Impressões impressionadas sobre a confissão mentirosa de Lúcio

29/08/2023 15:35

Por Sofia Quarezemin

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Este pequeno comentário sobre a novela de Mário de Sá Carneiro é uma pretensão de organizar algumas impressões da obra, tentando compreender a interface entre os aspectos formais do texto e aquilo que é ininteligível nele, a própria aceitação da incompreensão e da inverdade como regra. O texto contém um singelo spoiler, que é de certa forma inevitável, já que a obra parte do pressuposto da morte.

Em A confissão de Lúcio (1914), o personagem protagonista é um escritor português metido a parisiense, que redige uma longa e detalhada confissão acerca de um crime que ele alega não ter cometido. Ele lembra desse episódio após dez anos na prisão, tempo que deixou correr sem nem ao menos tentar se defender, e não o fez porque a vida, no tempo histórico em que estava inserido, não o interessava.

Descrição da imagem: A imagem é composta por dois retratos de Mário de Sá Carneiro: uma de perfil e uma de frente. São fotos em preto e branco de busto, o escritor está vestindo uma camisa branca, gravata e blazer de lã. Possui grandes bochechas, sobrancelhas grossas e um olhar grave, acompanhado de uma expressão que nada diz. Usa os cabelos divididos ao meio.

Logo no início do relato, Lúcio se compromete a fazer um mero registro semântico dos fatos, sem ter pretensão alguma em escrever uma novela. Compromete-se também somente com a verdade. Essa verdade, cabe perceber, é puramente psicológica, tendo passado por toda a leitura e maturação memorial do autor do crime por tantos anos, ou seja, uma verdade largamente incerta, na qual a narração se confunde por diversas vezes.

Nessa altura, a confiança do leitor é posta em cheque (o que, para mim, é o fator mais interessante desse relato semântico). Como confiar num narrador como esse, que se perde em suas memórias, não tem certeza do que aconteceu e do que foi criação imaginária própria e que supostamente assassinou uma pessoa? Devemos acreditar nessa consciência perturbada quando o narrador pode estar apenas satisfazendo seu ego ao nos enganar?

Ao distanciar-nos de Lúcio, Sá Carneiro nos coloca na posição de interlocutores ativos, nos dando a possibilidade de validar ou não a narrativa do escritor boêmio e talvez assassino. Ou seja, assim como todas as noções pré estabelecidas ficam abaladas aqui, a noção de verdade também fica.

Tratando do enredo, Lúcio tem um grande amigo, Ricardo, com que despende muitas horas de conversa e boemia ao longo dos meses. Em uma declaração cheia de agústia, Ricardo sinaliza sua homossexualidade e paixão pelo amigo Lúcio em tom de repreensão, pouco tempo depois casando-se com Marta, uma mulher misteriosa de quem não se sabe nada além das aparências.

Esse ar misterioso de Marta atrai a Lúcio com um tal magnetismo que só pode ser despertado pela curiosidade e, ainda mais, pelo ódio ao oculto. Tamanha curiosidade desperta em Lúcio uma paixão tremenda quando ele e Marta começam a ter relações íntimas diárias. Nesse sentido,  essa mulher parece não existir fora do âmbito amoroso e sexual: não tem uma vida para além de sua convivência com Ricardo e Lúcio.

Com o passar dos meses, Lúcio tenta investigar a vida de Marta, mas nada descobre; é quando começamos a desconfiar que a personagem pode ser uma imaginação. O que corrobora com isso é o fato de que Ricardo, mesmo vendo as trocas de carícias entre Lúcio e Marta, não demonstra tipo algum de incômodo. Com isso, somos levados a pensar se poderia Marta ser uma projeção inventada por Ricardo para poder, através de uma figura feminina, relacionar-se com Lúcio. As barreiras entre o real e o imaginário vão ficando cada vez mais sutis ao longo da narrativa, ao ponto em que Ricardo e Marta vão parecendo cada vez mais se confundirem, serem um só. Alguns fatores que colaboram para essa névoa de irreais realidades são as pulsões que se manifestam em Lúcio, o desgosto pela sociedade francesa experienciando o modernismo nas escolhas autônomas e da vastidão das dúvidas, a infinita possibilidade de anseios, o meio artístico e burlesco em que se desenvolve o enredo, as multidões da cidade e a constatação da sua horrível e psicótica individualidade no meio de tudo isso.

Lúcio então começa a nutrir uma desafeição enorme pelo amigo, enraivecido por ele não dar importância para o adultério de Marta, por não fazer questão de preservar sua honra. Como se o prazer das relações com Marta estivesse também relacionado à desaprovação de Ricardo –  que quando Lúcio percebe não existir, encontra-se desolado. Quando se intensifica o conflito entre os dois, Ricardo então saca uma pistola e dispara contra Marta, que estava sentada em uma poltrona próxima à janela. Sob o olhar de Lúcio, Marta repentinamente desaparece, a poltrona está vazie, e a estupefação do absurdo o distrai e ele percebe que quem está jogado aos seus pés desfalecido não é Marta, mas sim o próprio Ricardo, e quem está segurando a pistola é, na verdade ele mesmo, Lúcio.

Essa confissão desacreditada, de algo que supostamente não aconteceu e cuja prova é material e mortíssima, interessa-me tanto porque parece ser o perfeito retrato da impossibilidade de confiança no sujeito moderno embebido de possibilidades e dilemas, totalmente desacreditado de si mesmo e das instituições, frustrado em todas as suas realizações e longe de alcançar alguma satisfação. Nisso que parece ser uma narrativa autorreferencial, considerando o infeliz histórico de abandono e insatisfação sexual do autor, Sá Carneiro expressa todo o seu olhar desiludido para a sociedade em que não se enxergava inserido.

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