O papel da memória como ato político

05/03/2025 13:10

Por Hanna Boassi

Bolsista PET – Letras | CNPq

Letras – Português

 

O que não foi dito também tem significado.

-Eni Orlandi

 

O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional nesse último domingo (2). A narrativa acompanha a história de Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, durante o período da Ditadura Militar no Brasil. A construção de memória no filme pode ser analisada a partir da relação entre o discurso, a narrativa cinematográfica e o contexto histórico em que a história se insere. A memória, no contexto do filme, não é apenas um resgate do passado, mas uma reconstrução subjetiva que se dá na interseção entre os testemunhos, os documentos e as marcas discursivas deixadas pelo período ditatorial.

Ainda Estou Aqui não apenas relata a dor e a luta de Eunice, mas evidência como a ausência se manifesta na memória individual e coletiva. O desaparecimento de Rubens Paiva não é apenas um evento trágico pessoal, mas uma lacuna histórica que reverbera até os tempos atuais, revelando as tensões entre o esquecimento imposto e a resistência em manter viva a lembrança de pessoas, que como Rubens, foram silenciadas.  A estética do filme reforça essa construção ao utilizar uma narrativa fragmentada, intercalando cenas de arquivo, depoimentos e reconstruções ficcionais para dar forma à memória de Eunice. É nesta materialidade que podemos pensar uma memória discursiva:

Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador. […] Não é de se admirar, nessas condições, que a ideia de uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que desempenhou o papel de ponto de referência” (Pêcheux, p. 50, 1999).

No caso de Eunice, essa disputa adquire uma dimensão mais complexa diante do Alzheimer; ao ser abordada essa condição no filme, reforça-se a fragilidade de uma memória individual e a necessidade da construção de uma memória coletiva que resista ao esquecimento. Sua luta não desaparece junto de sua memória, pois sua trajetória se inscreve na memória coletiva e no discurso público, que mantém viva a recordação de Rubens Paiva e de tantas outras vítimas da Ditadura. Em sua cena final, Fernanda Montenegro, ao interpretar Eunice já em estado avançado do Alzheimer, diante de uma televisão onde se passa uma reportagem sobre seu marido desaparecido, não pronuncia uma palavra, mas no seu olhar observamos a recuperação de uma memória que, embora fragmentada e instável, ainda resiste – ainda está ali. O silêncio de Eunice não é vazio, mas carrega significado.

Em Maio de 68, Eni Orlandi aponta que a forma sujeito-histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso (Orlando, 1999, p. 61); essa forma dialoga com o fato de que, Eunice Paiva, tanto em sua vida quanto em sua representação no filme, encarna essa contradição. Se, por um lado, sua identidade pessoal se dissolve devido à doença, por outro, sua história se mantém como parte de um coletivo que resiste ao apagamento. Ainda Estou Aqui transcende a história pessoal de Eunice e Rubens Paiva e se insere em um debate mais amplo sobre como lembrar é um ato político. O filme reafirma que a memória não é apenas um resgate do passado, mas um campo de disputa no presente, onde diferentes narrativas se confrontam para garantir que o que for perdido não se torne definitivo.

 

REFERÊNCIAS

PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da Memória. Tradução e Introdução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.

ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.). Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999, p.59-71.

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