Línguas indígenas no Brasil

01/05/2023 14:29

Por Laiara Serafim

Letras Português

Bolsista Pet – Letras

 

A segunda temporada da série Cidade Invisível, chegou na Netflix no mês de março e, com ela, trouxe o cenário da floresta amazônica com novas lendas do norte do país. Além das figuras folclóricas, a série trouxe um foco para os personagens indígenas da trama. Um dos aspectos presentes é a língua Tukano utilizada pelos personagens, língua franca da região do Alto Rio Negro, que foi a primeira região a oficializar outra língua além do português.

Para além das telas e, diferente do que pensa uma parcela da população, as línguas indígenas possuem uma vasta variedade no Brasil e não estão restritas a uma única região. O último censo, realizado em 2010 pelo IBGE, registrou a existência de 274 línguas indígenas no Brasil. Aqui em Santa Catarina atualmente a população indígena é composta por três povos distintos: Kaingang, Xokleng e Guarani. A língua Kaingang pertence à família jê do tronco macro-jê. A linguista Ursula Wiesemann classificou a língua dos Kaingang atuais em cinco dialetos, sendo um deles o de Santa Catarina. Os dialetos diferenciam-se em várias partes de sua estrutura, sendo as diferenças mais evidentes as fonológicas. Já no caso do povo Xokleng, na TI Ibirama (SC), fala-se o “xokleng”, um idioma próximo ao kaingang. Os Xokleng dizem entender alguma coisa de kaingang, mas não o falam. Já o povo Guarani forma o maior povo nativo em quantidade de população vivendo no Brasil. O idioma guarani pertence ao tronco linguístico tupi-guarani, de onde derivam 21 línguas. Essa é a língua indígena mais falada na América do Sul e chega a 60% do Paraguai.

Entretanto, essa vasta pluralidade linguística vem reduzindo drasticamente devido a colisão de culturas e fixação da língua portuguesa nas comunidades há mais de 500 anos. Atualmente, uma pequena parte da população indígena fala somente a própria língua dentro da comunidade, muitos falam português e a língua indígena e, ainda, a grande maioria dos jovens fala somente o português.

Isso se deve às inúmeras rupturas sociais, políticas, econômicas e culturais que têm lugar no Brasil, e à presença de escolas para indígenas com a mesma grade curricular das demais escolas públicas, que não estimulam e nem consideram as particularidades culturais e linguísticas, ainda que a Constituição Federal assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Muitos dos falantes também não conhecem a língua escrita, o que faz com que as línguas sejam pouco documentadas

Devido a isso, universidades de todo o continente têm se unido para organizar pesquisas de documentação e ensino dessas línguas. Aqui na UFSC, no Núcleo de Estudos Gramaticais, acontece o projeto (In)definitude através das línguas/(In)definiteness across languages, coordenado pela professora Roberta Pires de Oliveira, professora titular na Universidade Federal de Santa Catarina, que estuda a sintaxe-semântica do sintagma nominal em 8 línguas (6 minoritárias em vitalização). Dentre elas está o Rikbaktsa, língua também pertencente ao tronco macro-jê. Alguns aspectos que diferem a gramática do Rikbaktsa da gramática do português são a marcação do gênero do falante na terminação das palavras, como a inexistência de artigos como “o/os, a/as”. Atualmente, a pesquisa do Rikbaktsa, coordenado por Léia de Jesus da SIlva, doutora em Linguística Teórica e Descritiva pela Universidade de Paris VII – Université Denis Diderot (2011), estuda a definitude na língua Rikbaktsa. Outra ação já realizada pelo projeto foi a formação de professores da própria comunidade Rikbaktsa para ensinar a língua nas escolas da comunidade. A professora Léia de Jesus tem dedicado grande parte de toda a sua pesquisa à língua Rikbaktsa. Sua dissertação de mestrado teve como tema Aspectos da fonologia e morfologia da língua Rikbáktsa e sua tese de doutorado Morphosyntaxe du rikbaktsa (Amazonie brésilienne).

Conversamos com a professora sobre a sua pesquisa com a língua e a importância de pesquisas na área:

Laiara: Léia, sua dissertação de mestrado (2005) e sua tese de doutorado (2011) são sobre a língua Rikbaktsa. Como surgiu o interesse por essa área de pesquisa?

