O amor, o nunca e a arquibancada

19/09/2022 08:26

 Por Angelo Perusso

PET-Letras

Letras Português

 

Todos nós já usamos a palavra “nunca” em tom de banalidade. Quem nunca (olha ela aí de novo) disse que nunca mais beberia depois de um porre, e duas sextas-feiras depois estava com a garrafa de bebida nas mãos novamente? Ou então disse que nunca mais voltaria com o ex, ou que não mais ficaria com alguém, e cedeu às tentações meses ou até dias depois de dizer “nunca mais”? Fazemos isso porque não sabemos o significado real dessa palavra, e só há uma coisa no mundo que pode nos ensinar: a morte. Todo “nunca” dito é vazio, um mero modo de dizer; mas quando alguém que amamos se vai, esse é um “nunca” definitivo. O abraço, o beijo, a piada fora de hora, o bilhete carinhoso, o cuidado, nunca mais. A morte é como o passado, onde cada momento vivido se torna um eterno “nunca”. Você pode beber novamente aquela Coca-Cola gelada que salvou seu ânimo numa tarde quente, mas nunca mais vai sentir a mesma sensação daquela vez, não do mesmo jeito. Assim como você pode recriar o seu primeiro beijo trinta anos depois a fim de reviver a paixão, mas, por mais incrível que seja, o primeiro beijo, nunca mais. A vida mora no instante que precede o “nunca”.

Porém o amor tem o dom de lembrar. Nossa memória, por mais frágil e abstrata que seja, é o melhor meio de manter vivos aqueles que se foram, de reviver na mente o “nunca”. O casal Mumtaz Amca e Ihsan Teyze são a prova disso. Esse casal de velhinhos era o casal mais apaixonado pelo futebol e pelo Fenerbahçe  que já viveu. Os pombinhos nunca perderam um jogo em casa do clube do coração. De mãos dadas, fizesse chuva ou sol, frio ou calor, tio Mumtaz e tia Ihsan estariam nas arquibancadas, nas poltronas 32 e 33,  recebendo doses semanais de vida através do amor que partilhavam um pelo outro e pelo jogo de bola. O mundo todo se apaixonou pela linda história de amor dos dois, e um dia, a foto que flagrou tantos sorrisos e abraços, flagrou tia Ihsan sozinha na arquibancada, com a poltrona vazia ao seu lado. Mumtaz havia se tornado “nunca”. Mas tia Ihsan, sábia que era, foi ao estádio em todos os jogos como sempre fez, na poltrona que sempre sentou, como uma forma de mostrar ao amor de sua vida que ela não deixaria de preservar o amor por ele. A cada gol do Fenerbahce, Mumtaz e Ihsan viveram mais um pouco.

Descrição da Imagem: A foto, na parte de cima, retrata Ihsan e Mumtaz, um casal de idosos. Mumtaz, à direita, é um senhor de mais ou menos oitenta anos, com o rosto cheio de rugas e sorridente, vestido com uma boina preta e a camiseta do Fenerbahce, que tem listras verticais azuis e amarelas; do seu lado direito está Ihsan, senhora de cabelos curtos e loiros e rosto sorridente e enrugado, da mesma faixa de idade, vestindo a camiseta igual a de Mumtaz. Na parte de baixo da imagem está a arquibancada azul do estádio do clube, em que, na poltrona 32 e 33, está um pôster com a foto descrita na parte de cima.

Em 2020, tia Ihsan foi encontrar seu amor no “nunca”, e de onde quer que isso fique, os dois comemorarão milhões de gols do Fenerbahçe. Quando Ihsan deixou a segunda poltrona vazia, foi a vez do clube, que recebeu seu amor por tanto tempo, retribuir o carinho. O Fenerbahçe retirou as poltronas 32 e 33 das arquibancadas e colocou um banner com a imagem dos dois, de mãos dadas, sorrindo na arquibancada turca, com os dizeres: “Nunca esqueceremos vocês. Ihsan e Mumtaz são a lembrança, para todo fã de futebol, que a arquibancada é o lugar do amor e da vida”.

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