As facetas da estrela em Clarice Lispector e Suzana Amaral

28/05/2023 13:59

Por Sofia Quarezemin

Bolsista PET-Letras

Letras Português

Clarice Lispector publica em 1977 “A hora da estrela”, um romance sobre Macabéa, a nordestina, miserável em todos os sentidos, que migra para o Rio de Janeiro; e seu autor, Rodrigo S.M, um homem indistinto, que não faz parte de nenhum grupo social, que se diverte e lacera no árduo papel de narrador.

Em 1985, Suzana Amaral traduz o romance para o cinema deixando de fora o escritor da personagem, e nisso se impõe uma questão: como se dão as dinâmicas da narração em diferentes modalidades, ou seja, na literatura e no cinema? É previsível que a transposição do texto em filme implica em mudanças formais e que a ausência da narração de S.M gera a necessidade de se empregar recursos que fogem à proposta de Clarice. Em “A hora da Estrela”, de Suzana Amaral, a narração é objeto não do autor, aqui ausente, mas sim de agentes como as personagens coadjuvantes e a direção cinematográfica, ou seja, o foco narrativo e a linha temporal da trama.

Descrição da imagem: uma mulher de meia idade, Macabéa, está sentada num banco de praça feito de concreto. Ela usa uma camisa com fundo branco e estampada com pequenas flores azuis. Veste também uma saia e segura uma flor vermelha. Seu cabelo é preto, está penteado. Atrás dela, há  um jardim de um verde escuro. A imagem é um frame do filme de Suzana Amaral.

A diferença que impera entre as duas modalidades narrativas é a necessidade de representação mimética na produção de Suzana Amaral, tão negada por Clarice Lispector, que de acordo com Colm Tóibín (2017), escreve de forma pouco conveniente aos moldes narrativos tradicionais e cria uma narração pouco literária, mas densamente consciente. “É difícil decidir por quem lamentar mais, se por Macabéa ou pelo narrador, se pela inocente vítima da vida ou pela altamente cônscia vítima de sua própria derrota” (p. 169).

No romance, a autora se curva sobre uma experimentação linguística que só é possível por meio da presença de Rodrigo S.M, narrador que sofre os efeitos da própria narrativa, que dialoga e apresenta as problemáticas do que é escrever uma personagem a quem ama e odeia. Além de tratar sobre as complicações da escrita e das implicações dela sobre o escritor, discorre sobre o cansaço, a angústia, a ansiedade e a necessidade de escrever.

Noemi Jaffe, na palestra “Clarice Lispector e o Efeito do Estranhamento” (2017), conceitua estranho como aquilo que não pertence, que vem de fora, e define que algo só pode ser estranho quando comparado ao que se considera normal. O que Clarice faz, ao criar Macabéa como agente passiva da vida, é pô-la em comparação à normalidade do corpo social. Assim, a nordestina, na inércia de pouco falar, pouco querer e pouco agir, é o oposto radicalizado da concepção de ser e atuar no mundo, e assim é pela visão e julgamento do outro.

Sob essa lógica, o efeito de estranhamento na produção cinematográfica se dá pela ótica dos demais personagens e do espectador, intermediado pelo foco da câmera. Um dos artifícios empregados pela diretora é o afastamento de Macabéa da vida em sociedade: seu ciclo de convívio é restrito a seis pessoas, ela não sabe se comunicar e se coloca sempre em lugares ocos, como praças, parques, ruas e becos vazios, tendo quase mais contato com seres não humanos do que com gente: o hipopótamo do zoológico, as moscas, o gato, a Rádio Relógio, os anúncios de jornal, os parafusos e o metrô. Ainda, a descrição das características de Macabéa é resultado do juízo emitido pelas poucas personagens que com ela convivem. O que no romance é exposto ao leitor por Rodrigo S.M., no filme é papel das demais personagens, como Maria das Dores e Maria do Carmo (16:10), “Eu acho ela meio esquisita. […] ela tem uma cara de sonsa. O cheiro dela é que é meio…(expressão de nojo)”, ou Glória (19:45), “Também, com essa cara… Você é muito desbotada, Macabéa.” e as demais falas que a subjugam como inadequada. Para explicitar a falta como pilar fundacional da protagonista, cabe aos demais personagens interagirem com a sua miséria de sorte, de beleza, de palavras, de modos, de dinheiro e de futuro. O que falta à Macabéa são meios de viver, e o espectador obtém consciência disso sem a intermediação de Rodrigo S.M, por meio do movimento de Suzana Amaral, que se vale das personagens coadjuvantes para caracterizar a protagonista, ancorando-se na constatação de Rodrigo S.M.: “Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico – e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto.” (LISPECTOR, 2017, p.91)

Há, ainda, outro artifício da narração utilizado na construção da visão do espectador sobre a personagem narrada: as articulações do foco narrativo. Ao longo da maior parte do filme, a câmera se oculta, quase como uma intrusa que fica ao canto da sala e somente capta os fatos, como se proporcionasse ao espectador assistir à vida da nordestina em tempo real. Esse é o efeito do estranhamento, que se forma com a oposição e o olhar alheio, em terceira pessoa, posicionando o observador como estão posicionadas as personagens que interagem com Macabéa no enredo. Por outro lado, em alguns momentos a câmera assume a visão de Macabéa ou se coloca muito próxima a ela, quase incorporando a sua visão, provocando a identificação do espectador. Por meio dessa articulação, pode-se sentir como Macabéa: um nada, um vazio e uma dor que dói em tudo e constantemente, o que se justifica nas palavras do pungente narrador: “a vida é um soco no estômago” (LISPECTOR, 2017, p.107). Por meio dos movimentos do foco narrativo, sente-se a dor de Macabéa enquanto se observa e experencia a sua vida.

REFERÊNCIAS

A HORA da Estrela. Direção de Suzana Amaral. Brasil: Raiz Produções Cinematográficas, 1985. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MBxAMJvSip0. Acesso em: 16 set. 2021.

JAFFE, Noemi. Palestra proferida no Café Filosófico CPFL, São Paulo (São Paulo), 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WV7vq5g_DQM . Acesso em: 14 set. 2021.

LISPECTOR, C. A Hora da estrela. Versão com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

TÓIBÍN, C. Uma paixão pelo vazio. In: LISPECTOR, C. A hora da estrela. Versão com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p.165-170.

 

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