A experiência de uma intérprete mirim

26/06/2023 17:31

Por Samanta Schirlei Pacheco

Letras – Libras

Estagiária de Acessibilidade

 

Você conhece o termo CODA? O termo original vem do inglês e é uma abreviação para Child of Deaf Adults. Este termo é usado para representar filho(s) ouvinte(s) de pai, mãe ou ambos, surdos  (CODA, 2013).

 

Descrição da imagem: foto com cor envelhecida. Ao fundo, aparência de uma paisagem do mar encontrando com o céu, em tons de verde. Do meio para cima, as letras C O D A em branco. Em frente a cada letra, encontra-se uma mão realizando a respectiva letra no alfabeto manual em Libras.

 

Nascida de uma família em que a mãe é surda, o pai, irmão e a irmã caçula ouvintes (sim sou a filha do meio), tive contato com a língua de sinais desde muito nova. Segundo relatos de uma tia próxima a mim, desenvolvi a minha sinalização antes da fala em português. Quando meus familiares tinham dificuldade para se comunicar com a minha mãe, eu era chamada para auxiliar na comunicação, mesmo não conhecendo profundamente a língua. Com isso, minha família passou a ter uma dependência maior da minha presença para se fazer entender quando estão conversando. Para eles, é mais difícil passar a mensagem à minha mãe do que compreender o que ela diz, porque ela é surda oralizada e, além disso, usa gestos e mímica para melhor compreensão deles.

 Lembro-me de que quando era criança, acompanhava minha mãe desde reuniões até apresentações em datas comemorativas na minha escola, como por exemplo o dia das mães, páscoa, natal, etc, para que ela pudesse sempre participar. Conforme fui crescendo, continuei a acompanhá-la em outros ambientes como: lojas, para que ela pudesse se comunicar com os vendedores, tirar dúvidas ou encontrar itens que ela estava precisando; acompanhava em consultas médicas, para que não houvesse desentendimento e compreendesse claramente o diagnóstico e as instruções do médico; acompanhava em bancos, para fazer a prova de vida, fazer saques, tirar dúvidas sobre cartões e afins. Em suma, auxiliava ela na maioria dos lugares, pois além de haver barreiras de comunicação, ela não foi alfabetizada, isso acontece com muitos surdos e infelizmente isso gera um grande impacto na vida deles. Continuo acompanhando-a até os dias de hoje, mas com menos frequência. Você deve estar se perguntando o porquê de apenas eu realizar a interpretação nos lugares para ela e com a família. Isso se dá porque somente eu desenvolvi a Libras. Os demais se utilizam de oralização e sinais caseiros, que são sinais criados e convencionados por um(a) surdo(a) e seus familiares como principal meio de comunicação dentro do seu lar.

Sempre acreditei que eu não poderia ficar longe dela e começar a construir minha vida. Tinha receio de que a sociedade não estaria preparada para recebê-la sem a minha presença – bom, ainda não está! Quando ingressei na UFSC, eu saí da casa dos meus pais, e com isso, senti que eu estava cometendo um erro em deixá-la ‘’sozinha’’. Por um tempo, me senti culpada, preocupada e tentava imaginar se mesmo de longe eu conseguiria prestar ajuda e apoio a ela. Foi difícil, mas com o tempo fui entendendo que além de CODA, eu também era um ser, independente da surdez da minha mãe.

Poucas pessoas sabem que para ser intérprete é preciso ter uma formação e não apenas saber a Libras, visto que no processo de comunicação existe uma certa facilidade em construir diálogos, já que quando não conhecemos tal sinal ou termo, podemos simplesmente perguntar ao surdo(a) e assim estabelecer uma troca de conhecimentos. Isso não acontece no processo de tradução e interpretação, por haver a necessidade de conhecer profundamente ambas as línguas, e ter um conhecimento mais amplo sobre a comunidade surda,  desenvolvendo um raciocínio mais rápido e aplicando as técnicas e estratégias de tradução. Além desses exemplos citados, é extremamente importante ter a proficiência na Libras. Conforme a Lei Nº 12.319, de 1 de setembro de 2010, a qual regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras, existem muitos requisitos para se tornar esse profissional e então poder atuar na área que mais se identificar (BRASIL, 2010).

Portanto, trazendo essa bagagem que carrego, associada à falta de intérpretes de Libras em vários espaços, principalmente na área da saúde, decidi seguir esse ramo e me tornar uma profissional. Esse percurso exige muito esforço, dedicação e interesse pela língua e pela comunidade surda. Essa longa jornada faz com que existam tão poucos intérpretes de Libras atualmente. Eu desejo muito que futuramente a Libras finalmente se torne a segunda língua oficial do Brasil e que seja implantada nas escolas desde o ensino infantil assim como a língua inglesa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 12.319, de 1 de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Brasília, DF: Palácio do Planalto, 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12319.htm. Acesso em: 23 jun. 2023.

CODA. Cultura surda. 2013. Disponível em: https://culturasurda.net/2013/02/01/coda/. 2023. Acesso em: 26 jun. 2023.

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