Uma reflexão sobre buscas, consciência, falta e arte

09/07/2023 09:17

 

Por Débora Klug
Letras-Português
Bolsista PET-Letras

As reflexões a seguir partem de um episódio intitulado “Zima Blue”, da série da Netflix “Love, Death and Robots”, e também de um conto de mesmo nome, escrito por Alastair Reynolds, um autor de ficção científica. O texto terá spoilers!

Dentro de um futuro em que a humanidade está super avançada tecnologicamente, já colonizando outros planetas, o personagem Zima é um artista conhecido em todo o sistema solar por fazer painéis gigantescos emblemáticos, pois eles são compostos apenas por uma cor de azul sólida, o Azul Zima. O que as pessoas sabem é que Zima é um humano que sofreu modificações biológicas e cibernéticas radiais durante muitos séculos, sendo assim, ele não precisa mais respirar oxigênio, consegue tolerar os ambientes mais extremos de frio e calor, seus sentidos foram ampliados em níveis sobre humanos, ele se tornou quase um deus. Mas um deus insatisfeito.

Zima começou sendo um retratista, pintando formas humanas, mas ele procurava um significado maior. Então, passou a olhar para o cosmos em si. Viajou por diversos planetas, comungou com diversos lugares do universo, em busca de algo, uma verdade, algum sentido. Mas ele compreendeu que o cosmos já tinha uma própria verdade em si mesmo, algo que ele jamais poderia compreender ou comunicar. Esse processo é notado em sua trajetória artística. Zima começou a pintar retratos de pessoas, depois passou a pintar painéis, com representações grandiosas de planetas, galáxias, nebulosas e eventos astronômicos, com dimensões físicas cada vez maiores. Suas obras chamam ainda mais atenção do público quando ele passa a colocar, no centro de cada quadro, uma pequena forma geométrica com um tom de azul específico, e sempre igual, o Azul Zima. A cor e a forma foram crescendo até seus painéis deixarem de representar eventos do cosmos, e se tornarem apenas isso: um painel enorme com um tom de azul. Zima fazia sucesso, pelas suas obras emblemáticas, e também por não dar explicações sobre elas. Ele ficou mais de cem anos sem falar com a imprensa.

Mas ele irá revelar sua última obra ao mundo. Antes disso chama uma jornalista para conversar com ele.

Zima esclarece sua história: ele foi a criação de uma cientista interessada em robótica prática. Essa cientista fazia robôs para executar as mais diversas tarefas domésticas, e ele, Zima, foi a máquina feita para limpar a piscina da casa dela. A cientista se interessou pelo robô, mas não estava satisfeita com o seu trabalho, então foi aperfeiçoando-o. Deu-lhe um sistema de visão de todas as cores e também um cérebro que permitia tomar decisões e reinventar as melhores técnicas para limpar a piscina, processar todos os dados visuais à sua volta. A máquina passou a ser uma plataforma de testes para equipamentos e programas, e nesses processos começou a ser mais consciente do que a cercava. A cientista morreu, e a máquina passou por vários donos, sofreu as mais diversas modificações, e se tornou cada vez mais viva. Cada vez mais aquilo que conheciam como o artista Zima.

A última obra de Zima era aquela piscina, que ele mandou desenterrar de onde estava, há tanto tempo. Os azulejos da piscina eram do famoso tom, o Azul Zima. Essa cor, a  primeira coisa que a máquina viu, a primeira consciência que ela teve. Era o seu primeiro mundo, tudo o que conhecia e tudo o que precisava saber.

Na apresentação da última obra, Zima imerge na piscina e lentamente desliga as funções superiores do seu cérebro, se desfazendo, deixando apenas o suficiente para apreciar o que o cercava, desmontando todo o seu corpo, toda a tecnologia que o compunha, para então restar apenas a sua primeira versão, e obter um prazer simples na execução de uma única tarefa: limpar os azulejos azuis. Aquilo que era quase um deus decide conscientemente se desfazer por completo. A sua busca pela verdade assim termina. Ele se encontra em sua forma mais primordial e mais simples.

Poderia ser só mais uma história de ficção científica que passa despercebida em um momento de lazer. Mas ela me trouxe reflexões sobre as coisas que buscamos na vida, sobre como podemos nos perder em procuras grandiosas, atrás de um aperfeiçoamento inalcançável, de um sentido além, fora dos nossos horizontes.

O arco de Zima começou simples, mas aos poucos se complexificou, se tornou uma epopeia cosmológica, sempre em busca de algo que não estava lá, atrás de uma falta primordial, que apareceu aos poucos em sua arte, através de uma abstração de forma e cor, que gradativamente foi tomando conta de seus quadros. Nada completava sua falta, nenhuma das representações surpreendentes e imponentes do universo que ele percorreu em busca de respostas. O que ele acessou de sua falta foi, inicialmente, uma pequena forma azul, sem sentido grandioso e complexo, apenas geometria azul, que se espalhou e se tornou famosa, em painéis gigantescos inteiramente compostos de Azul Zima. Sem sentido representacional, mas esplêndido em tamanho e forma física. E então, o arco terminou em um retorno ao mais primordial, ao mais simples possível, no maior desmanche de si mesmo que Zima poderia acessar. Ele se desfaz do seu eu, dos conhecimentos e consciências que construiu sobre o universo, e decide encerrar sua busca. Sua paz reside na simplicidade mais primitiva da sua existência.

Conversando com amigos, principalmente graduandos, percebi que em meio à rotina conturbada, cheia de exigências, cheia de angústias e anseios, dentro da tentativa de construir uma vida acadêmica, grande parte de nós acaba se perdendo em quem quer ser e o que importa. As auto-cobranças são enormes, os lugares que se almeja alcançar são difíceis e por vezes inalcançáveis. Muitos se perdem no personagem acadêmico e caem em uma arrogância intelectual que tenta capturar toda uma verdade do mundo, mas não permite olhar para o que está mais perto, para o mais simples do cotidiano.

A história de Zima mostra que nossa consciência sobre nossa falta (aquela inerente a todos nós, irremediável por sua própria natureza) pode nos fazer buscar completude em lugares grandiosos, em consciências complexas e elevadas. Mas, talvez, a melhor maneira de lidar verdadeiramente com a falta, encará-la de fato, seja desmontar o que achamos saber sobre nós e o mundo, e olhar para aquilo que não tem representação, aquela forma abstrata e azul inseparável do que somos.

Esse texto não tem conclusões grandiosas, ele terminará no mais simples possível.

A única coisa que parece fazer sentido é parar e respirar.

 

Fonte: imagem da internet

Descrição da imagem: A esquerda tem um planeta que parece o planeta Terra e sua Lua. Por toda a imagem tem pequenas estrelas e formações nebulosas em laranja e rosa, que fazem o fundo. Sobreposto à cena, centralizado na imagem, tem um quadrado azul pequeno.  

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