“Garota do Momento?”: apagamento racial e disputa por protagonismo na teledramaturgia brasileira
Por Hanna Boassi
Bolsista PET – Letras | CNPq
Letras-Português
A telenovela brasileira, enquanto produto cultural de massa, desempenha papel fundamental na construção e reprodução de identidades sociais, raciais e de gênero. Ao alcançar milhões de telespectadores diariamente, esses produtos ficcionais contribuem para naturalizar representações e silenciamentos. A novela Garota do Momento (2024-2025), contextualizada no ano de 1958, inicialmente apresentada como uma trama centrada na trajetória de ascensão de uma jovem negra – Beatriz, interpretada pela atriz Duda Santos – no universo artístico, vem sendo alvo de críticas nas redes sociais por desviar-se dessa proposta e recentrar sua narrativa em personagens brancas, promovendo, segundo usuários da rede X, o apagamento da protagonista negra.
Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @supremacypayne, com um texto que diz: “Onde está a protagonista de garota do momento? Por onde anda ela? Estranhíssimo que Duda Santos em renascer interpretando uma morta aparecia mais do que nessa novela racismo do momento”. Abaixo do texto, há uma imagem da atriz Duda Santos sorrindo, é uma mulher negra com cabelos longos e cacheados, ela está em um ambiente iluminado, com luzes desfocadas ao fundo, usando um vestido azul com detalhes florais claros.
A discussão gira em torno desse tipo de apagamento, que é sintomático de uma lógica de branqueamento presente na teledramaturgia brasileira, em que personagens negras, mesmo quando colocadas no centro da narrativa, têm seu espaço e a agência constantemente esvaziados. Ao transformar a protagonista negra em coadjuvante da própria história, a novela reproduz um padrão historicamente presente nos meios de comunicação, em que corpos negros são tolerados apenas sob determinadas condições – geralmente periféricas ou estereotipadas.
Essa dinâmica tece como a televisão continua a operar como instrumento de manutenção de hierarquias raciais. A representação simbólica da negritude, quando condicionada a papéis secundários ou reduzida a figuras decorativas, reafirma uma lógica excludente que inviabiliza a multiplicidade de vivências negras e suas narrativas. Isso evidencia o que apontam Munanga e Gomes (2006 apud Lourenço, 2021, p. 2), ao afirmarem que a mulher negra vivencia “a discriminação em ser mulher em uma sociedade machista e ser negra em uma sociedade racista”.
Além disso, a recepção crítica nas redes sociais revela a crescente vigilância do público quanto às práticas midiáticas de silenciamento e apagamento. O engajamento em torno do debate sobre a representatividade racial na novela coloca em xeque os limites da ficção, exigindo maior responsabilidade dos produtores culturais diante da pluralidade da sociedade brasileira.
Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @RosaAnalu, com o texto: “Garota do Momento tinha o foco na ascensão artística da Beatriz pra inspirar outras garotas negras e tava indo super bem, mas agora a novela virou Bia, Jacira e Clarice #GarotaDoMomento”. Abaixo, há uma imagem humorística de uma figura com aparência de zumbi sentada diante de um notebook, simbolizando alguém exausto, esperando por algo há muito tempo.
O nome da novela, que remete à ideia de uma figura em evidência, torna-se irônico quando a personagem que deveria ocupar esse lugar é gradativamente apagada da trama principal; por conta disso, internautas criaram o termo “racismo do momento” para se referir a novela nas redes sociais. Isso porque, além do apagamento de Beatriz, notou-se que os outros personagens negros também não são beneficiados na trama.
Mesmo após a aprovação da Lei nº 12.288/2010, em 2010, os atores negros ainda não conseguem acessar as mesmas oportunidades e os papéis de destaque continuam sendo predominantemente atribuídos a atores brancos. Na prática, ao elaborar uma novela, parece haver um pré-requisito não declarado que privilegia os artistas brancos, marginalizando a presença e a representatividade dos negros em papéis centrais (Santos; Veiga, 2024, p. 171).
Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @pwquiw, onde o texto diz: “Nossa, só personagem negro se lascando nessa novela né, deveria mudar o nome pra racismo do momento #garotadomomento”. Abaixo, há uma imagem do ator Pedro Novaes, um homem branco de camisa polo azul com uma expressão séria.
Essa configuração mostra uma estrutura narrativa que resiste a oferecer protagonismo real a personagens negros, mesmo quando o enredo parece inicialmente caminhar nessa direção. A trajetória de Beatriz é marcada por uma sucessão de episódios de violência simbólica e física que, além de pouco problematizados pela narrativa, contribuem para a sua constante deslegitimação como protagonista. Um dos exemplos mais evidentes é o fato de a personagem sofrer agressões verbais e físicas por parte da antagonista Bia, interpretada por Maísa Silva, sem nunca reagir.
Descrição de imagem: Um print de um tuíte da usuária @nunooleon, com o texto: “A protagonista preta já foi atacada diversas vezes fisicamente, mas o roteiro nunca permitiu que ela revidasse. RACISMO DO MOMENTO”. Abaixo, há duas imagens de duas cenas diferentes da novela, onde a personagem Beatriz é atacada pela personagem Bia, uma personagem branca.
Além disso, algo que chamou atenção dos telespectadores: nos últimos capítulos, Beatriz sofreu uma acusação injusta de roubo de um colar milionário, ainda não resolvida na história, que simboliza não apenas a criminalização do corpo negro, mas também a forma como a trama opta por manter Beatriz em suspenso, presa a um enredo que não caminha, já que essa narrativa foi pausada para dar ênfase ao casamento de Beto (Pedro Novaes) e Bia, que foi forçado após a menina fingir ter perdido a virgindade com o rapaz. Esse desvio de foco não é apenas uma decisão de roteiro, mas uma escolha que reafirma a centralidade da branquitude, colocando a moralidade e a “honra” de Bia no centro do drama, enquanto o sofrimento de Beatriz é deixado de lado, sem o devido desenvolvimento ou resolução. “[…] as novelas tendem a retratar o negro, que já sofre discriminação na sociedade, de um modo inadequado, o que reproduz estigmas sociais e enaltece a hegemonia de pessoas brancas” (Munanga; Gomes, 2006 apud Lourenço, 2021, p. 9).
A substituição da jornada de ascensão de Beatriz por uma narrativa que gira em torno da pureza e do casamento de uma jovem branca não ocorre de forma neutra. Ela reafirma valores tradicionais racializados, nos quais a figura da mulher branca é idealizada e protegida, enquanto a mulher negra é exposta à violência e à suspeição, tendo sua voz sistematicamente silenciada.
A discussão sobre como Garota do Momento negligencia a trajetória de sua protagonista negra e busca rescentrar sua narrativa em personagens brancas, evidencia a percepção de não apenas escolhas estéticas e narrativas por parte da direção da novela, mas estruturas de poder profundamente enraizadas no imaginário televisivo brasileiro. A reação do público nas redes sociais, mostra que os espectadores não apenas consomem a ficção, mas também a interrogam criticamente, exigindo transformações que estejam à altura da diversidade e da complexidade da sociedade brasileira. A crítica à novela, condensada na expressão “racismo do momento”, revela uma recusa coletiva aos apagamentos históricos e uma demanda por representações mais justas e plurais.
REFERÊNCIAS
LOURENÇO, Suéllen Stéfani Felício. A Representação de Mulheres Negras em Novelas da Rede Globo. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 18, 2021, Juiz de Fora. Viçosa: UFV, 2021. p. 1-15.
SANTOS, Welliton Fernando dos; VEIGA, Léia Aparecida. Telenovelas e a questão racial: o papel do estatuto da igualdade racial na representatividade. Discursos Fotográficos, Londrina, v. 21, n. 26, p. 160-174, jun. de 2024.
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