Elaborações escorregadias sobre “Eles estão por aí”

01/04/2024 14:39

Por Débora Klug

 Bolsista do PET Letras

Letras Português

Este será um breve comentário-resenha que se propõe a tentar dar algum contorno interpretativo ao quadrinho brasileiro “Eles estão por aí”, lançado pela editora Todavia, em 2018, de autoria de Bianca Pinheiro e Greg Stella.

Digo tentar pois quem já conhece a obra concorda que ela pode ser descrita, no mínimo, como enigmática. É um quadrinho com muita margem interpretativa, abrindo muitos sentidos possíveis ao leitor. Tentarei indicar alguns pontos de partida.

Cabe, inicialmente, uma pequena apresentação dos eixos que conduzem a narrativa, e depois uma apresentação dos elementos estéticos do quadrinho (muitíssimo importante!).

Podemos pensar em três eixos diferentes: o primeiro é a jornada de dois seres; um deles parece uma lesma com um olho só, e o outro parece uma berinjela com um braço e duas pernas – uma delas é maior que a outra, como se fosse dobrada em um laço. Eles se acompanham, mas sem nenhuma razão aparente para tal. Apenas andam, e raras vezes trocam algumas poucas palavras, rumo a um lugar que nem o leitor e nem eles parecem saber qual. Apenas se deslocam para alguma direção. Esse já é um bom ponto para começar a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre deslocamento.

O segundo eixo é uma espécie de sociedade de outros seres; estes se parecem com sementes que têm pernas e boca, mas não tem olhos. Eles são guiados por uma espécie de líder religioso, cujas pregações são sobre seres titânicos que estão por aí, e que são como que donos de tudo por serem muito grandes, enquanto as sementes pequenas não são nada. Como eles não possuem olhos, acreditam que não foram feitos para ver. Acompanhamos então uma semente revoltada, que saí como andarilha para poder ver o mundo. E o segundo ponto para pensar a tentativa de interpretação do quadrinho pode ser isso: ver o mundo.


Descrição da imagem: um quadrinho de fundo preto possui um ser parecido com o formato de uma semente, com uma boca com poucos dentes pontudos e duas pernas, tem a seguinte fala no balão “mas é só por um tempo…”. Abaixo, há um quadro maior, também com o fundo preto, com o mesmo ser em maior evidência com outra fala distribuída em cinco balões diferentes: “eu preciso andar… eu quero… eu preciso sair… a senhora entende? Tem coisas que eu preciso fazer, coisas que eu preciso ver…”

Fonte: arquivo pessoal

Agora, por fim, o terceiro eixo são outros seres que parecem viver dentro de um gigante que não faz nada além de empilhar pedras. Não enxergamos esses pequenos seres em nenhum momento, apenas lemos seus diálogos que são as maiores das trivialidades possíveis: sonhos sobre desentendimentos entre conhecidos, fulano que ficou com ciclano e risadas desconfortáveis. Em resumo, são como os assuntos que temos com colegas distantes que encontramos sem querer no ponto e queremos preencher aquele vazio incômodo até chegar o próximo ônibus. É desconfortável de ler,  de tão trivial  que é o tom das conversas, com pausas longas e tentativas de puxar assunto falhas, uma inadequação gritante permeia todos os diálogos. Outro ponto importante para a reflexão: “Eles estão por aí” pode ser sobre vazios (e a tentativa de preenchê-los).

Uma travessia de uma dupla estranha, uma semente sem olhos que se revolta em busca de enxergar, e seres microscópicos conversando as maiores frivolidades. De maneira geral esses são os principais eixos da narrativa. O que perpassa, de uma maneira ou outra por todos os três eixos, é que todos os seres não sabem qual a função deles no mundo, se existe algo além deles, o que eles devem ou não fazer. Eles tentam dar algum rumo para o que vivem com o que têm à sua disposição, apenas andando, ou se revoltando, ou jogando conversa fora.

 

Descrição da imagem: há oito quadrinhos com o mesmo desenho, um ambiente feito de poucos traços arredondados, que lembram nuvens, e dois seres que são pontos pretos no meio dos traços. Nos dois primeiros quadrinhos não há falas, indicando silêncio. No terceiro quadrinho eles falam, juntos, “você”. O quarto quadrinho está vazio, indicando um silêncio. No quinto quadrinho eles riem juntos “hehe”. No sexto quadrinho um dos seres fala “pode falar”, o outro responde “não, não, fala você.” No sétimo quadrinho um dos seres fala “não, pode falar”. Por fim, no oitavo quadrinho não há falas, indicando silêncio.

Fonte: arquivo pessoal

Cabe aqui também apresentar a estética do quadrinho. Ele possui traços muitos orgânicos e um tanto minimalistas. É todo em preto e branco, e os quadros tem muitos momentos lentos e contemplativos, em que apenas observamos os personagens se deslocando no ambiente, sem nenhuma fala ou grandes acontecimentos (principalmente no primeiro eixo da história, da lesma de um olho e a berinjela perna-de-laço).

Além disso, o quadrinho é repleto de splash pages utilizadas de uma maneira bem inusitada. Splash pages é um recurso gráfico em que o autor se utiliza de uma página inteira para colocar uma cena, ao invés de vários quadrinhos em uma página só, é uma imagem que toma conta da página toda. Geralmente, esse recurso é usado para destacar um grande acontecimento, nos momentos clímax da narrativa, para chamar a atenção do leitor. No entanto, em “Eles estão por aí” as splash pages são, muitas vezes, os momentos de completo vazio, que causam angústia, como os personagens sentados na beira de um precipício, ou caminhando por desertos ou locais estranhos e monumentais.

E é nessa estética que convergem os três pontos que destaquei anteriormente: o deslocamento, ver o mundo e vazios. Todos os três pontos se interceptam, pois, cada um à sua maneira, os personagens se deslocam entre vazios (metafóricos e literais) para ver o mundo.

A história de “Eles estão por aí” é construída, essencialmente, por seus desenhos e recursos gráficos, não tanto pelo que está materializado em língua escrita. É no que não se diz que está a maior potência da narrativa.


Descrição da imagem: há uma ambientação simples, com uma longa linha no horizonte, seguida de pequenas linhas abaixo dela, criando uma textura que parece ser de um lugar deserto. Ao longe, no horizonte há duas pequenas silhuetas.

Fonte: arquivo pessoal


Descrição da imagem: essa é a continuação da imagem anterior. Ainda há uma linha longa fazendo o horizonte, no canto direito uma pequena árvore. Mais a frente, as duas silhuetas agora estão visíveis. Uma delas se parece com uma berinjela com duas pernas e um braço, e a outra parece uma lesma com um olho. Elas encaram um precipício que é preto com algumas rachaduras em branco. Os traços são simples.

Fonte: arquivo pessoal

 

Por fim, vale apontar que o quadrinho, como não tem uma estrutura narrativa convencional, também não tem um final convencional. Não há nenhuma conclusão, nenhuma mensagem final, não há qualquer tipo de ensinamento moral. A história começa de supetão do nada e termina de supetão num nada, deixando o leitor em suspenso e com dúvidas. Para de algum modo “emprestar” a estética, o presente texto assim também será.

 

Descrição da imagem: há sete quadrinhos que mostram um ser parecido com uma semente com duas pernas e uma boca, ele possui uma pequena trouxa amarrada nas costas. O ser olha de um lado pro outro, caminha um pouco, sem rumo, e para.

Fonte: arquivo pessoal

PS: leiam mais quadrinhos brasileiros!

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