A romantização da ânsia de ser: uma leitura do universo vampiresco

04/11/2024 14:26

Por Mahara Soares

Bolsista PET-Letras

Letras-Português

 

 

Descrição de imagem: o ator Tom Cruise, caracterizado do personagem Lestat, inclina-se sobre uma mulher deitada num sofá vermelho. A mulher está com o colo à mostra e aparenta estar desmaiada.

Fonte: Entrevista com o Vampiro (1994).

O mistério intrigante que envolve a figura folclórica do vampiro acompanha a cultura humana desde seus primórdios, mas é durante o século XVIII que o mito ganha força nas superstições da Europa Ocidental. O romance publicado em 1897 por Bram Stoker, Drácula, marca a consolidação do arquétipo vampiresco na ficção moderna. A partir do referido período, a imagem do vampiro não mais se associa majoritariamente a criaturas deformadas, corpos decompostos e feras demoníacas, mas se estabelece como um ser aprimorado, uma mutação sobrenatural do homem comum, uma versão indestrutível, inalcançável e imortal daquilo que somos e conhecemos. O próprio Conde é descrito por Harker como um anfitrião cordial, detentor de posses ostensivas, um senhor deveras culto, com extenso conhecimento acerca de variados assuntos. A peculiaridade de sua natureza, inclusive, demora a ser desvendada pelo hóspede.

O estereótipo vampírico, ao longo dos séculos, aproxima-se cada vez mais do humano e, principalmente, do elegante, passando a significar poder, luxúria e sofisticação. A obra cinematográfica Entrevista com o Vampiro, dirigida por Neil Jordan e baseada no romance de Anne Rice, lançada em 1994, é uma síntese clara da visão moderna sobre o tema. Suas personagens vivem na alta sociedade, cercadas de bens materiais e dos mais competentes funcionários, professores e serviçais. Além disso, mais do que poder monetário, possuem grande poder físico e psíquico. Já no início do filme, ao oferecer a Louis imortalidade, Lestat promete ao jovem, que fora assolado por uma enorme tristeza, curar sua dor e potencializar sua existência de uma forma inimaginável:

A vida não tem mais significado, tem? O vinho não tem gosto. A comida o deixa enjoado. Parece não haver razão para nada disso, certo? E se eu pudesse devolver para você? Arrancar a dor e lhe dar outra vida? Uma que você jamais imaginaria. E seria para sempre. E doença e morte jamais o tocariam de novo. (Entrevista…, 2008)

Apesar da prática do vampirismo representar imenso perigo, de ser motivo de horror e de temor aos humanos frágeis e sujeitos ao acaso, a ínfima possibilidade de tornar-se mais forte, capaz e potente traz à tona uma esperança completamente irracional. O que antes era um símbolo monstruoso de terror, agora é considerado um símbolo de desejo. Os leitores e espectadores da ficção vampiresca contemporânea, no fundo, torcem para que, de alguma maneira, seja possível ser mais do que são, ainda que isso lhes custe suas vidas. Chega-se, então, à busca eterna do homem por algo que preencha o vazio de sua existência.

A romantização do vampirismo também pode ser observada pelas mudanças no retrato físico das personagens: em Drácula (1897, p. 29), Harker descreve a aparência do Conde como “um velho alto, barbeado e com um longo bigode branco”, os traços faciais detalhados são fortemente marcados e montam uma imagem exótica; já em Entrevista com o Vampiro (1994), os personagens principais foram interpretados pelos atores Tom Cruise e Brad Pitt, nomes reconhecidos na mídia por sua beleza. Exemplo da estética mais recente, o filme dirigido por Catherine Hardwicke em 2008 (e adaptado dos romances de Stephenie Meyer), Crepúsculo, conta com Robert Pattinson interpretando um dos vampiros protagonistas, o ator foi eleito o homem mais bonito do mundo pela revista Vanity Fair no ano seguinte.

Descrição de imagens: na primeira foto, Gary Oldman interpreta o Conde Drácula numa releitura cinematográfica do livro de Bram Stoker, Drácula. O ator caracteriza-se como um velho de pele muito branca, com cabelos grisalhos e escassos na parte frontal da cabeça, sua boca é fina e rubra. O personagem está lambendo uma lâmina de barbear, a mão que a segura tem unhas compridas. Fonte: Drácula de Bram Stoker (1992). Na segunda foto, o ator Robert Pattinson interpreta Edward Cullen, ele tem o tom de pele claro, cabelo castanho curto e olhos amarelados.

Fonte: Eclipse (2010).

 

Apesar de tamanha idealização do ser vampiresco na ficção, seus criadores ainda são meros humanos, deixam escapar suas biografias em suas criaturas, e é daí que surge uma contraditória ironia: nem mesmo os vampiros estão livres do vazio. Louis, em Entrevista…, passa por um conflito interno durante seus 200 anos; depois de ter procurado por respostas pelo mundo inteiro, suas perguntas permanecem em suspenso. Stephenie Meyer permite que os leitores tenham acesso à mente de Edward Cullen em seu último livro, intitulado Sol da meia-noite, e mostra ao público as dificuldades que o vampiro enfrenta ao refletir sobre o bem e o mal; sobre a culpa; sobre a vida e a morte; e sobre a razão de sua própria existência.

Eu odiava essa garota frágil ao meu lado, odiava-a com todo o fervor com que me apeguei ao meu antigo eu, ao meu amor pela minha família, aos meus sonhos de ser algo melhor do que eu era […]. Embora a odiasse, eu estava ciente de que meu ódio era injustificável. Sabia que o que eu odiava na verdade era eu mesmo. E eu me odiaria muito mais quando ela estivesse morta (Meyer, 2020, p. 23-25).

Até o poderosíssimo Conde Drácula revela, em seus últimos momentos, o alívio de, enfim, não ter mais de ser o monstro que era. “Enquanto viver, terei a alegria de lembrar que, no momento da dissolução final, houve no rosto do Conde uma expressão de paz como jamais supus que pudesse haver” (Stoker, 2019, p. 429). Resta-nos, então, meros humanos, mortais à mercê do destino, a ânsia de ser.

 

REFERÊNCIAS

CREPÚSCULO. Direção de Catherine Hardwicke. S.I.: Summit Entertainment, 2008. (122 min.), son., color.

ENTREVISTA com o Vampiro. Direção de Neil Jordan. S.I.: Warner Bros. Entertainment, 1994. (123 min.), son., color.

MEYER, Stephenie. Sol da meia-noite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

ROBERT Pattinson, de ‘Crepúsculo’, é eleito o homem mais bonito do mundo por revista. O Globo. Rio de Janeiro, p. 1. jun. 2009. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/robert-pattinson-de-crepusculo-eleito-homem-mais-bonito-do-mundo-por-revista-3191553. Acesso em: 03 nov. 2024.

 STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Editora Pandorga, 2019.

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