Você conhece uma “Maria Carmem”?
Daniely Karolaine de Lavega,
Bolsista PET-Letras
Letras – Português
Uma história narrada por uma criança, mas escrita para adultos.
O livro Se Deus me chamar não vou, escrito por Mariana Salomão Carrara, foi publicado recentemente, em 2019, pela Editora Nós. Em pouquíssimos capítulos, Maria Carmem, a narradora protagonista da obra, é capaz de nos conquistar facilmente com seu olhar fresco e ingênuo — mas surpreendentemente maduro — de criança. Apesar da guerra que ocorre em sua mente acompanhada da negligência parental, ela possui uma comicidade que nos cativa sem demora: “Uma vez numa viagem eu vi uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de piscar. […] Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo.” (CARRARA, 2019, p. 7).
Maria Carmem é uma pequena aspirante à escritora que auxilia seus pais — mais jovens que a maioria dos pais que ela conhece — no estabelecimento comercial da família, que trabalha com a venda de produtos para o público da terceira idade. É interessante pensar que, segundo Carrara (2019), a menina nasceu no fim. Nós acompanhamos seu cotidiano nos ambientes familiar e escolar, conhecendo seus sentimentos e pensamentos mais complexos. Maria Carmem é uma criança angustiantemente real e luta contra problemas reais; como sua preocupação em relação à falta de prosperidade da loja de seus pais, o bullying diário que a acomete na escola e o medo imensurável de morrer. Envolvida por uma solidão devastadora — que parece ser invisível junto a todo o restante para seus pais —, a menina constantemente desconstrói e reconstrói o mundo em torno de si, estimulando-nos a refletir de verdade acerca de algumas sutilezas da vida: “Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos.” (CARRARA, 2019, p. 26).
O livro se assemelha a um diário; gira em torno de Maria Carmem tentando escrever, com o auxílio de sua professora, um livro sobre sua própria história — ela acredita que poderá escrever sobre a história de outra pessoa somente quando se tornar escritora de verdade, depois de praticar bastante. Maria Carmem tem apenas 11 anos de idade, está no 6º ano do ensino fundamental, mas definitivamente não podemos subestimá-la. Entre o sentimento de solidão absoluta, a sensação de não se encaixar em algum lugar e questionamentos acerca da religião e da pressão estética sobre o corpo feminino, a menina pinta com perfeição o período da pré-adolescência.
Fonte: Amazon*
A leitura é emocionante, divertida e, apesar de leve, atinge-nos como um furacão; temos a sensação de estar descobrindo a vida ao lado da personagem, como se tivéssemos retornado à infância. Se Deus me chamar não vou naturalmente constrói uma moradia permanente no interior de nós, por isso Mariana Salomão Carrara parece ser uma promessa da literatura nacional. É impossível acompanhar a transição de Maria Carmem para a adolescência e não se identificar com suas dúvidas, seus medos e suas dores. Crescer é doloroso e deixa cicatrizes para trás. É assombroso o quanto nós nos encontramos na personagem e sofremos com ela. Existem incontáveis “marias carmens” perdidas por este mundo.
Se você não se lembra de ter conhecido uma “maria carmem”, você possivelmente foi uma.
REFERÊNCIA
CARRARA, Mariana Salomão. Se Deus me chamar não vou. 1. ed. São Paulo: Editora Nós, 2019. 160 p.
*Descrição: Uma imagem da capa do livro. Esta possui um fundo rosa com linhas laranjas em diagonal. Acima e centralizado, o título da obra se apresenta em letras minúsculas na cor azul cortado por linhas diagonais em rosa. Abaixo e centralizado, o nome da autora se mostra em letras maiúsculas na cor branca. No canto inferior direito da capa, sobre uma pequena faixa azul, o nome da editora aparece em letras maiúsculas na cor branca.
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