Literatura para uns, pornografia para outros: uma breve reflexão
Por Pedro Pedrollo
Letras-Espanhol
Bolsista PET-Letras
Quando, de alguma maneira, nos deparamos com temas complexos, como pornografia e erotismo, podemos pensar, de modo mais simplificador, que a pornografia seria algo mais explícito, ou mesmo escancarado, em que tudo pode ser “mostrado ou dito”, enquanto o erotismo seria algo mais velado, dotado de certa sutileza. Esse tipo de compreensão, ainda que possa ser considerado comum e mesmo aceitável, revela algumas perspectivas socio-historicamente construídas sobre como o moralismo, e sobre outros princípios em que a sociedade tende a se basear, podem nos levar a uma valoração específica para os produtos sociais — arte, literatura, filmes, teatro etc. —, ou mesmo para os termos que os definem e qualificam, no caso dos que abordam o sexo, como pornográficos e/ou eróticos; termos os quais, entretanto, se confundem, aproximam-se e se distanciam.
Nesse sentido, parece que seria mais fácil para uma sociedade — forjada em bases religiosas, por exemplo, tendo o sexo como um tabu — aceitar e endossar a abordagem do sexo, e de questões relacionadas a ele, por meio de entrelinhas. Dito de outro modo, haveria certa concessão, ou mesmo aceitação, ao sexo abordado de modo mais implícito do que ao sexo tratado de modo explícito. Essa perspectiva seria responsável por atribuir juízos de valor aos produtos sociais que, de alguma maneira, abordam o sexo. Assim, isso faria com que as obras, por exemplo, que possuam “cenas de sexo” escancaradamente manifestas, recebessem menos valor e, por sua vez, prestígio do que aquelas em que tais cenas seriam apenas sugeridas: estivessem em suas entrelinhas.
Todavia, algo que é muito interessante de se considerar, ao pensar nos conceitos de erotismo e pornografia, são os renomados escritores que se inseriram no tema sexual, inclusive se ocupando de uma abordagem mais desvelada e de uma visão mais escancarada do sexo, e que receberam, ainda que alguns tardiamente, reconhecimento por suas obras: Francesco Petrarca, Dante Alighieri e Pietro Aretino, por exemplo. A partir deles, é possível refletir sobre o tema e observar como o abordam de modo explícito, sendo tal abordagem, até mesmo, considerada extremamente obscena ou mesmo degradante. Um autor muito citado e conhecido, no âmbito de tal temática, é o Marquês de Sade, que, inclusive, citou reconhecidos filósofos em sua obra — tais como Rousseau, Montesquieu e Diderot —, ao tratar de contextos sexuais, que podem ser definidos como extremos.
Compreender como a abordagem do sexo tende a ser aceita ou rejeitada socialmente e os porquês de sua ocorrência, envolve uma diversidade de questões culturais, históricas, éticas, ideológicas, morais etc. Cientes disso, cabe-nos considerar que o erotismo “não mostraria tudo” e assim se aproximaria do belo, do que pode ser dito, do que é aceito e desejável; já a pornografia, por outro lado, ao basear-se na “abordagem explícita do sexo” (ou mesmo dos órgãos sexuais) se tornaria inaceitável, pois faria com que o sexo fosse algo feio, errado e sujo. Ainda que, tais conceitos, sejam variáveis, a depender de onde, de quando e de como, por exemplo, são empregados, os produtos sociais têm sido, historicamente, classificados e valorados por meio de opostos: bom e mau, belo e feio, limpo e sujo, moral e imoral, erótico e pornográfico, e assim por diante. Nessa perspectiva, tende-se a considerar algo erótico como “bom, belo e limpo”, e pornográfico como “mau, feio e sujo”, por exemplo. Entretanto, vale dizer que aquilo que ontem era considerado absurdamente pornográfico, imoral e ofensivo, pode tornar-se aceito amanhã, sendo visto como erótico e aceitável, e vice-versa.
Descrição da imagem: uma mulher branca e loira segurando um livro enquanto usa roupas intimas pretas
e transparentes e um hobby vermelho, enquanto faz uma cara de surpresa.
Sem aprofundar em um tratamento teórico ou mais acadêmico do tema, vale incentivar algumas reflexões sobre o modo como lidamos com o sexo e com sua abordagem nos produtos sociais, qualificando as obras como eróticas (aceitáveis e permitidas) ou pornográficas (inaceitáveis e proibidas). Além disso, há que se considerar o que há por detrás de nossos julgamentos e o que eles provocam. Um olhar sobre a estrutura social permite que se observe o sexo sendo posto como tabu, em várias sociedades e momentos históricos. Diversas convenções sociais passaram a servir de base para se julgar e qualificar as pessoas e os produtos sociais, a partir do modo como atendiam a tais convenções que estabelecem como, quando e onde se poderia abordar o sexo e seus temas afins. Afastar-se de tais convenções, ou seja, quebrar as regras, poderia colocar a pessoa e suas obras numa situação de marginalização, considerando-a promiscua, obscena, perversa e de menor valor social, visto que ela corromperia a “pureza” almejada para o humano em certas sociedades, culturas, religiões e/ou cosmovisões.
