A língua e o rap em “Pra Curar a Dor do Mundo”, de Marcelo D2

19/12/2023 12:20

Por Angelo Gabriel Cassariego Perusso

Bolsista PET-Letras

Letras-Português

A língua utilizada nas canções de rap tem o potencial de dizer muito tanto sobre este gênero musical quanto sobre  o país em que vivemos. Neste texto, olharei mais a fundo para dois aspectos em que se pode refletir a respeito da língua utilizada no rap em geral e, mais especificamente, na canção Pra Curar a Dor Do Mundo, de Marcelo D2, integrante do álbum Iboru. O primeiro deles é a presença de palavras em banto, yorubá e quimbundo nas canções, e o segundo é uso de uma variação dialetal atribuída às classes populares, para que todos entendam.

Imagem: capa do álbum de Marcelo D2

Vou a um pouco de literatura. Em Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon (1952, p. 18) pontua que “tão mais branco será o negro antilhano, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver incorporado a língua francesa” e que “Todo povo colonizado – isto é, todo povo em cujo seio se originou um complexo de inferioridade em decorrência do sepultamento da originalidade cultural local – se vê confrontado com a linguagem da nação civilizadora, quer dizer, da cultura metropolitana. O colonizado tanto mais se evadirá da própria selva quanto mais adotar os valores culturais da metrópole. Tão mais branco será quanto mais rejeitar sua escuridão, sua selva.”. Além disso, comenta que os jovens negros da Martinica eram ensinados a desprezar o patoá, língua nativa, e valorizar a língua da Metrópole.

Se a colonização se esforçava em hierarquizar as línguas faladas no país colonizado de maneira a colocar as línguas de origem das pessoas colonizadas como inferiores às línguas europeias, o rap nacional parece ter entendido, em combate a essa ideia colonial, que valorizar as línguas africanas é uma maneira de manter viva essa história, essas pessoas e essas memórias que a colonização se esforçou em apagar. Olhemos agora para a canção “Pra curar a dor do mundo”. de Marcelo D2, que reúne diversas palavras do banto, pois a canção (bem como todo o álbum, chamado “Iboru”) traz em si diversas palavras e expressões utilizadas na religião de matriz africana Ifá, que o rapper é praticante. A canção diz:

No clarão de Zambiapungo

 

Malungo deitou pra Tempo

Macura Dilê, meu dengo

Tempo macura Dilê

 

Quem curou a dor do mundo

No tronco da gameleira

Fez mingau de carueira

Canjica no Canjerê

 

Bota o mel no coco verde

Não breca o bote da onça

Chama o caboclo de lança

Faz moqueca pro erê

[…]

Não sabe onde o sonho cessa

Quem na mata a fera amansa

Pra vida bate cabeça

Dribla a morte enquanto dança

 

Alimenta o tambor

Dá o doboru de Kavungo

Mugunzá e orobô

Pra curar a dor do mundo

[…]

Tempo espalha a semente

E o pão que a mão amassou

Passado ampara o presente

Futuro é de quem lembrou

 

E sabe que tempo passa

O tempo nunca adormece

Zaratempo só abraça

Quem no tempo permanece”

[…]

 

O que eu vi sou Eu

O que eu senti, o que eu sofri, sou Eu

Sou Eu quando eu quero, até quando eu não quero ser

Por isso Eu só morro quando o meu samba morrer

 

Sou Eu andando fora da linha

Sou Eu andando nos trilhos

Sou Eu no sorriso dos meus antepassados

E também no sorriso dos meus filhos

 

Sou Eu na dor e no prazer

Por isso eu só morro quando o meu samba morrer

Eu sou a força da minha mãe e fraqueza dela também

Eu sou a alegria do meu pai e a tristeza dele também

 

Sou novo, tradição

Sou rap, samba no pé

Soldado filho de Ogum, certeza do meu Axé

De tudo o que passou por mim

Eu sou o que eu posso ser

Por isso eu só morro quando o meu samba morrer”

 

Antes de desenvolver a argumentação a respeito da relação entre a canção e os elementos comentados anteriormente, cabe pontuar que “Zambiapungo” é a entidade máxima do Candomblé Bantu. Seu nome vem do título atribuído ao monarca do Reino de Loango, e significa “Senhor do Mundo”. Além disso, existem os inquices, entidades que fazem o intermédio entre Zambi e o mundo espiritual com o mundo dos humanos. “Tempo”, citado na canção, é o inquice da atmosfera, da tempestade, do vento, bem como da passagem do tempo e das estações. A saudação para esse inquice é “Zaratempo macura dilê”, que, de acordo com Luiz Antônio Simas, compositor da canção, significa algo como  “Tempo é a casa que cresce; passando a ideia de que Tempo não tem fim e nem começo.”

Zambi, por sua vez, é o senhor do mundo, e para curar a dor do mundo vem o Tempo e a reafirmação, o empoderamento, a potência, a prática, o axé, e a música feitas por aqueles que foram colonizados e apagados. O rap que louva a religião de matriz africana, que louva Zambi e seus inquices está, fundamentalmente, atuando no processo de devolver essa fé e essa cultura a um lugar de respeito e valorização, de combater o apagamento feito pela colonização.

No que diz respeito à língua, quem não conhece o significado dessas palavras fica alheio ao significado completo da canção, e isso também marca dois elementos importantes: o “pretuguês”, de Lélia González (2020, p.116) “[…]que nada mais é do que marca de africanização do português falado no Brasil” colocado no pedestal que merece estar – afinal, o Brasil fala um português influenciado pelo banto, pelo quimbundo, pelo iorubá, e por outras línguas africanas e isso não é só uma característica, mas uma marca de resistência, um combate ao apagamento cultural que a colonização se empenhou em fazer.  Quando se fala e se faz arte nas línguas que foram apagadas, isso também estabelece uma negação a essa imposição. O Brasil hoje fala português porque foi forçado, D2 fala em Banto porque esta língua fala com ele, porque representa sua ancestralidade e sua fé.

Já no que diz respeito ao fato de que o rap utiliza, comumente, uma linguagem acessível a todas as pessoas, podemos novamente dialogar com Lélia González e Fanon. Frantz Fanon (1952, p.19) diz que “Num grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem, que possui o domínio da língua, inspira extraordinário temor; é preciso tomar cuidado com ele, é um quase branco. Na França se diz: falar como um livro. Na Martinica: falar como um branco.” Aqui é válido perceber que o rap não fala o português falado pelas elites, majoritariamente brancas em nosso país, nem como os livros, majoritariamente escritos de acordo com a norma padrão, mas sim como o povo. O rap fala da mesma maneira que a periferia, que a classe trabalhadora, que os jovens, que a comunidade de prática do hip hop, e isso pode ser explicado por Lélia González no livro “Por um feminismo afro-latino-americano”, que diz: “Toda linguagem é epistêmica. Nossa linguagem deve contribuir para o entendimento de nossa realidade. Uma linguagem revolucionária não deve embriagar, não pode levar à confusão”, ensina Molefi Kete Asante” (2020. p. 124).

O rap, enquanto gênero musical que tem um papel político fundamental na nossa sociedade  – de levar consciência de classe e combater o racismo e outras opressões – precisa dialogar, também no nível da variedade linguística utilizada nas letras, com as pessoas que são o seu público alvo. Fica claro para mim que o rap entendeu a frase “O problema não é mais conhecer o mundo, mas transformá-lo” (Fanon, 1952, p.18) e é justamente a isso que se dispõe.

 

 

REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo-afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

 

 

 

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