“Crip camp” e as revoluções pela inclusão: questão de pertencimento

11/05/2021 19:06

Ana Maria Santiago,
Bolsista de Acessibilidade – PET-Letras
Letras Português

Imagine ser um adolescente com deficiência e, principalmente por isso, sempre se sentir diferente. E errado, também, por ser e estar diferente nesse mundo onde você e o seu corpo simplesmente não parecem caber. Ter que lidar com a falta de apoio, informação ou mesmo com o vazio de sentir que não havia possibilidades, o direito mais básico. Imagine, então, de repente ir para um lugar com outras pessoas e sentir que elas finalmente são como você. E ser ouvido e ouvir também, como se fora dali sempre tivesse sido assim. Contudo, saber o tempo todo que não é assim. Foi um pouco dessa forma, dadas as devidas proporções, que me senti assistindo “Crip Camp, Revolução pela Inclusão”, na Netflix.

O documentário, produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama, mostra a história de um acampamento de férias para jovens com deficiência que ocorreu nos Estados Unidos de 1951 a 1977, o Camp Jened, e o enorme impacto que esse espaço teve nos campistas, monitores e na sociedade em geral. Mas como este é um texto nada técnico, vou me concentrar em falar das subjetividades, pois, afinal, são elas que nos constroem. Se quiser saber mais detalhes dos acontecimentos, assista ao documentário, que conta com recursos de audiodescrição e Closed Caption. Aliás, se esse texto puder ser um apelo, por favor, assista.

Fonte: Imagem do documentário da Netflix na Internet.*

Logo no começo, são mostradas imagens e entrevistas antigas de alguns campistas e monitores, além de relatos mais atuais deles sobre o acampamento. Ainda era só o começo e eu já estava chorando. As palavras deles tocavam em um lugar em mim, ao mesmo tempo difícil e ridiculamente fácil de explicar. Eu entendia aquelas histórias em um nível diferente, mais íntimo e real. Eu entendia e reconhecia esses como lugares em que já estive ou ainda estou. Eu sei como é se sentir desacreditada o tempo todo. Sei como é quando até as pessoas próximas — às vezes, especialmente elas — duvidam de mim. Sei das dores e da solidão de não se encontrar em ninguém e nem encontrar espaços onde caber. Sei das portas imediatamente fechadas e das que nem achamos que podemos tentar abrir. Sei do lugar vazio de “exemplo de superação”, em que nos colocam, e de como é solitário e ilusório estar lá. Sei como é sair. E, naquele momento, ouvindo essas pessoas, senti que compartilhávamos algo. Algo potente, ali exposto e escancarado, para todo mundo ver. Foi o tamanho dessa potência que me levou às lágrimas e essa foi a primeira de muitas vezes em que isso aconteceu.

Ao falar do acampamento, as pessoas transmitiam um sentimento que também me atingiu em cheio no peito. O pertencimento. A liberdade de ser quem realmente somos e de não se preocupar se seremos aceitos. O respeito de ser ouvido de verdade. No Camp Jened, pessoas com diferentes deficiências e monitores sem deficiência conviviam sem ter que esconder seus corpos ou particularidades, encontrando formas de receber e, também, de dar ajuda e cuidado uns aos outros sempre que necessário. Inclusive aprendendo juntos a encontrar esse coletivo. Ninguém era um problema. Ninguém ficava para trás. Uma das cenas que me tocou especialmente foi a de uma das reuniões que eles faziam para decidir coisas cotidianas, em que todos se pronunciavam. Em certo momento, uma moça com deficiência física falava lentamente e todos ouviam. Quando alguns não conseguiram entender, outros tentaram ajudar. Tudo com o respeito que deveria ser a regra, mas que não é. Aquilo me chamou a atenção, principalmente, por várias vezes, já ter presenciado as pessoas — o tempo todo — atropelando e tentando adivinhar o que pessoas com deficiência tentavam dizer sem deixá-las terminar. Como deve ser exaustivo não poder nem terminar a própria frase, não é?

