Como as crianças adquirem os sons da fala?

30/05/2025 12:04

Por Anna Letícia de Abreu – Bolsista PET-LETRAS

Gabrieli Marques Cabral – Voluntária PET-LETRAS

Isabela Milioli – Autora convidada

Maysa Monteiro – Bolsista PET-LETRAS

 

No texto anterior da nossa série especial de divulgação científica, refletimos sobre a pergunta “De onde vem a linguagem?”. Agora, pensaremos sobre como as crianças adquirem os sons da fala.  Iremos nos ater aqui à elucidação do processo de aquisição de sons e fonemas pelas crianças (LAMPRECHT, 2004, pág 33), sem englobar características específicas, pois cada indivíduo é afetado por uma condição.  Dado o contexto, podemos pensar que a aquisição dos sons nas línguas ocorre em várias etapas, iniciando nos primeiros meses de vida até aproximadamente os cinco anos de idade, seguindo uma ordem de aquisição: vogais → plosivas e nasais → fricativas → líquidas (esses grupos serão explicados na tabela 1).

Pesquisas em aquisição fonológica mostram que as crianças seguem uma ordem relativamente previsível na hora de aprender os sons da língua, começando por sons mais simples, como vogais, e avançando para os mais complexos, como o “r” vibrante (representado foneticamente por /ɾ/). Essa progressão não é aleatória, está relacionada a fatores físicos, como a maturação do aparelho fonador, e à capacidade de articular certos movimentos com os lábios e a língua. Apesar de cada criança seguir seu desenvolvimento de forma individual, há uma regularidade no caminho que elas percorrem. A tabela abaixo mostra uma ordem geral de aquisição dos sons no português brasileiro.

Tabela 1: Ordem geral de aquisição dos segmentos:

Segmento: Como funciona? Exemplo fonético: Idade*:
Vogais: São pronunciados com a passagem livre do ar pelo trato vocal. /i/ /e/ /ɛ/ /a/ /ɔ/ /o/ /u/ 1:1 a 1:11
Plosivas Produzidas a partir de uma obstrução completa da passagem de ar e posterior soltura através da cavidade oral. /p/ /b/ /t/ /d /k/ /g/  1:6 a 1:8
Nasais Produzidas a partir de uma obstrução completa da passagem de ar, no entanto, há o abaixamento do véu palatino e a soltura do ar através do nariz. /m/ /n/ /ɲ/ 1:6 a 1:8
Fricativas: Produzidas com passagem de ar sem que os articuladores obstruam completamente a boca, esse fechamento parcial causa fricção.  /f/ /v/ /s/ /z/ /ʃ/ /ʒ/ 1:8 a 2:10
Líquidas: Produzidas a partir da oclusão da corrente de ar na cavidade oral, causada pela língua. Oclusão parcial, o que permite que o ar saia pelos lados da boca.  /l/, /ʎ/, /ɾ/, /R/ 2:0 e 5:0

Fonte: Tabela produzida com base no texto (lamprecht, 2004).

* Idade lê-se 1:8 = 1 ano e 8 meses.

(Idade de ocorrência: variações podem ocorrer em casos de aquisição atípica.)

 Visitar site: IPA CHAT https://www.ipachart.com/ para conhecer o som dos fonemas.

Por isso que, quando ouvimos uma criança pequena pronunciando alguma palavra, estamos presenciando o diverso jogo da linguagem acontecendo, uma mistura de tentativas, desenvolvimento do aparelho fonador e a experimentação dos sons. Como vimos na tabela, os sons das plosivas (/p/ /b/ /t/ /d /k/ /g/) costumam ser adquirios por volta de um ano e seis meses, por isso, é comum que crianças ainda em processo de aquisição desses sons usem estratégias para “driblar” as dificuldades e conseguir se comunicar, chamamos essas soluções de estratégias de reparo.

Uma dessas estratégias é o apagamento, quando a criança omite o som que ainda não consegue produzir. Por exemplo, em vez de dizer “pateta”, a criança produz “ateta”, omitindo o som do /p/. Outra possibilidade é a de substituição, em que a criança substitui um som que ela ainda não domina por outro que ela já adquiriu, como: “bola” por [’pola]; “sabe” por [‘sapi] e “garfo” por [‘kafu].  Aqui percebemos que foi substituído /b/ por /p/ e /g/ por /k/, todas plosivas, mas que possuem tempos diferentes para a aquisição.

Já na aquisição das nasais (/m/ /n/ /ɲ/), que ocorre na mesma faixa etária das plosivas, o apagamento pode ocorrer em casos como “tinha”, que é pronunciado como [‘tĩ:a]. Já substituição pode ocorrer como em “moeda” por [be’ɛda] e “grêmio” por [‘genu]. Ainda assim, como as plosivas e nasais são adquiridas mais cedo e com mais facilidade, os “erros”- ou melhor, estratégias de reparo – costumam ser menos frequentes.

Na aquisição das fricativas ( /f/ /v/ /s/ /z/ /ʃ/ /ʒ/), os reparos são mais comuns e a idade para a aquisição podem variar entre um ano e oito meses até os dois anos e dez meses de idade. Ao analisar as estratégias de reparo percebe-se a omissão do segmento, como em “faca” por [‘aka] e “vela” por [‘ɛla]. Já na questão de substituição, casos como “fogão” por [po’gaw] e “cavalo” por [ka’balu].

Por fim, chegamos às líquidas (/l/, /ʎ/, /ɾ/, /R/), que estão entre os últimos sons a serem adquiridos, por isso é comum que elas passem por diferentes estratégias de reparo ao longo do desenvolvimento. A substituição ocorre como: [‘gej] no lugar de “rei”. Ou então, o apagamento: [‘ua] para “rua” e [‘bau] para “barro”. A aquisição desse segmento varia dos dois até os cinco anos de idade, quando a criança (em média) conclui seu processo de aquisição fonológica.

Entender um pouco mais sobre como se dá a aquisição da linguagem nos ajuda a perceber como os erros nas falas infantis não são tão aleatórios quanto parecem, ou melhor, talvez nem sejam erros de verdade como o senso comum costuma pensar. Essas estratégias são, na realidade, a forma que a criança encontra de falar uma palavra que possui sons que ela ainda não desenvolveu em sua fala. O mais interessante nesses processos, especialmente nos casos de substituição, é perceber que a troca de um som por outro segue uma lógica interna – uma espécie de raciocínio fonológico ligado à forma como usamos a linguagem. Isso porque a criança irá trocar um fonema por outro que ela já conhece e com características parecidas quanto à forma como é articulado na boca, por exemplo. Da próxima vez que escutarmos uma criança “errando” ao falar, vale a pena observar com outros olhos: talvez, ela esteja, na verdade, testando, reorganizando e criando caminhos para dominar um dos sistemas mais complexos que temos – o da linguagem humana.

 

REFERÊNCIAS

LAMPRECHT, Regina et al. (org.). Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para a terapia. Porto Alegre: Artmed, 2004.

 

Comments