Os perigos de fumar na cama: a naturalidade do horror
Por Rafaela Monticelli
Bolsista PET-Letras
Letras-Português
Os perigos de fumar na cama, livro de estreia da escritora argentina Mariana Enríquez, foi publicado no Brasil em 2023, quatorze anos após a publicação original, na Argentina, em 2009. Trata-se de uma coletânea com 12 contos recheados do elemento essencial que a autora reconfigurou na literatura da América Latina: o horror.
Mariana aborda o terror com naturalidade, como algo comum e cotidiano na vida das personagens. Ela transforma o medo, o assustar, em algo humano-sentimento, que relembra profundamente seus desejos, obsessões, seu orgulho e seus ciúmes. Além disso, a autora tece com maestria críticas subentendidas nos seus contos, sem deixar de lado a ironia. Dado o contexto da publicação original, Enríquez retrata situações “brincando” com o sobrenatural. Escolhi comentar o meu preferido.
Em “O mirante”, acompanhamos trajetórias diferentes ao longo do conto: a inicial, expositiva e contextualizante; a primeira protagonista e o terror da mulher louca. O conto viaja entre os dois pontos de vista: de Elina e da “forma misteriosa”. Já como cenário temos um hotel em Pinamar, da Província de Buenos Aires, conhecido por ser um lugar meio assombrado; a própria filha do dono não visita mais o local, principalmente por conta da história macabra da mulher louca. Mas o que é essa mulher louca?
Sem nome nem forma definida, a mulher louca não é nem mesmo um fantasma – ao menos ainda. Para entender quem e o que ela é, primeiro precisamos apresentar Elina, a personagem principal da história.
Elina era uma mulher-feita, preparada para passar seu aniversário no tenebroso hotel em Pinamar na intenção de também esquecer seu ex-namorado, Pablo. Era cheia de olheiras, cara cansada e sempre com insônia, o cheiro dos vários cigarros que fumava impregnado em suas roupas, depressiva, um tanto antipática e de olhar desafiador. Logo na primeira noite no hotel, a mulher teve um pesadelo com uma de suas piores lembranças da praia: o assédio que sofreu de um homem completamente bêbado e sem noção.
Ainda presa aos sentimentos da noite anterior, e com os pensamentos voando sempre à Pablo na esperança de receber uma ligação, passou por crises depressivas sozinha em seu quarto. Aquilo a machucava, a atormentava, mas a fazia se sentir viva. Ao mesmo tempo, a narrativa mostra que tinha esperança que a morte a alcançasse.
No dia seguinte – e isso é muito importante – Elina conhece uma garota no café da manhã, um pouco estranha, forçada e obcecada por fantasmas: perguntou sobre o quarto de Saint-Exupéry, onde todas as fotos saiam borradas como se o fantasma dele ainda vagava por ali; perguntou a Elina sobre o mirante do hotel, que ficava fechado para a visitação. Curiosa, a mulher seguiu a garota até o mirante.
“— A filha do dono, quando pequena, acreditava que tinham escondido a louca aqui.” – Dizia a garota. O foco da narrativa então muda, não estamos mais na mente de Elina e sim da garota. Mas quem é ela? De onde veio? São informações que nem são citadas no conto. Bom, ao menos não estou abordando-as aqui.
Vejamos, então, os pensamentos da garota:
“Era melhor trazê-la ao mirante de novo, no dia seguinte. E deixá-la trancada. E talvez mostrar a ela sua verdadeira forma antes de abandoná-la sozinha lá em cima. […] Mostrar sua verdadeira forma. E de seu verdadeiro cheiro. E, claro, de seu verdadeiro toque. […] Elina poderia voltar a subi-la, e se jogar de novo. E então o hotel teria Elina passeando em círculos com suas mãos frias e seus braços ensanguentados. E ela seria livre, porque finalmente a encontrara.” (Enríquez, 2023, p. 75-76).
Encontrara quem?
A mulher louca que tanto assombrava o hotel – que então finalmente assombraria. Essa forma, seja fantasma, criatura, ser sobrenatural, se alimentava dos pesadelos de Elina, a atormentava em seus sonhos e passou anos esperando por alguém como ela. Tudo que ela desejava era ser livre e, quando Elina chegou no local, não perdeu a oportunidade de deixá-la mais louca ainda, enfim concretizando aquele ser do passado da filha do dono.
O horror deste conto é um incômodo que “cutuca na ferida”. Atormentada por problemas diários e mentais, como a depressão e a dependência emocional, Elina jamais foi livre e no conto notamos que não será. Ela se torna o fantasma do passado de alguém, da mesma forma que a criatura em forma de garota fez com o trauma de Elina. O conto sugere esse ciclo.
Quem será a próxima mulher-louca?
REFERÊNCIA
ENRÍQUEZ, Mariana. Os perigos de fumar na cama. Tradução de Elisa Menezes. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca. 2023.
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