Carolina de Jesus: literatura, língua e resistência

25/10/2022 10:34

Por Laiara Serafim

Letras – Português

Bolsista PET – Letras

 

Neta de escravos e filha de uma lavadeira analfabeta, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é, atualmente, considerada uma das maiores escritoras do país. Nascida no interior de Minas Gerais, na cidade de Sacramento. Carolina, apesar de ter cursado apenas a primeira e a segunda série do ensino fundamental, logo desenvolveu a paixão pela leitura e pela escrita. Aos 16 anos, Carolina mudou-se com sua família para São Paulo, onde trabalhou como catadora de papel e criou os seus três filhos .

Buscando um escape do seu cotidiano, Carolina encontrava na escrita o seu refúgio. Assim, foi nos cadernos velhos encontrados no lixo que Carolina começou a escrever, publicando seus primeiros poemas no ano de 1950 pelo jornal O Defensor. No entanto, sua principal obra trata-se do romance Quarto de despejo: diário de uma favelada, que narra relatos e sensações reais do cotidiano de uma mãe solteira, moradora da favela e catadora de papel.

Descrição da imagem: A imagem é uma foto em preto e branco de Carolina Maria de Jesus. Carolina, uma mulher de pele negra, está escorada em uma parede enquanto olha para a câmera. Sua expressão é séria, mas também doce. Ela veste uma camisa de gola V e usa um lenço na cabeça que cobre todo o seu cabelo que está preso.

Atualmente, obras da autora, como Quarto de Despejo e Diário de Bitita são leituras obrigatórias dos principais vestibulares do país. Entretanto, por um grande período de tempo, suas obras sofreram um apagamento. Apesar de ter recebido reconhecimento e premiações na época do lançamento de Quarto de despejo, após a publicação, Carolina foi praticamente esquecida pelo mercado editorial, o que a levou a trabalhar novamente como catadora de papel. Postumamente, levou anos para que Carolina começasse a receber algum reconhecimento na academia, por toda a importância histórica e cultural de suas obras.

Dentre muitos aspectos singulares que marcam as obras de Carolina estão a relevância histórica, por ser uma das primeiras mulheres negras a publicarem livros no Brasil, e a narrativa dura e cruel da vida real de uma mulher preta e favelada no século XIX. Porém, para além dos aspectos sociais, as obras de Carolina também são marcadas por uma subjetividade sensível, que leva o leitor a questionamentos profundos. Dentro de todos esses aspectos está a linguagem utilizada por Carolina, que colocam em xeque, para a crítica especializada e para os leitores e leitoras, o próprio conceito de língua padrão.

Desde as primeiras publicações de suas obras, a linguagem de Carolina é sempre carregada de polêmicas e discussões dentro da academia, dividindo muitos críticos entre aqueles que defendem a manutenção da linguagem e dos traços de oralidade e aqueles que defendem uma  reforma e correção segundo a norma padrão na escrita de Carolina. Assim, não seria diferente com as novas edições das obras de Carolina Maria de Jesus, da editora Companhia das Letras, publicadas em 2020, que trouxeram à tona algumas polêmicas, ao decidirem, junto ao conselho formado para editar as obras da autora, manter os traços originais das obras. Segundo Luiz Rebinski, em texto escrito para o jornal Rascunho: “[…]Esse foi o gatilho para o início de uma discussão quente que envolve escritores, revisores e críticos de diversas matizes […]. A professora Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), tem se manifestado nas redes sociais criticando a decisão da editora. Para ela, a manutenção dos erros de grafia tem o efeito de “reduzir Carolina Maria de Jesus à sua baixa escolaridade […]”.

Entretanto, segundo Conceição Evaristo e  Vera Eunice de Jesus (2020), no prefácio da nova edição de Casa de Alvenaria , “[…] nossa proposta foi deixar a literatura, a escrita de Carolina poder ser, sem as tantas interferências que aconteceram nas publicações passadas e mesmo em algumas mais recentes”. Regina Dalcastagnè também levanta pontos importantes, como a ideia de não reduzir Carolina a sua baixa escolaridade e não compreender as suas obras como sendo apenas sobre os temas da fome e da miséria. Entretanto, é fundamental ressaltar que as obras de Carolina são também reflexos da vida precária e cercada por preconceitos que ela viveu. Acreditar que manter os textos com a sua escrita original seria, de alguma forma, rebaixar a grande autora que foi Carolina Maria de Jesus, é um reflexo de pensamentos elitistas que circundam a literatura e a academia. A linguagem utilizada por Carolina expressa a sua variação linguística e não apaga em nenhum aspecto a subjetividade e a genialidade da sua escrita. Obras literárias são compostas não somente por seu conteúdo literário, mas também por sua estética, forma e linguagem. Assim como Guimarães Rosa, em o Grande Sertão Veredas, uma linguagem própria que se torna característica do livro; Carolina, da sua forma e com sua singularidade, utiliza a sua variação linguística para escrever as suas obras e criar os seus mecanismos de linguagem.

Por séculos, e até os dias atuais, a língua foi utilizada como um mecanismo de segregação e opressão. Conforme Bagno (1999), o Brasil apresenta uma rica variedade cultural que é manifestada no uso que se faz da língua e, portanto, ocorre no uso uma manifestação das relações de poder, em que, o modo de uso da língua de um determinado grupo dominante é valorizado em detrimento dos demais usos da minorias sociais. Desse modo, as obras de Carolina representam o início de uma quebra com o cenário de segregação e uma resistência aos padrões impostos pelo sistema dominante em defesa do respeito às variações linguísticas pertencentes à população brasileira.

Por fim, fica a forte de recomendação para a leitura das obras de Carolina Maria de Jesus, nos textos originais e também daqueles que possuem a correção ortográfica, para, assim, ampliarmos o debate sobre variação e preconceito linguístico.

 

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49. ed. São Paulo: Loyola, 1999.

OLIVEIRA, Ana Maria Urquiza. A linguagem antirracista no discurso de protesto de Carolina Maria de Jesus –: variação linguística como marca de estilo e identidade. In: SÁ, Edmilson José de (org.). Apenas três…: discussões temáticas em língua, literatura e ensino. Arcoverde: Kandarus, 2021. p. 100-118. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Ana-Luiza-Couto/publication/353669637_A_escrita_ortografica_de_candidatos_do_ENEM_um_estudo_reflexivo/links/6109825a1ca20f6f86fcb1ae/A-escrita-ortografica-de-candidatos-do-ENEM-um-estudo-reflexivo.pdf#page=10. . Acesso em: 14 out. 2022.

PRADO, Luiz. Carolina Maria de Jesus é referência para quem contesta o poder. Jornal da USP, 2021 Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/carolina-maria-de-jesus-e-referencia-para-quem-contesta-o-poder/. Acesso em: 14 out. 2022.

REBINSKI, Luiz. Novas edições reacendem polêmicas sobre Carolina Maria de Jesus. Jornal Rascunho, 2021. Disponível em: https://rascunho.com.br/noticias/novas-edicoes-reascendem-polemicas-sobre-carolina-maria-de-jesus.  Acesso em: 16 out. 2022..

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