A importância da construção identitária: relatos de uma migrante nortista

08/06/2022 14:32

Franciane Rodrigues,
Bolsista PET-Letras
Letras Libras

Nortista, nascida e criada em Macapá, capital do estado do Amapá, localizada no extremo norte do país. Como muitos outros acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) também me afastei do meu local de conforto — lar, familiares e amigos — em busca do futuro promissor: estudar em uma universidade de renome, morar em uma cidade com mais segurança, educação, saúde e com diversas oportunidades de crescimento profissional e acadêmico. 

Fonte: Imagem de arquivo pessoal*

Em processos de mudanças geográficas temos em mente que existirão desafios, porém, na ansiedade e inquietação das transformações, minha maior preocupação foi focar no custo de vida, encontrar um lugar para morar, conseguir emprego e tratar das demais questões relacionadas à minha estadia em Florianópolis. 

Sempre soube que eu precisava de coragem, que nessa trajetória poderia enfrentar o racismo e a xenofobia por ser uma mulher retinta, nortista, com traços físicos que ressaltam minha ancestralidade, minha descendência indígena. Quando residente em Macapá, nunca parei para pensar sobre minha forma de ser em relação a aspectos identitários, para me analisar como integrante de um determinado grupo no que se refere a todas essas características e vivências que me cercam e me fazem ser quem sou.

O fato é que todos possuem sua identidade cultural. Os elementos vivenciados, nossas realidades, nos caracterizam, simbolizam e representam. Tais elementos são constituintes da construção identitária de um grupo e dos indivíduos inseridos nele, também podem ser considerados uma espécie de “sentimento de pertencimento” (OLIVEIRA, 2011, p. 139).

É importante entender que cada pessoa possui a sua “auto identidade” que se refere ao entendimento que cada um desenvolve sobre si mesmo ao decorrer da vida. A “auto identidade” realça as diferenças e suas construções através do processo psicossocial de reconhecimento próprio (OLIVEIRA, 2011, p. 157). Portanto, as identidades estão diretamente ligadas às nossas experiências de vida, localização geográfica, manifestações culturais e interação social. 

Meu desenvolvimento em Macapá foi maravilhoso, repleto de vivências culturais. Porém, também com desafios que me fizeram querer mudar, pois, apesar de bela e acolhedora, Macapá também tem seus pontos negativos, como qualquer outra capital. A cidade possui o segundo pior índice de educação sendo o pior entre as capitais do país, e lidera o ranking de cidades com o pior saneamento básico, o nono pior índice em segurança, sendo o terceiro pior entre as capitais. Todas essas vivências fazem parte de quem sou, das bandeiras que levanto em prol do meu povo, das lutas que enfrentei como nortista macapaense e que compõem a minha atual identidade. 

Por outro lado, temos muitos aspectos positivos também. Não deixo de falar das comidas do norte — como o vatapá, o tacacá, a maniçoba, o tucupi e o famoso açaí com peixe, sempre presentes na mesa de minha família —, da temperatura sempre alta, que faz com que seja impossível usar roupa de frio, das redes atadas em todos os quartos da casa, das palavras cotidianamente usadas por nós — como, por exemplo, carapanã, e égua, entre outras que nós sempre reconhecemos —, dos passeios em família na orla do Rio Amazonas, dos banhos de rios nos balneários, aos finais de semana, com músicas regionais de Zé Miguel, Amadeu Cavalcante e Melody (representantes do estilo musical do norte do país). 

Fonte: Imagem de arquivo pessoal**

Todas essas vivências, que são parte do povo macapaense, contribuíram para a minha formação identitária, que até então era desconhecida por mim. Entretanto, todas essas vivências me foram retiradas quando me mudei para o Sul do país, onde as manifestações culturais e diversas outras vivências são completamente diferentes daquelas que vivenciei durante todo meu desenvolvimento no norte do país.

Assim, após me lançar nesse ato de coragem e atravessar o país sozinha em busca das minhas realizações pessoais foi que entendi a importância da minha construção identitária, a importância de me enxergar, de me aceitar e de me posicionar como nortista.  Algumas vezes, meu “sentimento de pertencimento” foi desestabilizado e, até mesmo, cheguei a me invalidar e inferiorizar por me sentir diferente dentro do contexto em que, atualmente, estou inserida. 

Como mulher retinta e com traços indígenas ressaltados, cheguei a pensar que se eu me encaixasse na estética “branca” poderia ser mais desejada, mais aceita, e não apenas vista como “exótica”, como já fui literalmente denominada. Considerei que eu deveria aprender a me vestir, a me portar e a falar como “eles” para que eu fosse vista como “igual”; que meu conhecimento não era algo relevante e agregador para meu novo contexto. Deste modo, minha autoestima física e intelectual foram abaladas. Embora sempre tenha sentido orgulho de minhas raízes, era como se eu precisasse me “disfarçar”. Tudo isso, me fez recuperar e valorizar a minha identidade.

