. 2022.
AIDAR, Laura. História do teatro. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/historia-do-teatro/. Acesso em: 21 jun. 2022.
AIDAR, Laura. História do Teatro no Brasil. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/historia-do-teatro-no-brasil/. Acesso em: 21 jun. 2022.
ALEXANDRE, Luci. Entrevista concedida à Laiara Serafim. Araranguá, 17 jun. 2022
BATISTA, Léia. Entrevista concedida à Laiara Serafim. Araranguá, 17 jun. 2022
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