Adaptação de obras literárias: “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles
Por Daniely de Lavega
Bolsista PET Letras – CNPq
Letras Português
A relação entre a literatura e o cinema gera debates acalorados entre os críticos. Há movimentos que defendem a “autonomia do cinema”, assim como existem os que consideram a literatura como “arte verdadeira”. Entretanto, também há teóricos que não julgam essa relação como prejudicial para algum dos lados. Segundo Amorim (2010), tanto a literatura quanto o cinema são estruturas da linguagem, bem como ambas as artes se constituem, principalmente, por meio do gênero narrativo. A literatura e o cinema se assemelham por serem artes narrativas, que contam uma história, sendo justificável que o cinema tenha se apropriado da literatura para impulsionar seu próprio desenvolvimento.
Hutcheon (2011) argumenta que, atualmente, as adaptações estão em todos os lugares: na televisão, no cinema, no teatro, nos quadrinhos, nos videogames, em parques temáticos e muito mais. Em seu livro Uma teoria da adaptação, a autora também levanta uma discussão importante sobre a tendência de considerar as adaptações como inferiores. De fato, há um pensamento disseminado de que as adaptações não alcançam a consistência artística das obras literárias. Em vista disso, a autora sugere os seguintes questionamentos:
Se as adaptações são, por definição, criações tão inferiores e secundárias, por que estão assim presentes em nossa cultura e, de fato, em número cada vez maior? Por que, de acordo com as estatísticas de 1992, 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações? Por que as adaptações totalizam 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards? (Hutcheon, 2011, p. 24).
Contudo, o que é, afinal, uma adaptação? De acordo com os dicionários, o termo “adaptar” significa ajustar, alterar, tornar adequado. Sendo assim, Hutcheon (2011) propõe o estudo da adaptação a partir de três perspectivas diferentes: como uma entidade ou produto formal, como um processo de criação ou como um processo de recepção.
Como uma entidade ou produto formal, a adaptação pode ser vista como a transposição de uma obra para outro meio ou formato. Essa “transcodificação” pode resultar em uma mudança de perspectiva, ou seja, em recontar a história sob um novo ponto de vista. Como um processo de recriação, a adaptação envolve tanto a (re)interpretação quanto a (re)criação da obra original, permitindo uma apropriação do texto-fonte e sua reinvenção. Por fim, enquanto processo de recepção, a adaptação pode ser entendida como uma forma de intertextualidade, ou seja, um palimpsesto.
Em vista disso, adaptar um texto literário seria uma forma de analisá-lo ou interpretá-lo, permitindo a criação de diversas adaptações a partir de uma única fonte. Portanto, uma adaptação cinematográfica seria uma leitura de uma obra literária, que permite novas interpretações do público e não deve ser definida como inferior ao texto-base (Amorim 2010).
Com fundamento nisso, refletindo sobre a adaptação como leitura, seria possível discutir a qualidade da adaptação em relação ao texto original? Seria possível utilizar o argumento da crítica contemporânea de que “o filme não é fiel ao livro”?
Para Hutcheon (2011), adaptar não tem relação com fidelidade. Sendo assim, fidelidade não deve ser um parâmetro de julgamento para as obras adaptadas. A autora salienta que, por um longo tempo, esse critério foi comum para discutir as obras adaptadas, principalmente quando se tratava de obras literárias canônicas. Já para Amorim (2010), o mito da fidelidade pode ser classificado como preconceito, considerando que todas as adaptações são leituras. Portanto, exigir fidelidade seria como exigir uma leitura única e universal de um texto literário.
Para exemplificar o que foi discutido, podemos analisar o romance As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973. Tendo como cenário o cotidiano urbano de São Paulo durante a Ditadura Militar (1964-1985), o livro apresenta a trajetória de três jovens mulheres com personalidades e objetivos muito distintos. A narrativa é conduzida de forma alternada entre um narrador onisciente e três narradoras-personagens.
Ana Clara Conceição, uma jovem de origem pobre, mira o casamento como uma forma de melhorar sua posição social, apesar de seus problemas com a dependência química. Lia de Mello Schultz, uma ativista social, se empenha em libertar seu namorado, que está detido pela Ditadura Militar. Enquanto isso, Lorena Vaz Leme, que vem de uma família abastada, busca superar seus traumas pessoais por meio de um relacionamento com um homem casado.
A adaptação para o cinema, feita por Emiliano Ribeiro e lançada em 1995, oferece uma visão diferente das protagonistas, refletindo a leitura particular do diretor ao transformar o romance em filme.
Descrição da imagem: Drica Moraes, Adriana Esteves e Cláudia Liz em uma cena da adaptação de As Meninas. Na imagem, a personagem de Adriana Esteves está dentro de uma banheira, enquanto Drica Moraes e Cláudia Liz permanecem próximas, interagindo com ela em uma conversa intensa. Imagem encontrada no Google Imagens.
No filme, Lia é interpretada por Drica Moraes, uma atriz magra, alta e branca, contrastando com a descrição da personagem no romance, que é gorda, desleixada e tem um cabelo indomável. Lorena, vivida por Adriana Esteves, demonstra uma personalidade mais racional do que no livro. Já Ana Clara, interpretada por Cláudia Liz, é a que mais se assemelha à personagem original: muito vaidosa e frequentemente vista sob a influência de álcool e drogas ao longo do filme.
No livro, a alternância entre as narradoras dá origem a uma narrativa fragmentada, criando uma estrutura mais caótica e confusa. Em contrapartida, na adaptação para o cinema, a história segue um formato mais linear, tanto em termos de tempo quanto de espaço, uma vez que o ponto de vista é externo. Isso torna o contexto histórico, social e político mais explícito e fácil de compreender. Dessa maneira, a adaptação do diretor enfatiza a repressão e a violência que marcaram o período da Ditadura Militar.
É relevante notar que o filme inclui cenas que não estão presentes no romance. A exclusão de algumas cenas e a adição de outras, que retratam a brutalidade da Ditadura Militar, reforçam a ideia de que a intenção de Emiliano Ribeiro é justamente denunciar essa realidade. No entanto, ambas as obras tratam com maestria a relação entre o contexto histórico e o desenvolvimento das personagens.
Podemos concluir que tanto a literatura quanto o cinema se encontram no ato de contar histórias, porém são formas autônomas de expressão (Amorim, 2010). Devido à tentativa de atingir a burguesia, o cinema se apropriou de obras literárias canônicas como textos-fontes, tornando a adaptação parte de nossa cultura contemporânea. Por último, vimos a questão da fidelidade da adaptação em relação à obra literária, que se revelou um mito quando contemplamos o filme como uma leitura do texto-fonte, uma leitura que é suscetível a múltiplas interpretações. Portanto, a adaptação deve ser vista como algo diferente da mera reprodução.
REFERÊNCIAS
AMORIM, Marcel Álvaro de. Ver um livro, ler um filme: sobre a tradução/adaptação de obras literárias para o cinema como prática de leitura. In: XIV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA, 4., 2010, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2010. p. 1725-1739. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/publicacoes.html. Acesso em: 2 jul. 2023.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.
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