Abordagens Teóricas dos Estudos de Tradução

23/05/2023 07:50

Por Bruno dos Santos Camargo
Letras – Libras
Estagiário de Acessibilidade

O ser humano é tradutor por natureza1. Desde os primórdios da humanidade e da vida em sociedade os indivíduos estão em um constante processo tradutório. Embora não seja possível sabermos quem foi o primeiro indivíduo a traduzir, quais escolhas tradutórias tomou ou a metodologia aplicada durante o processo, visto que é uma atividade intrínseca à vida social e humana, alguns vestígios históricos nos ajudam a compreender, ainda que superficialmente, a magnitude desta área do conhecimento. A Pedra de Rosetta, famoso achado histórico egípcio, é um desses documentos que demonstram que as civilizações remotas, há mais de dois mil anos atrás, já desempenhavam a tradução, antes mesmo da concepção da ciência que hoje intitulamos de traductologia. A partir desta suposta genealogia a tradução permeou países, línguas e autores no mundo inteiro que buscaram conceituar e compreender o que é “tradução”. Destes diferentes entendimentos e perspectivas originaram-se abordagens teóricas da tradução e formas de organização deste conhecimento.

Neste texto, meu objetivo é abordar, em síntese, algumas teorias de tradução sob a ênfase de perspectivas linguísticas, de perspectivas cognitivas, das perspectivas comunicativas e socioculturais, e, por último, as perspectivas filosóficas e hermenêuticas. Esta forma de organização sistêmica proposta por Hurtado Albir (2001) também define a existência de uma quinta ênfase temática: textual, que não será objeto deste material.

Segundo Hurtado Albir (2001, p. 126), a ênfase nas perspectivas linguísticas consiste nas conceituações do processo tradutório, e suas nuances, sob as lentes da Linguística. Em suma, os Estudos Linguísticos da Tradução baseiam-se no conceito de que o ato de traduzir consiste na transferência de significados de um código linguístico para outro4, pois “[…] para o Linguista como para o usuário comum das palavras, o significado de um signo linguístico não é mais que sua tradução por outro signo que lhe pode ser substituído […]” (JAKOBSON, 1987, p. 42, destaques nossos). Por se tratar de uma extensa área do conhecimento, e abranger muitos tópicos, também é possível observar relações entre objetos de pesquisa da Linguística e suas respectivas correntes de conceituação sobre tradução. Embora todos tivessem a mesma ótica linguista, de descrever e comparar, seus autores divergiam quanto aos modelos aplicados. Dentre os apresentados por Hurtado Albir, aqui citam-se três proposições: uma que dá ênfase à semântica no processo tradutório, como defendido por Nida (1975) e Durisin (1972), na década de 70; uma comparativa, da década seguinte, proposta por Guillemin-Flescher (1981) e Chuquet e Paillard (1989); a terceira, que classifica os Estudo da Tradução por diferentes modos de análise linguística, como apontam Catford (1965) e Garnier (1985).

Contudo a tarefa de traduzir é, por si só, uma atividade complexa e que requer diversas competências e capacidades mentais do tradutor. Por isso, diversos autores e pesquisadores passaram a investigar os processos mentais ocorridos no momento da tradução, concebendo assim os Estudos Cognitivos da Tradução. Uma das mais célebres teorias desta perspectiva é conhecida como Teoria Interpretativa da Tradução, ou Teoria dos Sentidos, proposta por Danica Seleskovitch e em seguida por Marianne Lederer. Na perspectiva das autoras, “[…] todo discurso, independente da língua, sempre é entendido como uma função não só do valor inerente a cada palavra dita, mas, também, do conhecimento associado a cada palavra, que denominamos complementos cognitivos” (SELESKOVITCH; LEDERER, 1989, p. 22, destaques das autoras); portanto, a figura do tradutor, seu conhecimento de mundo e seus processos cognitivos tornam-se imprescindíveis para a tradução.

Outra teoria da abordagem cognitiva é a Teoria do Modelo dos Esforços na Interpretação, proposta por Daniel Gile, que explica os esforços aplicados pelo profissional no momento de uma interpretação/tradução. Esta teoria indica a existência de três esforços, e o de coordenação, conhecidos como: esforço de audição e análise, esforço de produção e esforço da memória de curto prazo. Além disso, afirma que o processo tradutório requer gasto de energia mental que vai se esgotando mediante os esforços apresentados e uma vez que o limite foi alcançado a performance deteriora-se  (GILE apud FREIRE, 2000, p.160).