E quem eu sou é o que eu vivi, são os grupos sociais com quem tive trocas culturais, são os diálogos e as vivências que desenvolvi na minha terra. Quem eu sou e de onde eu vim é o que eu vivo. Somos inteiramente indivíduos e intrinsecamente seres sociais. E nossas identidades vivem em constante mudança. São nos momentos de crise, de instabilidade, de insegurança que as identidades culturais, preferencialmente,  manifestam-se e se afirmam (SANTOS, 2011, p. 146). Em meio a essa crise, precisei passar pelo exercício de me enxergar, de entender que, para ter segurança e me empoderar, eu teria que ter uma boa relação comigo mesma e iniciar isso pela valorização da minha identidade cultural e auto identidade, assumindo o  compromisso comigo mesma de ser quem sou. 

Todo esse processo de mudança, intensificado pelo choque cultural, fez com que o desenvolvimento pessoal e a construção identitária, com todos os seus detalhes e sutilezas, se tornassem elementos fundamentais de meu posicionamento no mundo e de minha compreensão e análise dos fenômenos socioculturais. O fato é que, se enxergamos a cultura como dinâmica e, por sua vez, mutável, não estável, também entenderemos que cada grupo e seus integrantes não assumem sentidos estáticos e idênticos. Portanto, fortalecer as raízes culturais do meu eu nortista, intensificar meu compromisso e processo de reafirmação é fundamental. E tudo que sou, deixo de ser e me torno se mistura às novas vivências culturais que venho tendo no sul, já que meu processo de construção identitária é contínuo e permanente. 

Descrição de imagem*: fotografia em preto e branco de uma moça sentada de costas em um balanço na beira de um rio.  A direita da imagem, aparece uma ponte alta sobre o rio Mazagão, a maré está baixa. Ao fundo, é possível identificar algumas árvores sob o céu repleto de nuvens. No centro da imagem, em primeiro plano, a menina se embala no balanço com os braços levantados em direção ao horizonte na beira do rio.

Descrição de imagens**: Da esquerda para direita. Na primeira linha: Imagem 01: fotografia colorida de várias pupunhas juntas, fruto nativo da região amazônica. O fruto é redondo, pequeno, em tons de laranja, estão presas em vários cabinhos. Imagem 02: Fotografia colorida, de ângulo superior. Sobre uma mesa de madeira rústica estão postas três tigelas de açaí e farinha de mandioca, acompanhado de um prato com peixe frito, salada e arroz. No canto direito superior da imagem uma mão segura a primeira tigela de cor laranja, no canto direito inferior outra mão segura a segunda tigela de cor azul pastel, no lado esquerdo a terceira tigela de cor azul vibrante. No canto esquerdo da imagem uma mão segura um pedaço de peixe frito. Na linha de baixo: Imagem 03: fotografia colorida em ângulo superior, no centro da imagem sobre folhas de samambaia uma mão segura um cupuaçu, fruta típica da região amazônica. A fruta  tem formato oval e está  aberta ao meio, com casca de cor marrom e grossa, no interior do fruto a poupa branca. As folhas das samambaias ao fundo são verdes escuras. Imagem 04: Fotografia colorida do rio Pedreira com árvores ao fundo, localizada na comunidade Santo Antônio da Pedreira no Amapá. No canto superior direito, há uma folhagem de árvore em tom verde escuro, observa-se o céu coberto de nuvens brancas, o dia está claro e ensolarado.  No rio, as árvores espelhadas nas águas.

Referências

MACHADO, Laura. Macapá lidera ranking de cidades com o pior saneamento básico: ‘Uso água do vizinho’, diz moradora que paga R$ 50 para acessar poço. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2022/03/23/macapa-lidera-ranking-de-cidades-com-o-pior-saneamento-basico-uso-agua-do-vizinho-diz-moradora-que-paga-r-50-para-acessar-poco.ghtml. Acesso em: 6 jun. 2022.

OLIVEIRA, Patrícia de. Narrativas identitárias e construções subjetivas: considerações teóricas e análise empírica de identificações entre jovens das classes populares. Civitas: Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 11, n. 1, p. 156-171, 13 jul. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/civitas/a/NPwmvnLkY7whpyMGK944cph/?lang=pt#. Acesso em: 6 jun. 2022.

SANTOS, Luciano dos. As Identidades Culturais: proposições conceituais e teóricas. Rascunhos Culturais, Coxim, v. 2, n. 4, p. 141-157, jul./dez. 2011. Disponível em: http://revistarascunhos.sites.ufms.br/files/2012/07/4ed_artigo_9.pdf. Acesso em: 6 jun. 2022.

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