Léia de Jesus: Pesquisas sobre povos e línguas indígenas são de grande importância tanto para estes povos, quanto para a humanidade em geral e para a ciência não indígena. Pesquisas em linguística, por exemplo, já apontaram inúmeras características próprias das línguas indígenas brasileiras que contribuíram para o avanço da linguística geral. As pesquisas desenvolvidas na UFSC têm contribuído para o avanço dos conhecimentos que temos sobre estes povos, suas línguas e culturas e também para dar visibilidade a eles e ajudar na manutenção e fortalecimento de suas línguas e culturas. Em se tratando do impacto que estes estudos têm dentro das comunidades indígenas, é inegável que têm contribuído enormemente para melhorar a educação escolar indígena e oferecer melhores condições de vida a estes povos, na medida em que muitas pesquisas resultam em projetos voltados para as escolas ou para estratégias de sustentabilidade. Além disso, um dos efeitos do avanço da educação escolar indígena é que os indígenas chegaram à Universidade, agora como pesquisadores, desenvolvendo eles mesmos pesquisas sobre seus povos, línguas e culturas.

Laiara: Sabemos que, aqui na UFSC, acontecem pesquisas sobre línguas indígenas do Brasil. Qual a importância das pesquisas na área? Qual papel a documentação e estudos sobre a língua desempenham dentro da própria comunidade?

 Léia de Jesus: Eu queria mudar o mundo. Entendia que estudar línguas indígenas era uma forma de contribuir para um mundo melhor, na medida em que as minhas pesquisas poderiam ajudar a melhorar a educação escolar indígena, consequentemente a vida destas pessoas. E eu, como não indígena, poderia auxiliá-los nesse universo intercultural em que vivem. Não sei se eu mudei o mundo, mas tenho certeza de que a vivência em campo e em sala de aula, como professora de cursos de Educação intercultural, mudaram completamente o meu mundo. À parte o lado mais romântico da história, meu primeiro contato com línguas indígenas foi nas aulas de morfologia, fazendo segmentação morfêmica. Achei incrível saber sobre uma língua sem necessariamente falá-la. Fui ser bolsista de IC voluntária em um projeto do professor Aryon Rodrigues e aqui estou, entre a morfologia, a descrição e a educação escolar indígena.

Laiara: O Brasil é um país muito diverso e possui muita riqueza linguística. Qual foi o seu principal desafio ao começar estudar uma nova língua, mas principalmente, pouco documentada? Quais desafios você encontra até hoje?

Léia de Jesus: Durante o mestrado, quando comecei a estudar Rikbaktsa, cujas últimas pesquisas datavam da década de 70, havia dois grandes desafios, o primeiro era a falta de financiamento para trabalho de campo. A universidade financiava apenas a passagem de ônibus, todo o custo do trabalho de campo, que é caro, era por nossa conta. Isso muitas vezes afetava a qualidade dos dados coletados, pois não tínhamos recursos para comprar equipamentos e nos virávamos com o que tínhamos, um gravador de fitas k7, à pilha. O segundo maior desafio era o tempo. A duração do mestrado e do doutorado para quem fazia campo dessa natureza era exatamente a mesma de estudantes que não tinham essa dinâmica. Não que o tempo destes deveria ou deva ser menor, mas deveria sim ser considerado um acréscimo, caso solicitado, para estudantes de que fazem campo. O trabalho de campo com línguas indígenas exige muito, deslocamento a lugares muitas vezes de difícil acesso, o que pode levar algumas semanas só pra se chegar em campo, a coleta, transcrição e confirmação dos dados com colaboradores, retorno de campo, e só então, análise dos dados. Sempre me pareceu que seria justo se os programas de Pós-Graduação levassem essa dinâmica em conta. Infelizmente, não me parece que as coisas tenham mudado ao longo dos anos. Mesmo com todos estes desafios, continuo vendo como um privilégio poder estudar línguas minoritárias e, principalmente, aprender tanto com estes povos.

Assim, como bem mostra a Prof. e Dr. Léia de Jesus, é imprescindível o incentivo à pesquisa na área da línguas indígenas, e o conhecimento e manutenção dos estudos que já ocorrem, devido às diversas esferas que são impactadas pela documentação, estudo e ensino das línguas indígenas de nosso país.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Juliana. Índios Guarani. 2011. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/indios-guarani/. Acesso em: 09 abr. 2023.

IBGE. Indígenas. 2013. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/. Acesso em: 09 abr. 2023.

SANTA CATARINA. Poder Judiciário. Línguas e cultura indígena em foco. 2015. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/gestao-socioambiental/linguas-e-cultura-indigena-em-foco. Acesso em: 09 abr. 2023.

TOMMASINO, Kimiye; FERNANDES, Ricardo Cid. Kaingang. 2014. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang. Acesso em: 09 abr. 2023.

WIIK, Flavio Braune. Xokleng. 2020. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xokleng. Acesso em: 09 abr. 2023.

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