As teorias que, por sua vez, enfatizam a função comunicativa da tradução, levando em consideração os aspectos culturais, contextos e a forma de compreensão do material pelo indivíduo alvo, são classificadas como Estudos Comunicativos e Socioculturais da Tradução. Diversos modelos e linhas de pensamento surgem dentro desta abordagem: autores de ênfase no sociocultural, como Nida e Tabet (1969); teorias funcionalistas da tradução, como defendidas por Reiss e Vermeer (1984); a perspectiva de que a tradução consiste numa equação cultural que deve considerar a cultura do meio, como por Hewson e Martin (1991), dentre outras linhas de pensamento que se enquadram sob o guarda-chuva dos Estudos Comunicativos e Socioculturais (ALBIR, 2001, p.128).

Por fim, os Estudos Filosóficos e Hermenêuticos de Tradução consistem nas percepções de tradução a partir de filosofias e reflexões pós-estruturalistas, de forma a desconstruir padrões, normas e paradigmas que tentam reduzir a tradução a algo simplório e limitado. Todas as demais perspectivas e abordagens teóricas tentam explicar e conceituar o significado de “tradução” utilizando outras áreas do conhecimento, técnicas e rótulos racionais que tendem a limitar a tradução e apresentar uma perspectiva reducionista, motivo pelo qual este movimento desconstrutivista – um dos modelos pós-estruturalistas –  se faz necessário. Sobre Desconstrutivismo, Arrojo (2003) explica: “[…] não é um método, nem uma técnica e nem tampouco um modelo de crítica que possa ser sistematizado e regularmente aplicado a teorias, textos ou conceitos” (ARROJO, 2003, p. 9). Uma das principais correntes teóricas deste movimento é a que surge a partir das reflexões derridiana da desconstrução; porém, além desta, encontram-se autores que partem de outras abordagens: de uma teoria hermenêutica da tradução, como Ortega Arjonilla (1996); de Teorias Canibalistas de Tradução, conforme defendido por De Campos (1972) e Gavronsky (1977); da Teoria da Ética Transversal da Tradução, de Vidal Claramonte (1998), entre outros.

 

 

Nota 1: Considero a reflexão de Octavio Paz (apud Arrojo, 1986, p.11) , “[…] a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não verbal e, em segundo, porque todo signo e toda frase é uma tradução de outro signo e de outra frase”.

 

REFERÊNCIAS

ALBIR, Amparo Hurtado. Traducción y traductología: Introducción a la traductología. Madrid: Cátedra, 2001.

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986.

ARROJO, Rosemary. O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003.

BASSNETT, Susan. Estudos de Tradução: fundamentos de uma disciplina. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

BORDENAVE, Maria Candida. Fundamentos de uma metodologia de ensino da tradução. Tradução em Revista. [Rio de Janeiro], v. 2012, n. 13, p. 18-22, 2012.
CAMPOS, Geir. O que é tradução?. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

FREIRE, Evandro Lisboa. Teoria Interpretativa da Tradução e Teoria dos Modelos dos Esforços na Interpretação: proposições fundamentais e inter-relações. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 2, n. 22, p. 151-174,  2009.

JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikistein, São Paulo: Cultrix, p. 63-72, 1987.

LEDERER, Marianne; SELESKOVITCH, Danica. The Interpretation Process. In: A Systematic Approach to Teaching Interpretation. Paris: European Communities,  1989. p. 22-26.

LEDERER, Marianne. “The Role of Cognitive Complements in Interpreting”. In: BOWEN, David & BOWEN, Margareta (orgs.). Interpreting — Yesterday, Today, and Tomorrow. ATA Monograph Series, v. IV. Binghamton: State University of New York, p. 53-60, 1990.

SANTOS, Ana Gabriela Dutra. O conceito de tradução em artigos científicos dos Estudos da tradução e interpretação de línguas de sinais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras-Libras) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Santa Catarina, 2020.

SOUZA, José Pinheiro de. Teorias da tradução: uma visão integrada. Revista de Letras, v. 12, n. 20, p. 51-67, 1998.

 

 

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