Vicissitudes do amor em “Sonho de uma noite de verão” de Shakespeare

02/06/2022 09:54

Pedro Pedrollo dos Santos,
Bolsista PET-Letras
Letras Espanhol

Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. […] Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. Clarice Lispector, Felicidade Clandestina.

William Shakespeare, nascido em Stratford-upon-Avon, Inglaterra, em 23 de abril de 1564, é um dos escritores mais proeminentes de sua época. Ele ganhou visibilidade e projeção mundial com suas obras, destacando-se na produção de tragédia, drama, comédia, poesia e romance. O autor viveu boa parte de sua vida na Inglaterra governada pela rainha Elisabete I, que reinou de 1558 a 1603. Nesse período, teria surgido e se destacado o que se chamou de teatro elisabetano — um relevante marco da história do teatro no ocidente (ANDRADE, 2013).

Considerado poeta, dramaturgo e ator, Shakespeare produziu em inglês tornando-se uma inspiração e influência a diversos poetas e dramaturgos que o sucederam e, devido a isso, tem sido visto como o grande poeta nacional da Inglaterra e como o poeta de “Bardo do Avon”. A produção de Shakespeare engloba mais de 35 peças, quatro poemas, sendo dois deles poemas narrativos, e 154 sonetos escritos na época do renascimento, período marcado pelo antropocentrismo, ou seja, pela valorização do homem e da razão em oposição à fé religiosa. Além disso, “eram grandes as dificuldades criadas pelas forças conservadoras [de sua época] para impedir mudanças significativas no plano das instituições políticas, das relações socioeconômicas, da cultura e dos costumes” (KONDER, 2007, p. 115).

Sonho de uma noite de verão — em inglês, A midsummer night’s dream — de Shakespeare não tem uma data exata de publicação. Entretanto, por suas características acredita-se que tenha sido escrita/encenada no período de 1595-1596, junto a outras obras do autor, como Romeu e Julieta — em inglês, Romeo and Juliet. Considera-se que essa obra representa bem o estilo de um conjunto de obras de Shakespeare, sendo uma das mais encenadas e conhecidas em todo o mundo, segundo Rafaelli (2016). A obra segue a perspectiva de comédia ao apresentar uma trama de amores “não correspondidos” que vivenciam circunstâncias adversas, mas divertidas, as quais são provocadas pela ação de algumas criaturas mágicas que, ao final dos acontecimentos, levam as personagens a acreditaram que o que teriam vivenciado não passaria de um sonho.

Em Sonho de Uma Noite de Verão, a mitologia grega está presente […] Essa peça é uma das comédias de maior aceitação popular de Shakespeare […] Sonho de Uma Noite de Verão nos mostra uma forte ligação com a cultura popular, além de misturar elementos reais e fantásticos que proporcionam um clima de magia e encantamento […] é uma peça que fala sobre “sonhos”, possui um caráter que transcende a lógica formal, de cunho mágico e sensual, além de trazer consigo uma grande bagagem cultural, social e histórica. (ANDRADE, 2013, p. 31-32).

Em síntese, pode-se dizer que o enredo se desenvolve a partir de uma conexão amorosa entre as personagens principais, a saber, Helena que ama Demétrio, que ama Hérmia, que ama Lisandro, que também a ama (esse seria único casal que se amaria reciprocamente). Todavia, o casal possui um impedimento, já que o pai de Hérmia quer que ela se case com Demétrio. Essa situação a leva a decidir fugir com Lisandro. Assim, os dois — Lisandro e Hérmia —, marcam um encontro. Ao irem para seu encontro no bosque vivenciam uma situação inesperada, visto que o local é habitado por criaturas mágicas — duendes, elfos e fadas — que empregam encantos para “brincar” com os casais apaixonados. Helena e Demétrio também vão para o mesmo bosque. E é, exatamente, nesse contexto, de uma tensa noite de verão, que toda a trama se desenrola. Ao final da trama, Oberon — o rei das fadas — desfaz muitos dos encantos e as personagens despertam, ao amanhecer, sendo levados a acreditar que tudo teria sido mero sonho, ainda que não entendessem bem o porquê estariam ali.

A imagem retrata uma cena colorida e com muitos seres mágicos de várias espécies e tamanhos, espalhados entre flores, troncos e árvores, e nas mais diversas posições e composições ao redor do Rei e da Rainha das fadas: Oberon e Titânia. Oberon tem pele clara, uma roupa transparente dourada sobre o corpo, com colares e braceletes dourados, há um véu de seda salmão, enrolado no pescoço e voando como uma capa. Em sua mão direita, segura duas lanças prateadas. Ele olha para Titânia, à sua direita. Titânia tem o corpo esbelto, branco e reluzente, envolto em um véu transparente e brilhante da cintura para baixo, cabelos loiros, asas brancas brilhantes, pés descalços. Ela tem os olhos voltados para Oberon à sua esquerda.
Fonte: Pintura de Joseph Noel Panton “A contenda de Oberon e Titânia”*

Pode-se notar que as obras shakespearianas são bem densas e interagem com diversas fontes utilizadas por Shakespeare. A intertextualidade está bem presente em suas obras, o que pode ser notado nas muitas menções e referências a outras produções. Segundo Rafaelli,

Sonho de uma noite de verão mantém, inclusive, uma curiosa relação com Romeu e Julieta, pois parece emular de forma cômica o tema da tragédia na representação burlesca da peça dentro da peça denominada A mais lamentável comédia e a morte mais cruel de Píramo e Tisbe (The most lamentable comedy and most cruel death of Pyramus and Thisbe), encenada por uma trupe de palhaços. O leitmotiv é o mesmo: amantes que sofrem a interdição familiar amam-se em segredo, mas por causa de um desencontro chegam a um fim trágico, com a amante matando-se sobre o corpo do amado morto; contudo, o tom de uma e outra é totalmente diverso, como se Shakespeare estivesse se autorreferenciando ao trocar a máscara da tragédia pela da comédia. (2016, p. 7-8, grifos meus).

