A sátira à ganância humana e aos velhos costumes em contos de Lima Barreto e Shirley Jackson

02/10/2024 08:24

Por Ingryd Giovanna e Manoela Raymundo

Bolsistas PET-Letras

Letras-Inglês

Você já parou para pensar em que direção nosso mundo está indo? Em alguns momentos, práticas que seguimos sem questionar podem estar moldando a sociedade de formas que não percebemos. Frequentemente, mantemos hábitos sem considerar plenamente suas consequências. E se as ações carregassem um peso maior do que imaginamos?

Nos contos “A nova Califórnia”,  de Lima Barreto, e “A Loteria”, de Shirley Jackson, somos levados a explorar estas questões. Ambas histórias mostram sociedades a princípio vivendo num cotidiano pacífico, com as pessoas seguindo suas vidas e suas tradições. No entanto, à medida em que os eventos se desenrolam, percebemos que algumas práticas são sombrias e que os personagens não realizam reflexões críticas e revelam desprezo pelas consequências de seus atos.

Descrição da imagem: Ilustração com fundo amarelo; no meio da imagem, o desenho de um crânio humano apoiado em pilhas de dinheiro; ao lado, há o esqueleto de duas mãos. Fonte: Ilustração retirada do Google Imagens.

 

“A Nova Califórnia”, conto de Lima Barreto escrito em 1910, nos apresenta a história da pacata cidade de Tubiacanga, no interior do Rio de Janeiro. Tudo acontece quando a cidade recebe um novo habitante, Raimundo Flamel, um homem reservado e bem apessoado, julgado sábio e famoso pelos outros moradores da cidade pela quantidade de cartas do mundo todo que recebia e pelos apetrechos não usuais que possuía em sua casa. Certo dia, o Doutor Flamel visita o farmacêutico Bastos, dizendo ter feito uma grande descoberta; antes de revelar para o mundo sábio, precisava de 3 testemunhas conceituadas para presenciarem sua experiência. Poucos dias depois, porém, o químico, após apresentar seus testes, sai de Tubiacanga e nunca mais é visto.

Pouco tempo após a saída do químico da cidade, a pacífica Tubiacanga sofreria com casos de roubo de covas. Desde o mais até o menos religioso, do mais novo até o mais velho, achavam um sacrilégio, comparando com casos criminais que ocorreram no Rio de Janeiro. Logo, todos da cidade procuravam por quem estava profanando o “Sossego”, vigiando o cemitério à procura do culpado. Porém, os desejos pessoais de cada um na cidade eram mais fortes do que qualquer crença ou ideal que os mantinha protegendo o cemitério. No dia seguinte à invasão aos cemitério, Tubiacanga amanheceu com mais mortos do que “Sossego” tivera nas últimas décadas.

Descrição da imagem: Ilustração preta e branca de várias pessoas brigando por ossos.

Fonte: imagem retirada do Google Imagens

“A Nova Califórnia” é um texto humorístico de Lima Barreto, com referências a outras pessoas e acontecimentos e mensagens de como a ganância pode corromper o homem. O título é uma sátira à Corrida do Ouro, que aconteceu nos Estados Unidos no século XIX, quando mais de 300 mil pessoas migraram e imigraram para a Califórnia para conseguir minerar ouro. Quanto ao químico, Raimundo Flamel é uma referência direta a dois famosos sábios, Raimundo Lúlio, escritor e filósofo catalão, e Nicolas Flamel, alquimista francês conhecido por lendas de ter fabricado a pedra filosofal e ter transmutado ouro.

O conto satiriza a ganância do ser humano e como centenas de pessoas se voltariam umas contra as outras pelo ouro, desde adultos brigando e machucando uns aos outros até crianças revirando o túmulo de parentes à procura dos maiores ossos. Na crítica à ambição feita por Barreto, os parágrafos onde são descritos os pensamentos, vontades e desejos dos moradores são fortes e banhados de hipocrisia, mas não foram adaptados para a edição do texto lançado em 2010 pela Companhia das Letras.

Descrição da imagem: Ilustração de um grupo de crianças empilhando pedras e, ao fundo, uma roda de adultos conversando.

fonte: Imagem retirada do google Imagens

 

Já o conto “A Loteria”, escrito por Shirley Jackson e publicado pela primeira vez em 1948, questiona a moralidade das tradições e desafia as convenções sociais. Em uma pequena cidade “agraciada” por uma colheita abundante, um belo dia ensolarado se inicia. As crianças, entretidas, conversam sobre a escola enquanto empilham cuidadosamente pedras selecionadas, optando pelas mais refinadas e redondas. Adultos e jovens seguem em direção à praça, conversando e trocando fofocas. Ali, irá acontecer o sorteio anual conhecido como “A Loteria”. Este evento promete ser breve, pois todos precisam voltar para casa, preparar o almoço e seguir com suas obrigações diárias.

Reunidos na praça, ao redor de uma velha caixa preta, deteriorada pelo tempo remete à origem da tradição. Alguns moradores começam a questionar a continuidade do sorteio, mencionando que cidades vizinhas já aboliram a prática. Nesse momento, o Sr. Warner intervém, afirmando que os jovens não compreendem a verdadeira importância da Loteria, que supostamente garante a colheita abundante da cidade.

Descrição da imagem: Ilustração de uma caixa preta com a tampa aberta e diversos papéis dobrados dentro.

fonte: Imagem retirada do google Imagens

À medida em que o sorteio se inicia, a narrativa revela que grande parte da tradição foi esquecida ou descartada. Esse esquecimento coletivo indica como a comunidade se afastou das origens e significados que sustentavam essa prática, sem uma análise crítica do que estão fazendo e por que o fazem. A tradição é realizada com um automatismo baseado na crença de que “sempre foi assim e sempre deve ser assim”. Dessa maneira, a pressão para manter a tradição impede a análise crítica sobre as práticas coletivas.

Conforme o clima de brincadeira e fofoca se dissipa e novas questões emergem, os moradores se tornam inquietos, passando a língua nos lábios. A atmosfera tensa leva o leitor a se perguntar se essa loteria é realmente um evento agradável ou se carrega um peso sombrio. Ao final, somos levados a refletir: para que servem as tradições? Quais delas são desumanas? E, ao tomarmos consciência dessas questões, devemos desconsiderá-las ou reconsiderá-las?

Como se vê, ambas histórias oferecem uma crítica de como a ganância e a conformidade podem levar a consequências desastrosas. “A nova Califórnia” nos alerta sobre os perigos da ambição desmedida, quando os valores morais se desfazem diante da busca por lucro, enquanto “A Loteria” desafia a aceitação inquestionável das tradições, mostrando que práticas enraizadas podem se tornar insustentáveis e cruéis. Dessa forma, as provocações de Barreto e Jackson nos instiga a agir com consciência e responsabilidade em relação às escolhas que fazemos como sociedade.

 

REFERÊNCIAS

JACKSON, Shirley. A Loteria. Nova Iorque: The New Yorker, 1948.

BARRETO, Lima. A Nova Califórnia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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