Você conhece as motivações, os significados e as consequências do que fala?
Ana Maria Santiago,
Bolsista de Acessibilidade
Letras – Português
Com certeza você já usou ou viu alguém usando alguns termos, tais como “cego” ou “surdo”, como metáforas para burrice, alienação ou até falta de caráter. Exemplos sobre esse tipo de uso não faltam, nos mais diferentes contextos sociais. A internet está cheia deles, seja em sites de notícias ou nas diversas redes sociais. Entretanto, você já se questionou por que isso acontece?
Essas metáforas são tão naturalizadas que parecem algo já dado, simplesmente parte da língua, mas não podemos deixar que isso nos impeça de pensar sobre isso e de mudar de atitude. Além disso, quando essas metáforas são usadas algumas pessoas tendem a pensar que estão sendo inteligentes ou sofisticadas, mas, na verdade, estão sendo capacitistas. Contudo, o que isso significa? Então, vamos entender um pouco mais o porquê você deveria parar de usar esse tipo de metáforas.
O primeiro ponto importante é que a maneira que usamos a língua e, por sua vez, as palavras nunca é aleatória. Nunca! Por si só, o fato de se referir a uma condição, a uma deficiência, ao modo como muitos de nós estamos no mundo, para ofender alguém já é um problema. Deficiência não pode ser sinônimo de ofensa. Se você usa o termo “cego” com o mesmo sentido que alienado ou desinformado, por exemplo, você está associando diretamente que o fato de se ter uma deficiência visual implica em ser alienado ou desinformado; ainda que você não pense assim.
Não importa que não seja a sua intenção. Não importa que você nunca tenha pensado nisso antes. Você está dizendo que essas características pejorativas estão relacionadas a não enxergar, o que também significa que pessoas com deficiência visual seriam alienadas ou desinformadas pelo fato de não enxergarem. Não enxergar, desse modo, é sinônimo de irracionalidade, alienação, ignorância e assim por diante. Como você acha que nós, que de fato somos pessoas cegas, nos sentimos com isso?
Fonte: Cenas do documentário Crip Camp: Revolução pela Inclusão (Disponível na Netflix)*
Vivemos em uma sociedade capacitista que, diariamente e de forma estrutural, entende que as pessoas com deficiência são menos capazes, inclusive menos humanas. Nada mais natural que o uso da linguagem reflita essas visões. Alguns defendem o seu direito a usar metáforas em seu cotidiano, outros, inclusive, dizem que nós que somos pessoas com deficiência exageramos nesse ponto. Todavia, por que não utilizar nossa língua, que é tão nossa, para evitar expressões que não só ofendem pessoas, mas que também ajudam a perpetuar uma estrutura capacitista? Por que insistir nessas metáforas ofensivas? A língua é feita por nós e é dinâmica, a constituímos a partir do que pensamos e do que acreditamos. Então, por que continuar dizendo que acreditamos que pessoas com deficiência são problemáticas ou que carregam características ruins?
Falo aqui da cegueira porque sou uma pessoa cega e isso me atinge de forma direta, mas é igualmente comum usar outras deficiências para ofender e ridicularizar. Repito, isso não é aceitável de jeito algum. Não se justifica. Não existe cegueira intelectual ou surdez seletiva. Essas expressões são apenas reflexo do capacitismo que está arraigado em tudo: em nossa estrutura social, nas instituições e no comportamento. A língua é um instrumento político e pode ser usada para dominação e poder, por isso, cabe a nós desconstruí-la para que não seja mais uma forma de opressão. Pense nisso! Ao disseminar metáforas capacitistas, mesmo sem pensar nelas, você contribui para que as pessoas com deficiência sejam discriminadas e postas à margem da sociedade.
*fotodescrição: A imagem é uma montagem com cinco cenas em preto e branco do documentário “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”. À direita da imagem estão duas fotos maiores, uma sobre a outra. Na foto superior, temos um homem negro carregando no colo um homem branco. Ambos muito sorridentes. Ao fundo da foto aparece um homem à direita em uma cadeira de rodas e à esquerda duas mulheres sentadas, uma delas olhando para um outro homem se apoiando em uma bengala. Atrás deles árvores, um vasto gramado e uma grande casa. Na foto inferior, diferentes garotas reunidas sorriem. Uma está de joelhos, três em cadeiras de rodas e três sentadas no chão. Vemos os pés de mais garotas que não estão aparecendo. Estão num grande gramado com arbustos ao fundo e à esquerda. Ao chão há alguns copos e caixas de bebidas, dando a entender que estão num piquenique. À esquerda da imagem, estão três fotos menores. Na foto superior, vemos algumas pessoas diante de grades com a casa branca ao fundo. Duas pessoas estão em cadeiras de rodas, uma mulher e um garoto. O garoto segura um cartaz onde está escrito: “SIGN 504 REG.S NOW” com um símbolo de cadeirante na parte inferior. Na foto do centro, vemos um rapaz negro atrás de uma cadeira de rodas, sem camisa, segurando um violão com sua mão direita, o qual está sobre seu ombro direito. Sua mão esquerda está na cadeira de rodas onde há um garoto sorrindo. Ao fundo, uma estrada de terra que parece ser no campo, com algumas casas à sua direita. Na foto da parte inferior, há um garoto negro com um chapéu de palha e uma camisa de bolinhas brancas com uma jaqueta por cima. À direita dele, há uma menina em uma cadeira de rodas cochichando no ouvido de outro rapaz que também está na cadeira de rodas que quase não aparece. Ao fundo pessoas sentadas no chão e em pé no gramado.
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