Podemos considerar que quando decidimos dizer o que é e o que não é erótico e/ou pornográfico, estamos reproduzindo nossas crenças, tradições e cosmovisões, ou seja, o imaginário social, que nos constitui e nos move em direção à reprodução de certos padrões e convenções, sejam eles vistos como mais moralistas ou não. Portanto, se, em nosso crivo, acreditamos que devemos aceitar o sexo sendo abordado apenas no que é erótico e rejeitar aquilo que seria visto como pornográfico, nos afastaremos de certas obras. E isso pode nos impedir de ampliar nosso contato com aqueles produtos sociais que não estão forjados dentro do que seria “aceitável e permitido” a nós mesmos. Cientes disso, podemos assumir uma postura mais crítica diante das convenções sociais, e de seu impacto sobre os produtos sociais, e entender que os limites sobre o erótico e o pornográfico são por demais tênues e que talvez seja mais produtivo circular por eles do que tentar aplicar um juízo de valor que nos posicione em prol do erótico e em detrimento do que seria pornográfico, por exemplo.
Há certos olhares para história que dizem que a pornografia seria um fenômeno de mercado, inaugurado no Renascimento e que se caracterizaria pelas imagens e palavras que ferem o pudor. Nesse sentido, o fenômeno da pornografia teria inaugurado uma nova forma de representar o sexo. Pietro Aretino seria um dos autores que teria tido a intenção de tornar o sexo mais realista, contribuindo para que a temática, que, até então, circulava em meios mais restritos, passasse a ser mais acessível a círculos mais amplos. Inclusive há quem defenda que isso teria tido um papel fundamental para a consolidação do mercado da pornografia comercial, que teria a intenção de vender sexo, e de sua aproximação com a arte erótica, que usaria símbolos sexuais para falar de coisas que transcendem o sexo.
De certa maneira, observa-se, atualmente, uma significativa circulação de pornografia, a qual é inclusive “tolerada” em seus círculos mais restritos. É interessante notar que quando essa pornografia vem à tona, em círculos sociais mais amplos e abertos, ela é alvo de intensas críticas e, muitas vezes, considera-se um escândalo, um atentado ao pudor. Se olharmos para a literatura que aborda o sexo e o modo com ela foi e vem sendo recebida socialmente, veremos casos interessantes, como o de Madame Bovary, de Flaubert, pois, ao tratar da história de uma adúltera, em sua obra, com um conjunto de detalhes e cenas de sexo, ele foi alvo de muitas críticas e julgamentos. Entretanto, há quem diga que, mesmo com o incomodo social gerado, a obra não poderia ser considerada pornográfica, já que era de um grande autor, tinha grandes qualidades estilísticas etc., o que contraria certas ideias, sobre o teor e caráter da pornografia, e nos faz refletir sobre quais seriam os elementos que nos levam a aceitar ou a rejeitar determinadas obras e a classificá-las como eróticos ou pornográficas, como merecedoras ou não de nossa atenção. Outro exemplo interessante é Contos d’Escarnio: textos grotescos, de Hilda Hilst, formado por um conjunto de contos em que o sexo é tema recorrente, que passa por críticas, rejeições e julgamentos.
Será que vemos o sexo e sua abordagem como um risco ou um perigo para a sociedade, a ponto de termos que considerá-lo um tabu e de rejeitar obras que o abordem explicita e livremente? Em “Conhecimento Proibido”, de Roger Shattuck, há uma discussão sobre os possíveis problemas que a sabedoria pode trazer e sobre a necessidade de se proibir alguns conhecimentos, já que, em tese, certas verdades poderiam causar males a sociedade. O autor questiona: “[…] deveremos acolher entre nossos clássicos literários as obras de um autor violou e inverteu todos os princípios de justiça e decência humana desenvolvidos ao longa de 4 mil anos de vida civilizada?” (SHATTUCK, 1999, p. 196)
Esse questionamento pode nos levar a diversos outros: inclusive sobre os limites que deveriam ter ou não os produtos sociais em relação às temáticas abordadas e ao como realizar tal abordagem. Contudo, considero que o mais importante é podermos refletir sobre os porquês de se aceitar determinadas obras e de se rejeitar outras e o como o posicionamento assumido nos conduzirá a certas obras e nos afastará de tantas outras.
Embora saibamos diferenciar realidade e ficção, precisamos também saber ponderar a respeito de como uma interfere na outra, não é mesmo? Por mais que possam ser encontrados exemplos de pessoas que se valeram de ficção para justificar suas ações reais, como os suicídios cometidos após a leitura de O Sofrimento do Jovem Werther de Goethe, temos que nos perguntar se os problemas sociais estariam delimitados e definidos pelas obras literárias, artísticas, teatrais, musicais que circulam socialmente; e se seriam provocados por seus conteúdos e modos de abordar seus temas. Teria sentido censurar as obras e eliminar aquelas que fugiriam dos padrões de determinadas épocas, sociedades e/ou culturas? Uma possibilidade de se refletir sobre tal questionamento pode ser encontrado na obra Um Mais Além Erótico: Sade, de Octavio Paz (1999, p.83) que afirma: “[…] o perigo de certos livros não está neles próprios, mas sim na paixão de seus leitores”.
Classificar uma obra como erotismo ou como pornografia e, consequentemente, assumir julgamentos de valor que rejeitem determinadas obras e as marginalizem, não deve ser visto como algo simples e natural. Portanto, como afirmei, é extremamente relevante refletir sobre o que estaria por detrás de certas classificações e julgamentos de valor e sobre como isso pode afetar as obras, o modo como nos relacionamos com elas e, até mesmo, como isso pode nos atingir. Além disso, uma obra definida como pornografia não deixa de ser um produto social que compartilha características com diversas outras obras, sejam elas eróticas ou não.
Leituras recomendadas:
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
HILST, Hilda. Contos d’escarnio textos grotescos. São Paulo: Globo, 1990.
MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim, 1999.
SCHATTUCK, Roger. Conhecimento proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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