O inominável em “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, e em “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes: distanciamentos e aproximações

18/04/2024 10:55

Por Maysa da Silva Monteiro 

Voluntária – PET-Letras

Letras Português

 

Violência. Palavra com nove letras que retrata os horrores de coisas tantas. Coisas, absurdos, injustiças e a perpetuação dessas injustiças. Infelizmente, esses vocábulos retratam ela: a realidade. A realidade que foi escancarada em duas obras de autores portugueses: em “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago; e em “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes. Cada um à sua maneira, ambos abordaram os horrores infindáveis da natureza humana. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos” (Saramago, 2017, p. 262), diz uma personagem no livro de Saramago, que, por sua vez, pode se estender para a obra de Lobo Antunes. Ambos trabalham com a dualidade do ser humano, as controvérsias e com o paradoxo da própria existência. O que é o ser humano, afinal?

Em “Ensaio sobre a cegueira”, é um ser lutando pela sobrevivência em meio ao caos, a fome e a violência – de todas as formas. Em “Os cus de Judas”, também. A trama da primeira história retrata uma sociedade assolada por uma “cegueira branca”, como se estivessem mergulhados em um mar de leite. A partir de então, os atingidos por essa epidemia são isolados e mantidos em um manicômio para minimizar a contaminação e, principalmente – conforme o pensamento do exército que cuidava do local – matarem um aos outros na tentativa de sobrevivência. Já na segunda história, Lobo Antunes escreve sobre suas experiências na guerra em Angola, enquanto auxiliava as tropas portuguesas. Então, ele começa a contar suas histórias no aguardo de sua refeição em um restaurante, relatando o horror da guerra e as atrocidades lá cometidas.

Mesmo as duas obras relatando o inominável que existe dentro do ser humano, elas abordam histórias distintas. A história de Saramago acontece em uma sociedade sem denominação, sem tempo, sem espaço. Suas próprias personagens não têm nomes: são chamadas conforme suas características, demonstrando a representação do homem pós-moderno e a fragilidade das identidades nos romances de Saramago. Essa narrativa pode ter acontecido em qualquer lugar, em qualquer tempo, com quaisquer pessoas. Lobo Antunes, por sua vez, narra também as barbáries, mas agora das guerras. Especificamente, ele retrata a guerra angolana – que durou 13 anos, de 1961 até 1974. É um livro sobre alienação, memória, identidade, guerra, solidão e traumas profundos da guerra colonial.

No entanto, apesar de possuírem histórias distintas, as duas narrativas aproximam-se ao expor o mais íntimo da vida: o inominável que escorre pelas palavras e concretiza-se – ou não – em cada ser humano. Na peça teatral “Ficções”, Vera Holtz ironiza o homo sapiens que “não sabe”. Esse “não saber” é a face escancarada das duas ficções aqui apresentadas que são cada vez mais reais: “Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes” (Antunes, 2014, p. 13) – esse trecho da obra de Antunes reflete a solidão e a insignificância da humanidade, que, a partir do encontro com o próprio eu, espanta-se. Relacionado com Saramago, esse é o inominável.

Quanto às convergências, pode-se pensar na época em que as obras foram lançadas. “Ensaio sobre a cegueira”, 1995; “Os cus de Judas”, 1979. Porém, algo os aproxima mais: a escrita. Em Saramago é usada de uma forma não canônica; falta no texto o travessão para identificar a fala das personagens, havendo uma multiplicidade de vozes ao decorrer da história sem identificação exata e marcação da troca de vozes, começando a fala com letra maiúscula, apenas. Quase sem pontos finais, a trama é cadenciada por vírgulas, evidenciando a reinvenção da pontuação pelo escritor, que adapta a grafia de acordo o ritmo prosódico. Saramago descobre sentidos ocultos e desconhecidos na palavra, na frase, no livro, fazendo o leitor também descobrir novos sentidos ocultos dentro de si. Isso evidencia também a forma que a obra é estruturada: sem capítulos. O enredo desenvolve-se de maneira única e não há nomes nos capítulos que se desenrolam por mais de 300 páginas: que chocam, espantam e comovem.

A escrita em “Os cus de Judas” contém parágrafos intermináveis, compostos por períodos longos e com uma pontuação “extravagante”. O narrador-personagem utiliza muitas figuras de linguagem e utiliza muitos adjetivos. Cada capítulo é intitulado por uma letra do alfabeto: de A a Z, no entanto, a narrativa não demonstra-se tão linear assim. As memórias do narrador misturam-se entre passado e presente na voz de alguém que esteve no epicentro do confronto e experimentou os atravessamentos causados por ele, assim como a História (essa com H maiúsculo) de Lobo Antunes. O autor foi um médico psiquiatra que realmente foi para as batalhas em África, beirando, assim, a uma espécie de “autoficção” – embora haja percepção de que ao criar-se a si mesmo, cria-se <<outro>>. A história transita pelo tempo presente – esse que o narrador encontra-se -, pelo tempo da guerra e pelo tempo da infância, numa fusão que depende das memórias do narrador.

Ademais, essa semelhança entre a escrita de Saramago e Lobo Antunes gerou certo estranhamento entre eles, mas a verdade é que, ambos com suas peculiaridades, marcaram a literatura portuguesa. Em questões ideológicas, José Saramago se uniu ao Partido Comunista Português em 1969 e sempre foi mais engajado. Em sua obra aqui estudada, lança uma crítica e uma reflexão sobre a pós-modernidade e como a sociedade está perdendo cada vez mais a capacidade de realmente observar a realidade. Nas palavras do autor, “Será que, neste tempo de violência e frivolidade, as ‘grandes questões’ continuam a roer a alma, ou o espírito, ou a inteligência (‘moer o juízo’ é uma expressão com muito mais força) daqueles que não querem conformar-se?”, trazendo à tona sua crítica. Lobo Antunes não era tão engajado politicamente quanto o escrito anterior. Sua família, inclusive, apoiava o governo de Salazar. Em meio a esse paradoxo em que viveu, refletiu suas indagações e questionamentos sobre a época da guerra em sua escrita.

Entre diferenças, semelhanças, temáticas, assuntos, escritas e abordagens, esses dois autores concretizam-se e fazem o leitor pensar. Seria esse o grande objetivo da Literatura? Por fim, nas palavras de Lobo Antunes, “O que seria de nós, não é, se fôssemos, de fato, felizes?” (Antunes, 2014, p. 85). Essa literatura parece dilacerar, com a indagação, todas as veias e vísceras humanas, assim como essas obras dilaceraram.

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, A. L. Os cus de judas. Ed. 1. Rio de Janeiro: Alfaguara2014.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

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