Tanto em Sonho de uma noite de verão quanto em Romeu e Julieta a temática do amor parece ser o eixo estruturante da trama. Konder destaca que “em muitas de suas obras [de Shakespeare], ele (ou algum de seus personagens) fala do amor” (2007, p. 116). Considerando a temática do amor em Shakespeare e o modo como ela é abordada, vemos que o autor está preocupado em demonstrar diversos aspectos do amor, tanto nas personagens que amam de forma distinta quanto nas diferentes ações que esse amor provoca nelas e a partir delas.

Como em Romeu e Julieta: “E o que o amor pode fazer, ele precisa ousar fazê-lo”. Ou em Vênus e Adônis: “Vai, aprende; a lição é fácil. / E uma vez aprendida, ela nunca se esquece”. E em Henrique V: “Ame um soldado, como eu, e você estará amando um rei. Diga com franqueza, o que você acha desse meu amor?”. Ou ainda em Trabalhos de amor perdidos: “O amor é cheio de caprichos extravagantes; é arteiro como uma criança”. E também em Sonho de uma noite de verão: “Hermia: Quanto mais eu o detesto, mais ele me persegue. Helena: Quanto mais eu o amo, mais ele me detesta”. E, por fim, Como quiserem: “No amor, o sangue enlouquece, a vontade faz concessões” e “Posso lhe garantir: o amor é pura loucura. Merece, como os loucos em geral, o chicote e a solitária”. (KONDER, 2007, p. 116).

Nas peças de Shakespeare “os problemas da vida amorosa ganham uma expressão mais forte” (KONDER, 2007, p. 116). Além disso, esse amor se desenvolve em um contexto social, político e cultural específico, o qual tem impactos e influências no modo como esse amor será ou não desencadeado.

Um dos aspectos do amor, representados em Sonho de uma noite de verão, é os desencontros de diversas ordens, as irrealizações e as muitas adversidades que o amar provoca. Como exemplo, poderíamos dizer que o amor em suas muitas facetas se faz presente podendo ser realidade ou fruto da imaginação, humano ou mágico, podendo se findar em tragédia, como no caso de Romeu e Julieta, ou mesmo em comédia, como se passa com as personagens de Sonho de uma noite de verão.

Nesse sentido, as vicissitudes do amor — seus decursos e insucessos — poderiam ser colocadas como uma perspectiva de análise da obra, visto que o amor idealizado, projetado, desejado, não correspondido ou mesmo proibido caracteriza as personagens e estimula sua ação na trama, tornando-as vítimas de seu próprio amor.

Por fim, vemos que os amores e os afetos humanos estão representados em algumas obras shakespearianas, e inclusive em Sonho de uma noite de verão, demonstrando que as vicissitudes do amor exigem a ação efetiva das personagens que buscam seus espaços no amar, tomam iniciativas, fazem opções e são, muitas vezes, surpreendidas pelos acasos do amar, ilustrados, no caso da obra analisada, na figura dos seres mágicos que interferem no que poderia ser o processo natural dos desdobramentos ou não do amor.

Que tal refletir um pouco mais sobre o amor e suas vicissitudes lendo as obras de William Shakespeare!

*Descrição da Imagem: A imagem retrata uma cena colorida e com muitos seres mágicos de várias espécies e tamanhos, espalhados entre flores, troncos e árvores, e nas mais diversas posições e composições ao redor do Rei e da Rainha das fadas: Oberon e Titânia. Oberon tem pele clara, uma roupa transparente dourada sobre o corpo, com colares e braceletes dourados, há um véu de seda salmão, enrolado no pescoço e voando como uma capa. Em sua mão direita, segura duas lanças prateadas. Ele olha para Titânia, à sua direita. Titânia tem o corpo esbelto, branco e reluzente, envolto em um véu transparente e brilhante da cintura para baixo, cabelos loiros, asas brancas brilhantes, pés descalços. Ela tem os olhos voltados para Oberon à sua esquerda.

Obra de referência:

SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Trad. Rafael Raffaelli. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2016. 199 p. (Edição bilíngue: português e inglês)

Referências Bibliográficas:

RAFAELLI, Rafael. Introdução. In: SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Trad. Rafael Raffaelli. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2016. pp. 7-11. (Edição bilíngue: português e inglês).

ANDRADE, Mislainy Patrícia de. Procedimentos tradutórios e dimensões da figura feminina em Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. 2013. 117 f. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Departamento de Letras, Goiânia, 2013.

KONDER, Leandro. Shakespeare e as turbulências do amor. In: KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. pp. 115-120. (Marxismo e literatura)

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