Ainda falando do acampamento, pensei na minha própria busca, presente e dolorida, por formas de pertencer e também na busca por esses lugares seguros onde estar, que eu nem me dava conta de estar empreendendo por todos esses anos. Esses lugares em que eu tenho praticamente certeza de que não preciso me proteger de nada desagradável, seja em algum grupo ou com amigos, por exemplo. Pensei na sensação incrível que eles trazem e, também, no alívio imenso que representam para a minha vida. A conclusão foi óbvia e imediata: é fundamental encontrar esses lugares, ainda mais se você tem uma deficiência. Para os participantes de Crip Camp, esse lugar foi o Camp Jened. Não é à toa que foi a partir dele que surgiu, literalmente, uma revolução pela inclusão.

Era nessas reuniões, que comentei acima, que os campistas daquele grupo trocavam experiências sobre suas deficiências e realidades. Foi nesse espaço também que eles perceberam que compartilhavam de muitas dificuldades em comum e — não menos importante — que deveriam, juntos, fazer algo a esse respeito. Não só deveriam, mas poderiam e fizeram. Algo gigante. Nascia ali o que depois se tornaria o movimento político pelos direitos das pessoas com deficiência dos Estados Unidos.

O documentário mostra a articulação desses que se tornaram companheiros de luta, o que culminou em um protesto histórico em que centenas de pessoas com deficiência ocuparam um prédio do governo por mais de 20 dias pela aprovação da primeira legislação em relação às pessoas com deficiência do mundo. Só o fato de escrever isso, já me arrepia. Então nem preciso dizer que a emoção foi e ainda é grande. Por que a maioria gritante de nós nunca tinha nem ouvido falar desse protesto histórico? Outro desdobramento foi o surgimento dos primeiros Centros de Vida Independente na Califórnia e, posteriormente, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

A última parte do documentário mostra alguns dos campistas e monitores retornando ao local do acampamento, então abandonado, e rememorando suas experiências e o significado desse espaço nas suas vidas. “Por que revolução pela inclusão?”; você pode ainda se perguntar. Crip Camp é revolucionário porque são as próprias pessoas com deficiência que contam a sua, a minha, a nossa história. Percebe o tamanho disso? Talvez não. Mas eu sinto na pele. As pessoas com deficiência são protagonistas e são representadas finalmente de forma inteiramente real. Crip Camp também é um trabalho incrível e, por isso, foi indicado ao Oscar de melhor documentário. Assim, na última edição do Oscar, havia uma rampa de acesso ao palco, o que não seria de surpreender se essa não fosse a primeira vez que isso acontece em 93 anos da existência do prêmio. Mas o que isso nos diz?

Crip Camp é revolucionário porque movimentou o debate sobre deficiência não só comigo mesma, mas com várias pessoas próximas, para quem também foi uma revolução de grandes deslocamentos. Porque é desses deslocamentos que fazemos tremores maiores ainda. Porque e encheu de emoção sentir a potência da identificação e ouvir as pessoas que são como eu em lugar de destaque, contando tudo aquilo que só elas e nós podemos contar. Porque mostrou para o mundo um pedaço importante da nossa história e nos fez transbordar com orgulho. Porque adicionou mais ímpeto de participarmos da luta diária. Para nós, revolucionário é, além de sermos vistos, podermos nos ver. Afinal, quem pensa que representatividade não importa é apenas quem por padrão sempre foi representado.

* fotodescrição: Cena do documentário em preto e branco, em que um homem negro, de cabelo curto e uma blusa preta sobre uma camiseta branca, carrega no colo um homem branco, de cabelos ondulados e um óculos de armação redonda. Ele veste uma calça jeans com suspensório e está sem camiseta. Ambos muito sorridentes. Ao fundo da cena aparece um homem à direita em uma cadeira de rodas e à esquerda duas mulheres sentadas, uma delas olhando para um outro homem se apoiando em uma bengala. Atrás deles árvores, um vasto gramado e uma grande casa.

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